A vulnerabilidade do consumidor frente ao contrato de crédito e a necessidade de tutela estatal

AutorNatália Borges Tosta Figueiredo
CargoGraduanda em Direito (Universidade Federal de Goiás)
Páginas16-29

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Introdução

A democratização do crédito remonta aos Estados Unidos, em especial a concessão de crédito para aquisição de bens duradouros por meio de um sistema de parcelamento. Essa sistemática permitiu que o crédito deixasse de ser visto como sinônimo de pobreza e passasse a ser encarado como mero meio de se adquirir um produto, contribuindo para o dinamismo e crescimento econômico do país.

No Brasil, essa democratização do crédito teve início a partir de 1994, com o advento do Plano Real, que proporcionou a estabilização econômica. Durante o novo cenário, as instituições financeiras, que anteriormente tinham como principal fonte de lucros a própria inflação, foram obrigadas a buscar novos caminhos para gerar dividendos. Assim, iniciou-se a concessão de crédito para uma parcela da população que, em princípio, encontrava-se excluída do sistema formal de crédito.

Entre 2005 e 2006, durante o governo Lula, em decorrência dos estímulos ao crédito popular, cerca de 2,15 milhões de famílias saíram da classe de consumo D/E e passaram a integrar a classe C (Lima; Bertoncello, 2010). O crédito trouxe inúmeros fatores positivos para a sociedade como um todo, pois permitiu que indivíduos passassem a adquirir determinados bens, que antes seriam considerados inacessíveis, como também contribuiu para o fomento da economia com o crescimento do consumo.

Entretanto, se esse crédito é concedido de maneira irresponsável, e quem o detém não o utiliza de maneira racional e equilibrada, ocorre justamente o contrário. O mero endividamento do consumidor é fator corriqueiro e propulsor da economia. Por outro lado, o consumidor que se endivida além da sua capacidade de subsistência adentra a seara alarmante do superendividamento.

O superendividamento do consumidor, apesar de ser expressamente tratado no direito comparado, ainda não foi regulamentado no Brasil. Trata-se de uma problemática extremamente atual, impulsionada pela sociedade de consumo em que vivemos. Até o advento da consolidação do termo e o início de pesquisas acerca de suas causas, essa questão era tratada como descontrole individual; entretanto, como se depreende do Código de Defesa do Consumidor, o consumidor é um indivíduo vulnerável, de forma que tal fenômeno necessita de regulamentação por parte do poder público.

Nesse sentido, diante da imperiosa necessidade de tutelar o consumidor superendividado, o Senado Federal, no ano de 2011, instituiu

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uma comissão de juristas para atu-alização do Código de Defesa do Consumidor, sendo o superendivi-damento tratado no Projeto de Lei 283/12, cuja elaboração contou com a participação da professora e dou-trinadora Cláudia Lima Marques.

O projeto, inspirado principalmente no direito francês, cria um modelo próprio de prevenção e tratamento condizente à realidade brasileira. Trouxe à baila a importante questão da educação para o consumo, os deveres de cooperação por parte das instituições financeiras, como aconselhamentos e esclarecimentos, e, ainda, a possibilidade de uma audiência conciliatória entre devedor e seus credores, quando se tratar daquele consumidor que se encontra supe-rendividado.

O objetivo primordial deste trabalho consiste em traçar um panorama acerca das questões que geram o superendividamento e, consequentemente, examinar quais seriam as melhores formas de prevenção e tratamento.

Assim, a presente pesquisa parte das reflexões gerais acerca da vulnerabilidade do consumidor e seu consequente superendividamento, culminando na discussão acerca da maneira que o Estado deve tutelá-lo, principalmente no que tange à eficácia do Projeto de Lei 283/12.

1. A sociedade de consumo: uma visão sócio-jurídica do consumidor de crédito
1.1. Breve perfil histórico do crédito

O grande boom do crédito ao consumo ocorreu nos Estados Unidos, impulsionado pela aquisição de crédito para compra e venda a prestações de bens duradouros, por volta do fim do século XIX e início do século XX (Santo, 2009).

O sistema de pagamento em parcelas foi então o ponto chave para expansão do crédito no país. Atingiu, inicialmente, a aquisição de artigos domésticos, de natureza industrial, alastrando para o consumo de artigos culturais, como instrumentos e livros, alcançando seu auge quando abarcou o pagamento de automóveis (Santo, 2009).

No Brasil o crédito começou a dar sinais de sua existência na década de 1950, de forma extremamente discreta e inacessível, atingindo apenas a venda direta a crédito pelo lojista ao consumidor, conforme ensina Stumer:

"A concessão ao crédito era demorada, trabalhosa e complexa. O candidato ao crédito preenchia um longo cadastro de informações, entre elas indicando o armazém onde realizava compras, o seu alfaiate e, eventualmente, outras lojas onde comprava a crédito. A loja, por sua vez, possuía um quadro de funcionários com a função chamada de informante que [...] percorriam, diária e pessoalmente os locais indicados em busca de informações sobre o crédito da pessoa. O setor de credi-ário dessas lojas pioneiras possuía cadastro de grande número de pessoas, o que fazia com que ficassem, no início de cada manhã, apinhados de informantes de outras lojas em busca de dados e informações dos clientes já por ela cadastrados" (Stumer, 1992, p. 59).

Só a partir de 1994, com a edição do Plano Real, que o crédito começou a ter uma relevância fundamental nas relações de consumo, principalmente em razão da estabilidade econômica dos preços praticados no mercado.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor ao realizar estudo sobre crédito e superendividamento dos consumidores do Brasil, constatou o seguinte:

"Com o Plano Real, em julho de 1994, o novo ambiente de estabilização de preços trouxe modificações consideráveis para o sistema finan-ceiro brasileiro, uma vez que, com a estabilização da economia, todas as instituições deixariam de ganhar com a inflação. [...] O crédito a pessoas físicas, revelou-se importante suporte para sustentação do nível da atividade econômica, dinamizando a demanda interna via ampliação do consumo das famílias. As linhas de crédito disponíveis no mercado para aquisição dos bens são abundantes, porém, não necessariamente vantajosas para quem pretende utilizá-las."1

Nota-se que a estabilidade dos preços permitiu que o foco das instituições financeiras passasse a ser as pessoas físicas, proporcionando a criação de novas formas e maneiras facilitadas de concessão do crédito. Começa, assim, a ocorrer no Brasil a chamada "democratização do crédito".

Quanto à democratização do crédito, Lima e Bertoncello ressaltam:

"O recurso ao crédito democratizou-se entre os consumidores com renda familiar de até 10 salários mínimos, os quais representam 77% da população brasileira e responsáveis por 71% do consumo no país. O recurso ao crédito também popularizou-se entre mais de cinco milhões do total de 19 milhões de aposentados e pensionistas do Regime Geral da Previdência Social desde 2003, quando foi aprovado o empréstimo consignado com desconto em folha" (Bertoncello; Lima, 2010 p. 25).

Como se vê, há dois pontos que devem ser enaltecidos nos dizeres das doutrinadoras. O primeiro é quanto ao público alvo das instituições financeiras, o qual passou a ser famílias de baixa renda que se utilizam do crédito para consumir bens antes inacessíveis, como eletrodomésticos, carros, celulares, dentre outros. Quanto ao segundo ponto, trata-se do crédito que alcança os aposentados e pensionistas, advento da aprovação da Lei 10.820, de 17 de dezembro de 2003, que autoriza o pagamento de empréstimo por meio de

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desconto da prestação mensal em salário.

Nessa seara, em recente nota técnica expedida pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, constatou-se que, em dezembro de 2013 comparado ajaneiro de 2008, a aquisição de crédito por pessoa física por meio de cartão de crédito total elevou 149,9%; o crédito consignado total, 129,8%; e o crédito pessoal não consignado vinculado à renegociação de dívidas, 81,9%2.

Conforme restará demonstrada, a concessão de crédito traduz-se essencial para manutenção e crescimento da economia de um país; entretanto, a forma como isso vem sendo tratado no Brasil, desacompanhado da preocupação com a educação para o consumo, tende a gerar, em um futuro não muito distante, a falência do próprio sistema, pois milhares são os consumidores que se encontram hoje em situação de plena insolvência.

1.2. Crédito e a situação de endividamento e superendividamento

O crédito consiste na transferência temporária de valores monetários mediante uma determinada remuneração. Desempenha duas funções fundamentais: estimular o consumo e fomentar a produção3, sendo elemento essencial para o bom funcionamento de uma sociedade capitalista, de forma que contribui para o seu crescimento e estabilidade, fazendo com que a economia gire e alcance novos patamares.

Quando tratamos do endividamento em razão do crédito contraído, esse não poder...

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