A vinculação do profissional com a obra de Arquitetura

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas115-148

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A intervenção do arquiteto é obrigatória na elaboração ou avaliação dos projetos e planos no domínio da arquitetura.

Art. 42.4 do Estatuto da Ordem dos Arquitetos de Portugal

I Introdução

Para garantia da sociedade, o trabalho técnico profissional do arquiteto nunca pode ficar oculto. A vinculação pública do arquiteto com a obra que produziu é de fundamental importância do ponto de vista das implicações legais, sejam direitos ou responsabilidades do profissional, que derivam diretamente da identificação de sua autoria. Afastando a possibilidade da obra técnica anônima1, tal vínculo jurídico permite que seja dada alguma segurança à resposta da pergunta quis (= quem) em razão de um quid (= o que) genérico do ponto de vista profissional: qualquer trabalho de Arquitetura - seja uma consultoria, uma perícia, um estudo de impacto de vizinhança (incrivelmente não contemplado de modo

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expresso dentre as atribuições dos arquitetos na lei do CAU) ou um projeto urbanístico - deve ter identificação clara e precisa de seu autor.

Há, pois, uma obrigação legal de publicidade da autoria por força do interesse coletivo no controle da qualidade do trabalho prestado. O interesse coletivo é, de fato, o fundamento de todo o sistema de fiscalização profissional (v. Recurso Extraordinário nº 603583, que apreciou o exame da OAB em 2011, mantendo-o). Como se sabe, nas profissões liberais “os resultados podem ser heteronomamente fixados, os meios não” (Jorge Miranda), os meios devem ser estabelecidos pelo próprio profissional, de acordo com o “estado da arte” de sua profissão. Assim, os profissionais liberais - dentre eles os arquitetos - têm ampla autonomia de ação, respondendo perante a corporação pelas faltas técnicas e éticas que cometerem. Disto deriva a necessidade de se fixar com segurança, perante terceiros, a vinculação autor-obra. Como se percebe haverá aqui, na verdade, duas obrigações interligadas e conjugadas: (i) a fundamental de estabelecimento do vínculo e (ii) a obrigação decorrente de publicização desse mesmo vínculo.

Se, no passado, o arquiteto inscrevia seu nome na própria fachada do edifício que construiu2, no ordenamento jurídico-arquitetônico

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brasileiro a ligação direta e permanente autor-obra ocorre presentemente de três formas precisas, exigidas pela lei:

(a) assinatura dos trabalhos;

(b) placa de identificação e, como meio mais eficaz,

(c) a Anotação de Responsabilidade Técnica (ART ou, agora, RRT).

Tais determinações permitem que tanto o Poder Público quanto a corporação profissional saiba exatamente quem é o arquiteto responsável pela construção e que terá, eventualmente, de sofrer sanções se o trabalho não tiver a qualidade esperada. É, no limite, o caso da ruína funcional ou da ruína efetiva, física (v. texto 7). Permite também, no aspecto positivo, que se estabeleçam os direitos autorais decorrentes do projeto arquitetônico e, depois, do edifício concluído. O STJ já declarou isso no caso da ART, que “tem por objetivo individualizar a responsabilidade do engenheiro ou arquiteto por uma obra ou projeto, de modo que se ocorrer, por exemplo, um desabamento ou mesmo plágio de projetos anteriormente elaborados, ensejando violação ao direito autoral, o CREA tem condições de identificar os profissionais responsáveis” (Resp. 396793, j. em 2002).

Derivadas da noção central de autoria, estas consequências foram percebidas há muito tempo na Arquitetura. Quanto aos direitos autorais, o Código Guadet, de 1895, já proibia expressamente o plágio, verbis: “Em relação aos seus colegas, ao arquiteto proíbe-se o plágio assim como o desconhecimento das delicadas regras que a consciência impõe aos artistas dignos desse nome nas relações entre eles”. Num caso bastante conhecido, percebe-se a quase identidade de partido dos projetos dos prédios da Biblioteca Nacional da República Argentina, em Buenos Aires, e do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, este do escritório Croce, Aflalo e Gasperini e de data posterior

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àquele. O projeto da biblioteca foi vencedor de concurso realizado em 1962 e é do grande pintor e arquiteto Clorindo Testa (1923-2013) e outros, enquanto o do tribunal é de 1970 (primeiro governo Maluf). Veja-se que o projeto da biblioteca tem um sentido próprio: situado num parque, ele faz uma separação entre a tarefa intelectual (a leitura, cujos pavimentos ficam sobrelevados) e a função de memória, uma vez que os depósitos ficam escondidos no subsolo.

Em relação à responsabilidade dos arquitetos, por faltas profissionais cometidas, o advogado Louis Fraissaingea publica em 1887 uma importante monografia intitulada “De la responsabilité des architectes et des entrepreneurs”. Nela afirma o autor que a responsabilidade desse profissional remonta ao Direito Romano, referindo fragmento de Ulpiano (Digesto 11,6) que previa ação contra o arquiteto que enganou (qui fefellit) o contratante.

O arquiteto é responsável seja em face dos contratantes, seja em face do Poder Público, seja em face da corporação a que pertence - e que controla suas atividades. É importante observar que nas demais profissões liberais não ocorre o mesmo controle incisivo que, via ART/RRT, incide sobre a atividade seja do engenheiro, seja do arquiteto. Tanto o ato médico quanto os processos judiciais não exigem comunicação individual detalhada à corporação respectiva (CRM e OAB), por exemplo, como acontece na Engenharia e na Arquitetura. A explicação estaria no risco, no “sério dano social” que a edificação pode significar - e isto poderá ser verificado até mesmo no Código de Hammurabi (v. Capítulo 8). Porém, o mesmo perigo - ou até maior - aparece também com a Medicina, e aqui não existem tantas formas de controle da atividade do profissional. A questão é que a atividade do engenheiro ou do arquiteto, além da possibilidade de dano, prolata-se longamente no tempo (para além da obra concluída), o que potencializa o risco pela duração e pela extensão dos atingidos.

Se se mostra inequívoca a necessidade da publicidade legal do trabalho do arquiteto, é certo, por outro lado, que a deontologia da profissão (deon, em grego, significa dever) determina que a divulgação de seu

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labor só pode ter caráter informativo e nunca persuasivo, considerando o princípio da igualdade dentre os pares, ou seja, os outros arquitetos. A avaliação cabe ao destinatário da comunicação e nunca ao próprio profissional, que não pode se autopromover - fato incabível diante da simetria competencial de todos os membros da corporação. Neste sentido, o Regulamento de Deontologia da Ordem dos Arquitetos de Portugal, de 2001, determina que “o arquiteto poderá oferecer e divulgar os seus serviços profissionais sob qualquer forma de comunicação, sempre dentro das limitações legais existentes”. Porém, a partir do princípio central da igualdade entre os pares, “a publicidade só poderá ser de caráter informativo e não persuasivo” e “em caso algum se poderão estabelecer comparações com outros profissionais” (art. 6º.1)3.

I A assinatura dos trabalhos

Em qualquer profissão liberal, a assinatura dos trabalhos produzidos em meio gráfico ou digital constitui requisito fundamental de validade deles, como deixa claro tanto a lei quanto a Resolução CAU 75/14. Trabalhos de Arquitetura e Engenharia, especialmente, são documentos e como tal devem ser assinados pelo seu autor ainda que não mais na própria pedra. Em Direito, o documento (palavra originada do latim doceo = ensinar, mostrar, indicar; mesmo étimo de “docência”) é a representação do pensamento incorporado a uma base, tangível ou intangível, que conserva a representação para comprovação de fatos jurídicos. O documento escrito, portanto, exprime e registra o pensamento, podendo, quanto ao conteúdo, ser declarativo (v.g., um recibo de quitação), expositivo (v.g., um memorial descritivo), propositivo como um

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projeto arquitetônico: como diz Argan, “projeta-se contra algo que é, para que mude” (Projeto e destino). O projeto, qualquer projeto, básico ou executivo, é um documento4que, prefigurando a obra, materializa criação intelectual, original ou não (v. Capítulo 5).

Os três elementos básicos dos documentos, de qualquer ordem, são (i) a autoria; (ii) o suporte; e (iii) o conteúdo. Quanto ao primeiro elemento, autor do documento é a pessoa a quem se atribui sua formação: a autenticidade do documento é exatamente a certeza de que o documento provém da fonte nele indicada - e é disso que aqui se cuida.

Assim, a legislação profissional sempre exige a assinatura nos trabalhos para que isso lhes dê autenticidade, o que não se confunde com veracidade, valor que se relaciona com o conteúdo do documento (terceiro elemento). Uma representação espacial qualquer, por exemplo, pode ser falsa quanto ao conteúdo (representando uma gleba com topografia acidentada como sendo plana) mas autêntica quanto à origem nela indicada (autor aparente e autor efetivo se identificam). Neste caso, pode se caracterizar o crime de falsidade ideológica, em havendo intenção do arquiteto no sentido de falsear a realidade para conseguir, por hipótese, aprovar um projeto de parcelamento do solo na Prefeitura (art. 299 do Código Penal).

A Lei nº 5.194/66, ainda vigente para os engenheiros, estabeleceu a obrigatoriedade da assinatura dos trabalhos de Engenharia e de Arquitetura no art. 14: “Nos trabalhos gráficos, especificações, orçamentos, pareceres, laudos, e autos judiciais ou administrativos, é obrigatória, além da assinatura precedida do nome da...

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