A vinculação do profissional com a obra de Arquitetura

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas99-117

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A intervenção do arquiteto é obrigatória na elaboração ou avaliação dos projetos e planos no domínio da arquitetura.

Art. 42.4 do Estatuto da

Ordem dos Arquitetos de Portugal

I Introdução

Para garantia da sociedade, o trabalho técnico profissional do arquiteto nunca pode ficar oculto. A vinculação pública do arquiteto com a obra que produziu é de fundamental importância do ponto de vista das implicações legais, sejam direitos ou responsabilidades do profissional, que derivam diretamente da identificação de sua autoria. Afastando a possibilidade da obra técnica anônima1, tal vínculo jurídico permite que seja dada alguma segurança à resposta da pergunta

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quis (= quem) em razão de um quid (= o que) genérico do ponto de vista profissional: qualquer trabalho de Arquitetura – seja uma consul-toria, uma perícia, um estudo de impacto de vizinhança ou um projeto urbanístico – deve ter identificação clara e precisa de seu autor.

Há, pois, uma obrigação legal de publicidade da autoria por força do interesse coletivo no controle da qualidade do trabalho prestado. Como se sabe, nas profissões liberais “os resultados podem ser heteronomamente fixados, os meios não” (Jorge Miranda), os meios devem ser estabelecidos pelo próprio profissional, de acordo com o estado da arte de sua profissão. Assim, os profissionais liberais – dentre eles os arquitetos – têm ampla autonomia de ação, respondendo perante a corporação pelas faltas técnicas e éticas que cometerem. Disto deriva a necessidade de se fixar com segurança, perante terceiros, a vinculação autor-obra. Como se percebe haverá aqui, na verdade, duas obrigações interligadas e conjugadas: (i) a fundamental de estabelecimento do vínculo e (ii) a obrigação decorrente de publicização desse mesmo vínculo.

Se, no passado, o arquiteto inscrevia seu nome na própria fachada do edifício que construiu2, no ordenamento jurídico-arquitetônico brasileiro a ligação direta e permanente autor-obra ocorre presentemente de três formas precisas, exigidas pela lei:

(a) assinatura dos trabalhos;
(b) placa de identificação e, como meio mais eficaz,
(c) a Anotação de Responsabilidade Técnica (ART ou RRT).

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Tais determinações permitem que tanto o Poder Público quanto a corporação profissional saiba exatamente quem é o arquiteto responsável pela construção e que terá, eventualmente, de sofrer sanções se o trabalho não tiver a qualidade esperada. É, no limite, o caso da ruína funcional ou efetiva (v. texto 5). Permite também, no aspecto positivo, que se estabeleçam os direitos autorais decorrentes do projeto arquitetônico e, depois, do edifício concluído.

É importante observar, de início, que nas demais profissões liberais não ocorre este controle incisivo sobre a atividade seja do engenheiro, seja do arquiteto. Tanto o ato médico quanto os processos judiciais não exigem comunicação individual detalhada à corporação (CRM e OAB), por exemplo, como acontece na Engenharia e na Arquitetura. A explicação estaria no risco, no “sério dano social” que a edificação pode significar – e isto pode ser verificado até mesmo no Código de Hammurabi (v. capítulo 4). Porém, o mesmo perigo – ou até maior – aparece também com a Medicina, e aqui não existem tantas formas de controle da atividade do profissional. A questão é que a atividade do engenheiro ou do arquiteto, além da possibilidade de dano, se prolata longamente no tempo, o que potencializa o risco pela duração dela.

De outro lado, se tais obrigações implicam em publicidade legal do trabalho do arquiteto, é certo que a deontologia da profissão (deon, em grego, significa dever) determina que a divulgação de seu labor só pode ter caráter informativo e nunca persuasivo, considerando o princípio da igualdade dentre os pares, ou seja, os outros arquitetos. A avaliação cabe ao destinatário da comunicação e nunca ao próprio profissional. Neste sentido, o Regulamento de Deontologia da Ordem dos Arquitetos de Portugal, de 2001, determina que “o arquiteto poderá oferecer e divulgar os seus serviços profissionais sob qualquer forma de comunicação, sempre dentro das limitações legais existentes”. Assim, “a publicidade só poderá ser de caráter informativo e não persuasivo” e “em caso algum se poderão estabelecer comparações com outros profissionais” (art. 6º.1).

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II A assinatura dos trabalhos

Em qualquer profissão liberal, a assinatura dos trabalhos produzidos constitui requisito fundamental de validade deles. Trabalhos de Arquitetura e Engenharia, especialmente, são documentos e como tal devem ser assinados pelo seu autor ainda que não mais na própria pedra. Em Direito, o documento (palavra originada do latim doceo = ensinar, mostrar, indicar; mesmo étimo de “docência”) é a representação do pensamento incorporado a uma base, tangível ou intangível, que conserva a representação para comprovação de fatos jurídicos. O documento escrito, portanto, exprime e registra o pensamento, podendo, quanto ao conteúdo, ser declarativo (v.g., um recibo de quitação), expositivo (v.g., um memorial descritivo), propositivo como um projeto arquitetônico: como diz Argan, “projeta-se contra algo que é, para que mude” (Projeto e destino). O projeto, qualquer projeto, básico ou executivo, é um documento3que, prefigurando a obra, materializa criação intelectual, original ou não
(v. capítulo 4).

Os três elementos básicos dos documentos são (i) a autoria; (ii) o suporte; e (iii) o conteúdo. Quanto ao primeiro elemento, autor do documento é a pessoa a quem se atribui sua formação: a autenticidade do documento é exatamente a certeza de que o documento provém da fonte nele indicada – e é disso que aqui se cuida.

Assim, a legislação profissional sempre exige a assinatura nos trabalhos para que isso lhes dê autenticidade, o que não se confunde com veracidade, valor que se relaciona com o conteúdo do documento (terceiro elemento). Uma representação espacial qual-

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quer, por exemplo, pode ser falsa quanto ao conteúdo (representando uma gleba com topografia acidentada como sendo plana) mas autêntica quanto à origem nela indicada (autor aparente e autor efetivo se identificam). Neste caso, pode se caracterizar o crime de falsidade ideológica, em havendo intenção do arquiteto em falsear a realidade para conseguir, por hipótese, aprovar um projeto de parcelamento do solo na Prefeitura (art. 299 do Código Penal).

A vigente Lei nº 5.194/66 estabelece a obrigatoriedade da assinatura dos trabalhos de Engenharia e Arquitetura no art. 14: “Nos trabalhos gráficos, especificações, orçamentos, pareceres, laudos, e autos judiciais ou administrativos, é obrigatória, além da assinatura precedida do nome da empresa, sociedade, instituição ou firma a que interessarem, a menção explícita do título do profissional que os subscrever e do número da carteira profissional”. Esta norma é praticamente a mesma do art. 6º da primitiva regulamentação de 1933, apenas com a inserção do número da carteira profissional, que já existia (art. 14). Na lei francesa sobre arquitetura, de 1977, é estabelecido no art. 15: “Tout projet architectural doit comporter la signature de tous les architectes qui ont contribué à son élaboration”4.

Considerando o disposto naquele art. 14, a Resolução CONFEA nº 282/83 explicitou o comando, ainda que isto seja desnecessário diante da abrangência da norma: “É obrigatória a menção do título profissional e número da Carteira Profissional em todos os trabalhos gráficos que envolvam conhecimentos de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, afins e correlatos, de caràter técnico-científico a seguir discriminados: I – publicações, inclusive em diários e periódicos de divulgação específica ou ordinária; II – livros, monografias, artigos e outros documentos relativos à matéria de ensino; III – laudos e/ou pareceres referentes a avaliações, vistorias, consultorias, auditorias e perícias judiciais ou extrajudiciais;

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IV – orçamentos e especificações para quaisquer fins; V – laudos, atestados, certificados, resultados ou relatórios relativos à fiscalização de obras ou serviços, ensaios, análises, experimentos, pesquisas, prospecções, padronizações, mensurações e controle de qualidade, receituário técnico; VI – planejamentos, programas, planos, ante-projetos e projetos; VII – pareceres sobre estudos de previabilidade e de viabilidade técnico-econômica; VIII – documentos de caráter técnico que integrem processos licitatórios; IX – anúncios publicitários relativos à oferta de trabalhos técnicos de profissionais, em órgãos de divulgação ou qualquer tipo de propaganda; X – outros trabalhos técnicos não especificados nos itens anteriores”. Extrai-se dessa listagem exemplificativa que o número de atuações do arquiteto que gera direitos autorais é menor que aquelas geradoras de responsabilidades (v.g., um orçamento). Ademais, a mesma resolução pune com sanção pecuniária (multa) o profissional que a infringir5.

Entretanto, na lei de 2010 que cria o CAU-BR, o tema foi englobado pela norma referente às placas, num dispositivo abrangente de toda forma de comunicação dirigida seja ao cliente, seja ao público em geral, seja à autoridade pública. Iremos, portanto, analisá-la em seguida.

III As placas de identificação

Porque situada no espaço coletivo da cidade, a obra arquitetônica em construção, tal qual a mulher de César, não precisa somente estar sendo erguida em conformidade com o projeto e, logo, com a...

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