Violência ou não violência?

AutorCarlos Aurélio Mota de Souza
Páginas117-161
117
VIOLÊNCIA OU
NÃO VIOLÊNCIA?
“Não faço o bem que quero,
mas o mal que não quero.”
(S. Paulo aos Romanos 7, 19)
“O mais importante para o homem não é viver, senão viver bem.
E viver bem não é outra coisa que fazê-lo nobre e justamente.”
(Sócrates, no Diálogo Criton, 48 b-c)
INTRODUÇÃO
Qualquer ação violenta é contrária à ordem moral, jurídica ou po-
lítica. Com este sentido se diz “cometer” ou “sofrer” violência. No
Evangelho se lê: “àquele que te fere na face direita, oferece-lhe
também a esquerda”, porque o Pai “faz nascer o seu sol igualmente
sobre maus e bons, e cair a chuva sobre justos e injustos”.76
Aristóteles, antes do cristianismo, já dizia a Nicômaco, na Ética,
que ao homem justo é preferível sofrer uma injustiça que praticá-lá.77
76 Mateus, 5, 39 e 45.
77 Ética a Nicômaco, L. 5, 11, 1138a; tratando da Equidade, ensina que “tanto sofrer
uma injustiça quanto praticá-la são males”, porém, “sofrer injustiça é um mal menor”.
Cf. trad. Mário da Gama Kury, Brasília: UNB, 1985.
2
118 » direitos humanos, urgente!
O próprio Sócrates, após sua condenação, recusou-se a fugir
da prisão para salvar sua vida, como lhe propunha seu amigo Cri-
ton, ensinando que é necessário cumprir a lei (ou sentença) injusta
para que os cidadãos possam obedecer às leis justas.78
Por motivos políticos, a violência tem sido exaltada por alguns
porque está dirigida a criar uma “sociedade nova”, em oposição à
força, que af‌irma ser inerente à sociedade e Estado burgueses.
Sorel79 af‌irmava que “o socialismo deve à violência os altos va-
lores morais com os quais leva à salvação do mundo moderno”.80
Toda espécie de violência parte sempre do homem, ou de um
grupo organizado com propósitos def‌inidos, ou do Estado, tam-
bém dirigido por homens.
A violência do Homem contra o Homem pode ser a mera vio-
lência física, verbal, mas igualmente a econômica e moral; a vio-
lência do dia a dia, o desrespeito ao próximo, a falta de amor; a
violência familiar, gerando divisões, vinganças, que muitas vezes
passam de geração a geração (as vendetas).
A mais grave de todas, porém, é a violência do Estado contra
o Homem, porque muito mais coletiva, gerando consequências ir-
reversíveis. É a violência total contra uma parte da sociedade, seja
uma classe social, uma raça ou etnia, partidos políticos ou religiões.
Como vimos, geralmente tem suas causas em ideologias sociais,
políticas, religiosas (radicalismos ou fundamentalismos), gerando
tiranias, guerras, genocídios.
Quando a violência parte do Homem contra o Estado, ela
pode ser justif‌icada ou injustif‌icada; nesta, praticam-se atos ilegíti-
mos, contra a ordem jurídica e política, como nas greves injustas,
78 PLATÃO, Críton, 53b-54ª. As leis da cidade “não são válidas para que ele (Sócrates)
as obedeça, senão que ele as obedece porque são válidas”.
79 SOREL, Georges Eugène (2/11/1847 – 29/08/1922), engenheiro francês formado
pela École Polytechnique, marxista heterodoxo, foi um teórico do sindicalismo revo-
lucionário, muito popular em seu país, assim como na Itália e nos Estados Unidos.
80 Cf. ABBAGNANO, Nicola, Diccionario de Filosofía. México, FCE, 1991, p. 1190.
violência ou não violência? « 119
sabotagens, perturbações da ordem pública, geralmente sem obje-
tivo legítimo.
Mas justif‌ica-se naturalmente a violência como ato legítimo
pelo direito à resistência aos maus governos, por meio da desobe-
diência civil81, de greves por causas justas, pressões populares para
obtenção de benefícios sociais negados pelas autoridades.
A f‌ilósofa Hannah Arendt dedica longo estudo à desobediência
civil a partir da discussão sobre “a relação moral do cidadão com a
lei, numa sociedade de consentimento”82.
Para ela, a desobediência civil difere da objeção de consciên-
cia, pois são atos de “minorias organizadas, delimitadas mais pela
opinião comum do que por interesses comuns, e pela decisão de
tomar posição contra a política do governo mesmo tendo razões
para supor que ela é apoiada pela maioria; sua ação combinada
brota de um compromisso mútuo, e é este compromisso que em-
presta crédito e convicção à sua opinião, não importando como a
tenham originalmente atingido. Argumentos levantados em prol
da consciência individual ou de atos individuais, ou seja, os impe-
rativos morais e os apelos ‘à mais alta lei’, seja ela secular ou trans-
cendente, são inadequados quando aplicados à desobediência civil;
neste nível será não somente ‘difícil’, mas impossível impedir a de-
sobediência civil de ser uma f‌ilosof‌ia subjetiva (...) intensa e exclu-
sivamente pessoal, de modo que qualquer indivíduo, por qualquer
razão, possa contestar”.83
A autora af‌irma ainda que a desobediência civil tem como
característica central a não violência, pois não é revolução,
81 Conceito apresentado pela professora Maria Garcia em excelente estudo sobre o
tema: “forma particular de resistência ou contraposição, ativa ou passiva do cidadão,
à lei ou ato de autoridade, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos direitos e
garantias fundamentais, objetivando a proteção das prerrogativas inerentes à cidada-
nia, pela sua revogação ou anulação”, in GARCIA, Maria. Desobediência Civil.
82 ARENDT, Hannah. Crises da República. p. 79
83 Idem. p. 63

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT