Will to simplify: acting on homelessness/Vontade de simplificacao: agir no fenomeno dos sem-abrigo.

AutorAldeia, Joao

Introducao (1)

Independentemente do modo como e conceptualizado, o fenomeno dos sem-abrigo e considerado um problema nos espacos-tempo em que existe. Para lhe responder, e mobilizado todo um conjunto de instituicoes, actores, procedimentos e enunciados cuja accao articulada, de modo mais ou menos conflitual, condiciona as formas plausiveis de os sem-abrigo agirem, falarem e se constituirem como sujeitos. Alguns destes elementos, produzindo efeitos de realidade neste fenomeno, contudo, nao sao socialmente mandatados para nele intervir--e o caso dos orgaos de comunicacao social, da Academia, da policia, das associacoes de moradores e comerciantes cujos espacos de habitacao e trabalho sao locais de presenca frequente de sem-abrigo. Mas um outro conjunto de elementos tem precisamente como funcao gerar efeitos de realidade neste fenomeno. Ele e composto por instituicoes estatais, do Terceiro Sector e por instituicoes do dispositivo psiquiatrico que lidam com sem-abrigo de modo recorrente. Sao estas instituicoes--e os profissionais que nelas trabalham, os discursos que enunciam, as accoes que desempenham--que sao socialmente incumbidas de intervir no fenomeno e nas vidas quotidianas dos sem-abrigo.

De modo dominante, os actores que tem como funcao intervir neste fenomeno--profissionais assistencialistas (sobretudo, assistentes sociais e psicologos ligados a instituicoes publicas e privadas) e do dispositivo psiquiatrico --concebem-no num registo de individualizacao patologica que constitui os sem-abrigo em sujeitos inerentemente anormais e/ou anormativos. (2) Na historia europeia do tratamento da pobreza, desde a Idade Media, o posicionamento (a)normativizante e claramente a orientacao predominante, oscilando a resposta social aos pobres entre a "piedade" e a "forca" (GEREMEK, 2010).

Nas decadas de 1970 e 1980, quando o fenomeno dos sem-abrigo emergiu na sua forma contemporanea, no Ocidente norte, foi de modo (a) normativizante que ele foi conceptualizado e como se procurou lidar com ele. Neste registo, considera-se que os sujeitos sao sem-abrigo por recusarem respeitar as regras de interaccao do modelo societal em que vivem --rejeitam a etica do trabalho, mentem, desejam aproveitar-se da gene rosidade alheia, consomem drogas ilegais e alcool em excesso, sao violentos, sujos, possivelmente debochados. Deste modo, a intervencao neste fenomeno procura normativizar estes sujeitos, fazendo-os respeitar as regras de vida em sociedade que eles supostamente optam por desrespeitar.

Apesar da sua forma ser variavel no espaco e no tempo, a (a) normativizacao tende a assentar na punicao, tende a reprimir os semabrigo para que paguem de modo draconiano as suas supostas transgressoes. Hoje em dia, a (a)normativizacao permanece parte integrante da intervencao no fenomeno dos sem-abrigo, ainda que se articule com outras tendencias de concepcao e accao (FELDMAN, 2006; GOWAN, 2010; HOPPER, 2003).

Desde o final da decada de 1980, o fenomeno dos sem-abrigo tende a assumir uma forma medicalizada, em rigor psiquiatrizada, que complementa a (a) normativizacao (GOWAN, 2010; HOPPER, 2003; LOVELL, 1992; LYON-CALLO, 2008; MATHIEU, 1993; WASSERMAN; CLAIR, 2010). A medicalizacao e um processo pelo qual um fenomeno que nao era percebido segundo uma grelha conceptual medica passa a se-lo, de modo exclusivo ou quase exclusivo. Ainda que a presenca de profissionais medicos facilite o processo, ela nao e fundamental para que a medicalizacao ocorra. O ponto determinando deste processo e a extensao de definicoes de origem medica a um fenomeno social previamente percebido e intervencionado noutra logica, passando esta semantica medica a ser mobilizada pela multiplicidade de actores que integram o fenomeno (CONRAD, 1992, 2007; CONRAD; SCHNEIDER, 1992). Na logica psiquiatrizada, os semabrigo sao percebidos e tratados como sujeitos bio-psiquicamente inferiores, sobretudo como doentes e/ou deficientes mentais, ainda que tambem o alcoolismo e a toxicodependencia, que supostamente caracterizam estes sujeitos, passem a ser parcialmente intervencionados como problema medicos.

De modo ideal tipico, a medicalizacao opoe-se a interpretacao voluntarista da recusa da normatividade dominante ao construir os semabrigo como sujeitos destituidos de capacidade de accao e de reflexividade, portanto, como individuos que vivem na rua primordialmente ou mesmo exclusivamente devido a sua incapacidade intima. Sendo os sem-abrigo doentes, a intervencao processa-se numa logica de tratamento individual dos seus problemas biologico-psiquicos em desintoxicacoes alcoolicas, desabituacoes de consumo de drogas ilegais, consultas com psicologos e psiquiatras ou internamentos psiquiatricos de temporalidades variadas (de um ponto de vista legal, quer voluntarios, quer compulsivos, consoante o sujeito e o espaco-tempo em causa). Nao sendo obrigatoriamente uma das estrategias de intervencao, a medicamentalizacao--ou seja, a medicalizacao atraves da prescricao e toma de medicamentos--tende a estar presente com uma importancia significativa. Se a operacao repressiva e um modo de normativizar coercivamente os sem-abrigo, as accoes medicalizadas visam normalizar sujeitos cujos desvios biologico-psiquicos tornam anormais.

Em geral, a medicalizacao tende a articular-se com a (a) normativizacao, levando a que os sem-abrigo sejam, em simultaneo, doentes e perversos, necessitados de tratamento e de punicao (FELDMAN, 2006; GOWAN, 2010; HOPPER, 2003; LYON-CALLO, 2008; MATHIEU, 1993; WASSERMAN; CLAIR, 2010). Alias, desde a sua genese, no seculo XVIII, o modelo medico contemporaneo revela tanto uma propensao normalizante quanto uma inclinacao normativizante (FOUCAULt, 1999). A combinacao destas duas logicas de interpretacao e accao e possivel, em grande medida, dado que o que as aproxima e bastante mais significativo do que aquilo que as afasta. No limite, o seu ponto de divergencia mais relevante encontra-se na aparente incomensurabilidade da avaliacao (a) normativizante dos semabrigo como detentores de uma capacidade de accao puramente negativa, voluntariamente contra-normativa, e da consideracao (a) normalizante destes sujeitos como destituidos de capacidade de accao devido a sua incapacidade biologico-psiquica. Mas ambas as conceptualizacoes assentam na inferioridade ontologica dos sem-abrigo face aos cidadaos domiciliados (sobretudo, aos das classes medias elites). Deste modo, na praxis, estes dois tipos ideais de accao sao conciliados--ainda que, muitas vezes, de modo agonistico--atraves de uma conceptualizacao individualmente patologica dos sem-abrigo como seres sem capacidade de accao e reflexividade positivas, mas com capacidade de accao e reflexividade negativas. Quem vive na rua e percebido como incapaz de ou indisposto a agir correctamente, de modo normal e normativo, e, em simultaneo, como nao podendo deixar de agir mal, de forma anormal e anormativa, igualmente por incapacidade ou predisposicao. Os sem-abrigo sao incapazes de deixar de consumir drogas ilegais (falta de capacidade de accao positiva) e/ou querem consumilas (capacidade de accao negativa). Sao incapazes de trabalhar (falta de capacidade de accao positiva) e/ou nao desejam faze-lo (capacidade de accao negativa). Em geral, sao incapazes de deixar de viver na rua e/ou nao querem deixar de viver na rua.

Quer no registo da (a)normalizacao, quer no da (a)normativizacao, os sem-abrigo sao remetidos representacionalmente para um conjunto de arquetipos de sujeito avaliados de modo negativo. Mas, dado que as duas linhas de interpretacao e accao se articulam, no limite, todos os sem-abrigo realmente existentes sao remetidos para um unico arquetipo que apresenta de modo ideal tipico todas as caracteristicas negativas que podem ser encontradas em ou imputadas a um individuo concreto. Este arquetipo individualmente patologico, no fundo, e um homo clausus (3) anormal e anormativo que e alcoolico, toxicodependente, preguicoso, mentiroso, doente mental, deficiente mental, aproveitador, enfim, e tudo o que e passivel de ser interpretado como (ontologicamente) errado numa grelha de leitura (a)normativizante e/ou medicalizante--que, atraves deste arquetipo, se sobrepoem e indeterminam. Este arquetipo e crucial--mesmo que, maioritariamente, tenda a nao ser explicitado--no modo como cada individuo sem-abrigo e percebido por transeuntes domiciliados, jornalistas, academicos, decisores politicos e agentes das instituicoes socialmente encarregues de intervir de forma quotidiana no fenomeno dos sem-abrigo.

Pela ubiquidade da individualizacao patologica ancorada neste arquetipo de sem-abrigo, o proprio fenomeno dos sem-abrigo--desde logo, ao nivel da intervencao institucional--tende a ser fragmentado numa multiplicidade de individuos que vivem na rua devido a sua inferioridade ontologica. Isto leva a que, de modo paradoxal, este fenomeno seja negado enquanto fenomeno sociopolitico. A individualizacao patologica so pode operar num registo de total invisibilizacao estrutural. A relacao do Estado com os sujeitos, garantindo-lhes ou negando-lhes direitos sociais e economicos, o mercado habitacional, o mercado de trabalho, tudo isto e remetido para o campo daquilo que nao diz respeito ao fenomeno dos sem-abrigo ou para a esfera da inevitabilidade. Inexistentes ou inevitaveis, todas as dimensoes estruturais deste fenomeno sao--de forma activa--feitas desaparecer da sua conceptualizacao e intervencao, sendo substituidas pela inferioridade e pelo erro ontologicos dos individuos sem-abrigo que, deste modo, se tornam nos pontos exclusivos da compreensao e accao neste fenomenonegado-como-fenomeno.

Ao nivel da intervencao colectiva sobre o fenomeno dos semabrigo atraves das instituicoes socialmente designadas para o efeito, ocorre uma rejeicao clara da multiplicidade de ligacoes entre este fenomeno--e cada individuo sem-abrigo--e o resto do mundo. A confusao baralha e a estrategia de intervencao colectiva (nao individualmente consciente) dos...

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