Declaração de vontade e boa-fé no direito civil brasileiro: perspectiva histórica

AutorVinicius Elias Hauagge
CargoAdvogado Mestrando em História do Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) Doutorando em Novas Tendências em Direito Privado pela Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (Espanha)
Páginas5-11

Page 5

1. Introdução

Apesar de notório, importante dizer que o homem é um ser predominantemente social. Necessita instintivamente viver em grupos para assim satisfazer todas as suas necessidades básicas, sendo imprescindível a existência de regras para tornar tal convivência possível1.

No princípio, essas eram de cunho predominantemente religioso, repassadas verbalmente aos demais membros do grupo diante da total ausência da escrita2, dificultando assim a comprovação desses fatos3 . O mesmo ocorreu na gênese do direito romano4, fruto da sobreposição de normas morais, religiosas e jurídicas5.

Com a evolução da sociedade há simultaneamente o aprimoramento e especialização das normas de conduta, fazendose necessário separar as regras jurídicas6 dos demais preceitos de convívio social7 .

Estas se consolidam e originam o Ius Civilis8, ramo especializado do direito que acompanha o homem desde o nascimento até sua morte, regulando, inclusive, relações anteriores e posteriores aos limites impostos pela natureza9 . Engloba os direitos de personalidade, os elos familiares, a sucessão, o testamento, os direitos e obrigações sobre bens e ainda algumas relações creditórias e obrigacionais. Eis aí a sua grande e fundamental importância10 e justamente por isso é também chamado de "Direito Comum"11.

Além das relações anteriormente nominadas, também necessita interagir com o próximo, afinal é absolutamente impossível produzir tudo aquilo que necessita para viver com mínima dignidade. Precisa obter o que lhe falta com o próximo, repassar o excedente aos seus vizinhos.

Por mais simples que sejam, essas transações são verdadeiros negócios jurídicos, que geram direitos e obrigações para ambos os pactuantes. Têm sua gênese em declarações de vontade12, que ocorrem na maioria das vezes mediante atos de palavra13, conforme se verá no presente estudo.

2. Da fixação do Direito Romano na Civilização Ocidental

Antes de se adentrar no tema propriamente dito, faz-se necessária breve abordagem histórica sobre a fixação do Direito Romano na civilização ocidental. Evidente que de forma sintética, diante da complexidade da matéria.

A civilização romana cresce vertiginosamente e por tal razão surgem inúmeros problemas para a administração do Estado. Então em 27 (a.C.), Octávio instaura o Principado, regime que vigorou até 284, quando Diocleciano foi declarado Imperador pelas tropas do exército. Dotado de amplos poderes, promove a divisão do Império em duas partes, a ocidental com capital em Roma e a oriental com capital primeiramente em Nicomédia, depois Antioquia e finalmente em Bizâncio.

Concentra-se no Estado a criação do direito por meio das Constituições Imperiais14, ao passo que simultaneamente a jurisprudência entra em vertiginoso declínio. Justiniano15determina a condensação dos textos jurídicos16em um só corpo, para assim afastar eventuais incertezas na aplicação do direito.

Após as invasões bárbaras, houve problemas na coexistência do Direito Romano com os direitos dos invasores, e aquele foi vulgarizado, sofrendo alterações17 que lentamente produziram modificações em seu corpo.

Passados oito séculos, surge em Bolonha a "Escola dos Glosadores", seguida pela "Escola dos Comentadores". Espalha-se assim o Direito Romano pela Europa18 , tido como um direito de razão que se impunha pela própria excelência19 . Por tais motivos, as primeiras manifestações legislativas eram subordinadas ao Corpus Juris Civile20, texto independente e, por que não dizer, superior à autoridade do próprio governo.

No raiar da idade moderna formam-se na Europa grandes monarquias absolutistas21, transformando o antigo sistema feudal em unidades territoriais com maiores dimensões.

Ocorrem significativas alterações econômicas, sociais, religiosas, políticas e científicas22 em todo o continente e o Estado se torna fonte de direito, reivindicando para si a exclusividade da criação legislativa. A sustentabilidade do Direito, baseada no Antigo Regime é abalada; almeja-se uma certeza jurídica23 que não é mais fornecida pela opinião comum dos doutores24.

Page 6

Abrem-se as portas para o governante legislador, havendo inevitável cisão da realidade anterior. Torna-se pacífico que o verdadeiro Direito decorre exclusivamente da lei, oriunda do legislador estatal, afastando-se completamente da posição reinante no Direito comum25 .

O processo de "estadualização do Direito encontra o seu cume na codificação"26, fenômeno que se espalha pela Europa, América Latina, Canadá e até em alguns países asiáticos. Seu grande expoente27 é o Código Civil francês28, resultante da união de textos romanos29 e costumes franceses; dotado de alma individualista, assegura a propriedade e a autonomia privada. Causou enorme influência nos códigos posteriormente30redigidos, como por exemplo, o Código Civil brasileiro31.

3. A declaração de vontade no Direito Romano

O ordenamento jurídico romano outorgou à vontade do agente capacidade para criar efeitos jurídicos. Tal diz respeito à autonomia privada, requisito imprescindível para formalização dos negócios jurídicos, constituindo seu verdadeiro elemento propulsor.

No início, os textos legais não transcorriam especificadamente sobre a vontade dos agentes, fazendo menção apenas aos requisitos básicos para realização dos atos pactuados. Isso ocorria em razão do formalismo vigente, pois se dava elevada importância à forma da concretização dos negócios; e para exemplificar citam as seguintes situações: a troca efetiva de mercadoria por um pedaço de metal que deveria ser pesado numa balança (mesmo que de forma simbólica), o pronunciamento de fórmulas e regras predeterminadas pelas partes, a presença de testemunhas na concretização do ato etc.

Mais adiante, altera-se esse posicionamento, ocasião em que o negócio jurídico deixa de ser visualizado como um simples ato material e inconsciente, mas sim fruto de uma atividade direcionada para a obtenção de determinados fins: "a voluntas emerge e torna-se o fundamento dos efeitos jurídicos32". Há uma alteração de valores e a vontade33 do agente34 prevalece sobre a palavra35, o "animus" - no sentido de "voluntas" - tornase fundamental.

Importante dizer que na hipótese da realização dos negócios denominados como não-solenes (não dotados de formas preestabelecidas) a declaração de vontade poderia ocorrer por diversas maneiras, seja por escrito, por palavras, por sinais e até pelo silêncio36; situação não admitida nos negócios formais37, em que as partes deveriam cumprir requisitos pré-fixados para sua validez e eficácia, conforme exposto anteriormente.

4. Da fixação do Direito Romano no Brasil

Quando da chegada em território brasileiro no início do século XVI, os colonizadores não encontraram instituído o que se pode chamar de Direito, pois os nativos que habitavam a nova terra confundiam e misturavam os conceitos de justiça e religião38. Assim, juntamente com seus costumes e idioma, o conquistador também implantou o seu sistema jurídico39, de cunho predominantemente romanista.

Importante lembrar que o ordenamento legislativo lusitano (e conseqüentemente brasileiro), sofreu significativa alteração40 com o advento da Lei da Boa Razão41, texto que limitou o direito subsidiário ao Direito Romano42 que se apresentasse de acordo com a boa razão e as leis das nações cristãs. Restringiu também a aplicação do costume, que deveria ser de acordo com a boa razão, não ser contrário à lei e possuir mais de cem anos de existência43.

A "obra reformadora da Lei da Boa Razão"44 foi completada com a alteração do ensino universitário, mediante a edição, em 1772, dos Novos Estatutos da Universidade de Coimbra. Inserem-se no ensino jurídico as concepções de jusnaturalismo e do "usus modernus pandectarum", para assim insculpir nas novas gerações o sentido das mudanças que vigoravam no sistema legislativo português. Uma das maiores conseqüências ocorreu praticamente após passados quase cem anos, quando em 1867 é revogado o Livro IV das Ordenações Filipinas pelo Código Civil de Antonio Luis de Seabra (posteriormente Visconde de Seabra).

Porém no Brasil45 o Livro IV das Ordenações Filipinas continuou regulando as relações civis do novo país, resistindo tanto à Independência46 como à proclamação da República47. Foi definitivamente sepultado do ordenamento jurídico brasileiro após a promulgação do Código Civil de 1916, elaborado por Clóvis Beviláqua48 .

Esse, por sua vez, foi revogado em 2002 pelo atual código, redigido por uma comissão presidida por Miguel Reale49 . Seu maior mérito foi atualizar os dispositivos do texto anterior para a realidade vigente, inserindo na legislação conceitos e tendências já adotados pela doutrina e pela jurisprudência.

5. Das declarações de vontade no Direito brasileiro

Para existir no ordenamento jurídico e produzir efeitos, imprescindível a exteriorização da vontade por parte do agente50 . Importante dizer que essa deve corresponder com sua verdadeira intenção, pois algumas vezes não há sintonia entre o elemento interno e a projeção do desejado. Inexistindo a convergência, há vício no negócio jurídico que pode gerar sua anulação ou, o que é mais grave, sua nulidade.

Por tais motivos pode-se afirmar que a declaração de vontade é o elemento essencial do negócio jurídico, predominando no direito contemporâneo o entendimento que ela, por si só, produz efeitos jurídicos, estabelecendo um vínculo entre as partes, independente de qualquer requisito material. Tal assertiva pode ser comprovada mediante simples leitura de dispositivos inseridos nos códigos civis da Espanha51 , França52 e Itália53 .

O termo declaração de vontade é aqui utilizado no sentido amplo, não existindo necessidade...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT