A vida do bem jurídico-penal

AutorAntonio Fábio Medrado de Araújo
Ocupação do AutorAssessor de Desembargador (2a Câmara Criminal), Tribunal de Justiça da Bahia, Brasil
Páginas28-47

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De início, organizemos uma retrospectiva do bem jurídico-penal, ou simplesmente bem, não alheios ao enunciado de Kuhn (1997, p. 27): “A competição entre segmentos da comunidade científica é o único processo histórico que real-mente resulta na rejeição de uma teoria ou na adoção de outra”.

Roxin (2000, p. 21) propõe que a “[...] tarefa do Direito Penal foi limitada, como frequentemente se diz hoje, à ‘proteção subsidiária de bens jurídicos’ [...]”. E de onde vem tal ideia?

A noção de bem jurídico aflora da dialética Feuerbach «» Birnbaum, na primeira metade do século XIX (cf. Busato e Huapaya, 2007; Zaffaroni, 1989; Baratta, 1994).

Feuerbach (1989) defende um hipercontratualismo positivista: “[...] tudo se esgotava no jurídico, não havia nada mais do que isso (tudo surgia do ato formal do contrato), com o qual, se o Estado era o Direito (o contrato), não havia outra possibilidade de limitá-lo que sua própria

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vontade” (Bustos Ramírez, 1989, p. 46). A rigor, portanto, crime é lesão a direito-dever subjetivo de seus atores, disciplinados estatalmente. E a liberdade seria o direito-dever síntese.

Desde um contrapositivismo naturalista, Birnbaum (1834) se opôs à tese feuerbachiana. Ele acreditava que delito algum lesiona direitos, em si ilimitáveis, mas seu objeto, bem jurídico, o qual, ou nato (ontológico) ou adquirido (social), pertence-nos juridicamente. Logo, os bens se encontram além do fenômeno jurídico-estatal, que não os cria, só preserva.

A dialética Feuerbach «» Birnbaum, em ver-dade, ilustra a tensão positivismo «» contrapositivismo (ou jusnaturalismo). Historicamente, esse binômio reduziu as diferentes concepções sobre bem jurídico a uma gradação pendular, linear e unidimensional.

Apóstolo da obediência, Binding se filia ao positivismo de Feuerbach, supondo o bem jurídico como “[...] estado valorado pelo legislador”.

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Ou seja, norma e bem integram uma unidade--dual. Tanto que lesionar um bem implica, automaticamente, em desobediência à norma do Estado. Binding reconfigura a visão feuerbachiana e substitue a liberdade pela obediência, qual direito-dever nuclear.

Já para von Liszt (1927, p. 11), “[...] todos os bens jurídicos são interesses vitais, interesses do indivíduo ou comunitários”. Ele nada faz senão recuperar, com alguma originalidade, a perspectiva de Birnbaum. Ao fazê-lo, diz que os bens, cujo locus é a vida, ultrapassam o Direito. E, quando identificados, elevam-se à condição de bens jurídicos, via norma estatal. Mas o que há de novo, relativamente a Birnbaum? Ora, von Liszt desloca a identificação dos bens jurídicos do Direito à Política Criminal, sem, no entanto, estabelecer-lhe um método, ou mesmo desenvolver seu conceito de “interesses vitais”.

De volta ao positivismo, à sombra neokantista, ganha corpo uma pretensão de ruptura, quan-

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to à norma. Equipara-se o bem não ao leitmotiv material do injusto, e, sim, à ratio legis criminal, a um fator teleológico-interpretativo dos tipos penais. Honig (apud Peña Cabrera, 1995, p. 39),
p. ex., observa que o bem jurídico “[...] é o fim reconhecido pelo legislador nos preceitos penais individuais [...]”. Porém, inexiste ruptura. Apenas se flerta com o jusnaturalismo, realocando o bem no espaço-tempo normativo, da dogmática para a zeetética. Ocorrera, pois, a sublimação do bem como referencial do injusto, vacância logo suprida pela Escola de Kiel. Em cartaz, o dever sociojurídico e a “alma do povo” (Bustos Ramírez, 1989, p. 50); consequentemente, déficit de garantias individuais e o Nazi “ensimesmado”:

[...] uma caricatura do poder divino. Assim como a seu gesto soberano falta inteiramente o poder de criação na realidade, assim também lhe faltam, como ao demônio, os atributos do princípio que ele usurpa: o amor atento e a li-

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berdade auto-sustentada. Ele é mau, levado pela compulsão e tão fraco quanto sua força. Assim como se diz que a onipotência divina atrai as criaturas para si, assim também a potência satânica e imaginária tudo atrai para dentro da sua impotência. Eis aí o segredo de seu domínio. O eu que projeta compulsivamente não pode projetar senão a própria infelici-dade, cujos motivos se encontram dentro dele mesmo, mas dos quais se encontra separado em sua falta de reflexão. Por isso os produtos da falsa projeção, os esquemas estereotipados do pensamento e da realidade, são os mesmos da desgraça. Para o ego que se afunda no abismo de sua falta do sentido, os objetos tornam-se as alegorias de sua perdição encerrando o sentido de sua própria queda. Segundo a teoria...

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