What is a "woman" after all? And who said so?/ Afinal, o que e "mulher"? E quem foi que disse?

Autorde Oliveira, Adriana Vidal

Introducao

O presente artigo tratara de feminismos enquanto correntes politico-teoricas e juridicas, assim como seus conceitos e preconceitos, unioes e exclusoes, a partir das contribuicoes da teorica Judith Butler. A partir do fim do seculo XIX, o movimento feminista--ou melhor, para fins desse artigo usaremos sempre a forma plural os movimentos feministas--foram os primeiros na historia moderna a politica e organizadamente questionar e resistir a construcoes socioculturais do que significava ser mulher. Entretanto, enquanto o faziam, construiam novos conceitos para substituir o antigo. Frequentemente, isso significou novas exclusoes que acabavam por dividir e enfraquecer a tentativa de unir politicamente. Diante desse processo historico, surge entao uma pergunta crucial a todos os que trabalham com direitos das mulheres: seria possivel buscar o empoderamento das mulheres sem reproduzir as mesmas exclusoes percebidas em sistemas culturais, politicos, juridicos e sociais que por acao ou omissao relegam as mulheres a uma segunda categoria? A autora Judith Butler responde afirmativamente ao apresentar uma proposta teorica para tentar resolver esse dilema da acao: um conceito de agente aberto e poroso, consciente de sua insercao na politica, e critico a discursos de naturalizacao de identidades que mascarem tal processo politico. Acreditamos tratar-se de uma das areas em que a teoria pode auxiliar significativamente a acao dos que lidam com exclusoes, especialmente as baseadas em estereotipos de genero, visto que o objetivo do presente artigo e investigar a relacao entre identidade, acao politica e estruturas normativas, justificando-se a opcao pela referida autora,

A partir da obra de Butler, assim como de dialogos teoricos com outros autores que baseiam ou resistem a suas teses, o presente artigo tomara a seguinte forma: a primeira parte lidara com a categoria de "mulher" como o sujeito do feminismo. A segunda parte tratara das categorias de sexo e genero. A terceira sessao discutira sexualidade, heteronormatividade e atos performativos. O quarto ponto abordara tanto o questionamento da necessidade de um conceito identitario fechado antes da acao politica quanto o conceito aberto de agente.

  1. A "Mulher": em nome de quem pretendem falar os movimentos feministas?

    "o 'todo' (...) e em realidade 'produzido'pelo exemplo(...) (1)"

    A pergunta pode parecer estranha, visto que normalmente supoe-se que os movimentos feministas falam em nome das mulheres e se apresentam como representantes de seus interesses. Conforme descreveremos nessa secao, Butler pretende justamente produzir uma critica interna ao feminismo (2) e problematizar a naturalidade desse discurso em dois pontos principais: a descricao de identidade (mulher) e a representacao politica (feminismo). (3)

    No primeiro caso, descreveremos a naturalizacao de uma identidade que Butler entende como uma construcao politico-cultural: uma naturalizacao que se da pelo processo de tornar esta construcao invisivel no discurso. Butler inicia sua reflexao questionando se tal conceito de "mulher" e realmente estavel e universal atraves da historia e de fronteiras culturais, visto que apresentado como natural, pre-cultural, claro e obvio em sua essencia apolitica.

    Desde o inicio dos anos 90, Butler reflete acerca de que forma seria possivel a um movimento feminista basear sua teoria ou sua acao politica em uma posicao de sujeito que seja "universal" (mulher), em um momento historico em que a propria categoria do "universal" e pesadamente criticada por todas as suas inclinacoes--especialmente as etnocentricas? Pode a teoria feminista adotar um discurso pretensamente universal sem prejudicar a coerencia e a relevancia teorico-politica de um movimento baseado na critica a exclusao sexista e a hierarquias patriarcais? Ao tentar impor a universalidade do seu discurso em nome da praticidade politica nao estariam os movimentos feministas simplesmente assumindo uma visao especifica e contextualizada, excludente de grupos nao hegemonicos--em outras palavras, pode o feminismo escapar das praticas sistematicas de hierarquizacao, invisibilizacao e exclusao historica que ele proprio foi fundamental em denunciar? (4)

    Mesmo antes de continuarmos a apresentar essa linha critica, convem fazermos uma pausa para apresentar em linhas gerais o debate teorico desenvolvido acerca dela. Conforme exposto por algumas de suas debatedoras, (5) tal critica pode parecer desde o principio nao fazer sentido, especialmente se acreditamos que foi justamente o foco em um conceito de "mulher" que trouxe coesao ao movimento feminista e, portanto, possibilitou suas conquistas. Uma possivel resposta seria, conforme ja e pratica comum tanto na academia quanto na esfera politica ligada a questoes de genero, tentar ao maximo apresentar as questoes pertinentes ao feminismo de maneira contextualizada e contingente. Em vez de se adotar um conceito universal de mulher, se falaria das mulheres negras, gays, ocidentais, situadas em um determinado local e periodo historico, etc. Problema resolvido?

    Nao exatamente. Butler afasta tambem essa proposta como sendo uma solucao a seus questionamentos, visto que em conexao a sua critica ao universalismo ha ainda sua critica a um conceito estavel de "mulher" e sua problematizacao da representacao feminista. A partir de sua critica a pretensao de universalidade, Butler parte para uma critica ao uso desse conceito como sujeito do proprio feminismo, questionando mais radicalmente o proprio conceito de mulher: para Butler, o poder atua de forma anterior, ou seja, nos proprios procedimentos que estabelecem quem sera o sujeito "mulher" apresentado, quem falara em nome do feminismo, quais serao suas demandas e para quem ele falara. Ao constatar-se isso, e importante para o feminismo abrir mao de naturalizar, despolitizar e invisibilizar os processos de construcao do que e mulher e de sua imediata representacao por um dito movimento feminista.

    Explica-se. A mulher foi considerada ao longo do desenvolvimento da teoria feminista como um sujeito dado, meramente em busca de representacao politica e de espaco para desmontar estruturas discriminatorias, excludentes e hierarquizantes. A pretensao dos movimentos feministas, ao se defender a representacao da mulher e sua constituicao como sujeito politico da forma criticada por Butler, e a conquista de uma maior notoriedade, visibilidade e poder por parte de uma universalidade chamada "mulheres". Porem, a possibilidade desse "sujeito" efetivamente protagonizar processos de liberacao e colocada em xeque pela autora, na medida em que ele nao e anterior, nao existe previamente a cultura, a politica--e, especialmente relevante para nos, ao Direito e a Lei. (6) Em outras palavras, e importante para compreender e levar a serio a critica de Butler e de outros teoricos pos-modernos, da teoria queer e pos-essencialistas, que o sujeito nao existe anteriormente, em um estado pre-politico e pre-cultural e depois meramente produz o Direito; esse sujeito e ao contrario constituido pelo Direito ao mesmo tempo em que constitui o Direito, e construido ao mesmo tempo em que constroi.

    O que esta em jogo e a pretensao feminista de falar em nome da "mulher". Se sao denunciadas permanentemente as exclusoes perpetradas pela pretensao do homem, cisgenero, branco, ocidental cristao, heterossexual e proprietario de representar o "universal", como podem os movimentos de mulheres subscreverem ao mesmo processo de producao de um conceito de "mulher" e de um sujeito que fale automatica e validamente em nome de todas essas "mulheres"?

    A categoria denominada "mulher", afirmada como sujeito do feminismo, e produzida pela mesma estrutura da qual ela pretende se emancipar. (7) A lei produz a nocao de um sujeito anterior a ela, que tem como caracteristica ser excludente, para ser representado no sistema juridico e no sistema politico e dar legitimidade a ela. Seguindo esse raciocinio tipico do liberalismo e muito explorado nas teorias do contrato social, Butler afirma que, se o feminismo trabalha com a concepcao de um sujeito especifico, a mulher, ele tambem trabalha com uma categoria excludente. (8) A autora tece criticas ao conceito de sujeito, ressaltando que a critica nao serve para nega-lo ou demonstrar repudio aos movimentos feministas e sim para questionar o seu status como algo previamente estabelecido, como uma premissa (9). Aceitar as criticas de Butler como validas e relevantes para o pensamento e a acao acerca de discriminacoes e hierarquias baseadas em genero, significa aceitar uma visao niilista de que nao existe uma saida viavel?

    Para Butler, nao e esse o caso. Conforme veremos em maiores detalhes no decorrer desse artigo, a desconstrucao do sujeito sugerida por Butler serve para abrir possibilidades de novos usos para o termo--usos subversivos. O sujeito e construido por relacoes de poder a partir de diferenciacoes e exclusoes realizadas por um aparato de repressao, o que nao significa que ele seja determinado, uma vez que se trata de um processo continuo e nao algo que precise ser visto como dado e imutavel. A partir da propria premissa apresentada, um sujeito politico nao pode ser um ponto de partida dado: ele e sempre passivel de ser trabalhado novamente. Portanto, nao faz sentido para a autora estabelecer uma fundamentacao universal para o feminismo, ou para qualquer movimento emancipatorio. Qual a importancia dessa constatacao para pensar na robustez teorica de diferentes correntes feministas?

    Perceba-se que houve historicamente movimentos criticos similares, ou seja, que apontam para exclusoes e hierarquias dentro do proprio pensamento feminista. Houve no decorrer do feminismo um empenho em tracar o patriarcado como o grande inimigo e como ponto de partida para as lutas das mulheres. Entretanto, feminismos que seguiram por esse caminho foram repetidamente acusados de fazer uso de mecanismos semelhantes aos do poder patriarcal conforme denunciado...

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