O uso dos smartsphones na relação de emprego: uma análise do poder na empresa para além do contrato de trabalho

AutorAdriane Reis de Araujo/Kaspar Villadsen
CargoProcuradora Regional do Trabalho/Associate Professor, Ph.d. Departmemt of Management, Politics & Philosophy CBS, Professor visitante, IAG, PUC-RJ
Páginas347-363

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I - Introdução

As novas tecnologias de comunicação, quando implementadas, facilitam a aceleração e intensificação dos processos de trabalho ao mesmo tempo em que contribuem para incrementar a pressão sobre os empregados em termos de desempenho, tempo de resposta e disponibilidade virtual (accessibility). O aumento, incentivado pelas empresas, da utilização de tecnologias da comunicação (anytime-anywhere technologies) na vida laboral contemporânea, tais como telefones celulares, smartphones, tablets e similares traz à tona a questão sobre como nós poderemos assimilar e avaliaras consequências deste rápido desenvolvimento. Os pontos críticos detectados envolvem a potencialidade da intensificação do trabalho, aumento do controle empresarial e a possibilidade de novas formas de vigilância pela comunicação e troca de dados em rede.

Tome-se o exemplo dos smartphones oferecidos pelo empregador. Esses aparelhos em regra são compreendidos como ferramentas que permitem grande liberdade pessoal e maior flexibilidade aos trabalhadores.

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Seus benefícios incluem inúmeras possibilidades de conectividade, acesso rápido à informação e meios eficazes para o armazenamento e troca de dados em qualquer tempo e lugar. Em alguns casos, entretanto, os smartphones registram um efeito colateral danoso ao sedimentar o caminho para a intensificação do trabalho, aumento da vigilância e estreitamento do controle empresarial. Embora sua propaganda se fundamente em promessas de redução das horas de trabalho, a adoção dessa tecnologia com frequência promove efeito oposto de dimensão considerável.1

A discussão sobre a forma como as novas tecnologias intensificam as redes de controle e vigilância encontrou, até o momento, lugar predominante em pesquisas sociológicas internacionais, estudos críticos de organizações e em estudos sobre tecnologia e informação.2 Em âmbito nacional, Cavazotte, Brollo and Moreno3 são pioneiros no assunto. No entanto, até o momento, os estudos jurídicos brasileiros sobre o tema são escassos. Em face da ausência de regulamentação legal específica, o enfrentamento da matéria tem-se restringido à análise da ofensa ao direito da intimidade.4 A repercussão em obrigações trabalhistas (jornada e remuneração, principalmente) é analisada de forma preponderante pela jurisprudência nacional por meio da interpretação analógica do art. 244, § 2°, da CLT.

No presente estudo, apresentaremos alguns dos principais pontos de vista da literatura internacional para partirà análise crítica da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho sobre o controle da jornada laboral pelas novas tecnologias da comunicação e suas repercussões. Sugerimos ainda três linhas de pesquisas futuras:

  1. primeiro, a análise sobre a maneira como as novas tecnologias da comunicação intensificam e transformam o equilíbrio entre trabalho/ vida privada;

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  2. segundo, o papel da tecnologia da comunicação nas relações profissionais (e hierárquicas), com especial ênfase nas novas formas de controle e vigilância empresarial;

  3. terceiro, uma questão mais teórica sobre como o conceito de poder, principalmente na situação corrente em que os trabalhadores em geral acolhem voluntariamente a intensificação do uso das novas tecnologias de comunicação e disponibilizam seus dados de desempenho aos empregadores; em resumo, os empregados tendem a investir voluntariamente em relações de poder que se concretizam para além do contrato de trabalho formalizado.

II - A intensificação do trabalho e o equilíbrio entre trabalho e vida privada

As novas tecnologias da comunicação são comumente vistas como ferramentas úteis que permitem ao usuário conectar-se de forma contínua ao ambiente de trabalho, bem como a resolver pendências a distância (quando está fisicamente ausente). Tomamos como ponto de partida, contudo, que tais tecnologias ultrapassam essas facilidades para constituírem um componente crucial das relações de poder das organizações contemporâneas e, em particular, do processo de intensificação do trabalho.

Em que pese os acordos contratuais relativos à jornada — "escolher seu próprio tempo" (flex time) —, baseados nas tecnologias da comunicação, possam ser convenientes para os trabalhadores, eles frequentemente resultam em mais trabalho fora das horas de trabalho convencionadas, isto é, à noite, nos fins de semana e feriados.5 Em termos gerais, tem-se argumentado que a proliferação das novas tecnologias da comunicação (anytime-anywhere technologies) estão minando fronteiras físicas "com o efeito de unir trabalho e lazer, profissional e pessoal, escritório e casa".6 Tais tendências à transgressão ou mesmo ao colapso das fronteiras convencionais e divisões de tempo geralmente implicam a intensificação do trabalho com um número de horas de trabalho superiores àquelas estipuladas no contrato de emprego.

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Examinando o papel da adoção de tecnologia no ambiente de trabalho, a literatura especializada7 no tema relata que o uso de mecanismos modernos de comunicação pode significara permanente disponibilidade dos trabalhadores aos seus superiores e colegas, os quais esperam resposta rápida e a solução de problemas, mesmo durante os intervalos da jornada ou períodos de repouso. A utilização dessas tecnologias é vista aqui como parte do aumento da dissolução das barreiras entre trabalho e não trabalho, a qual pode gerar conflitos entre demandas profissionais e pessoais.8 Este efeito é levado a cabo de forma mais intensa entre "analistas simbólicos", ou seja, trabalhadores intelectuais que dependem da capacidade intelectual para solução de problemas complexos.

A crescente exigência de disponibilidade virtual dos empregados foi denominada "o imperativo móvel"9 ou "o imperativo tecnológico’’.10 Este imperativo implica, primeiro, que as pessoas podem ser chamadas a prestar contas por não possuírem equipamentos de comunicação. Esta cobrança se robustece consideravelmente quando são os empregadores a patrocinar os equipamentos aos seus empregados. Segundo, os usuários podem ser chamados a prestar contas pela não utilização do celular, por desligá-lo ou a explicar a razão pela qual não estavam acessíveis. Esta dimensão do imperativo tecnológico foi recentemente documentada em um estudo de caso no Brasil em que os profissionais eram repreendidos pelos superiores quando inacessíveis ou quando demoravam a responder.11

Em suma, pesquisas recentes revelam um lado insidioso da adoção da tecnologia da comunicação na relação de trabalho ao demonstrar como a vida dos empregados pode ser invadida por novas exigências de

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conectividade e novas linhas de visibilidade. A intensificação do trabalho (mais horas trabalhadas por semana) resultante dessas demandas já está bem documentada.12 Entretanto, a extensão da alteração derivada dessa pressão sobre a subjetividade dos trabalhadores — ou seja, se a elas se seguem redefinições do sentido que os trabalhadores atribuem a si próprios, a suas relações e a sua vida social — ainda deverá ser estudado dentro do contexto nacional.

III - Aumentando o controle ea vigilância

Outra linha de pesquisa internacional relevante a nossa análise centra-se na maneira como as novas tecnologias da comunicação atuam nos arranjos relacionados a trabalho mais flexíveis, frequentemente denominados "organizações em rede" (network organisation). Aqui, o aparecimento de formas de organização do trabalho em rede é identificado com a concomitante intensificação da vigilância em rede.13 Neste domínio da pesquisa, a crítica se expressa em relação a efeitos claramente apurados nos contratos de trabalho flexíveis: aumento da vigilância gerencial, aumento da disponibilidade de dados pessoas do empregado e o advento da vigilância e controles recíprocos.14

Podemos falar em tecnologia da comunicação como um compo-nente de aumento de vigilância quando a tecnologia, por exemplo, serve como mecanismo de avaliação do comportamento dos trabalhadores em termos de disponibilidade virtual, tempo de resposta e agilidade no manejo de dados. A maior contabilização e mensuração do desempenho não se restringem a empregados com menor qualificação nos serviços ou indústria manufatureira. Profissionais de nível superior, que frequentemente eram excluídos desse cenário, uma vez que eram vistos como "usuários tecnológicos autônomos" dispondo de maior espaço de manobra em seu trabalho diário e expandindo o alcance de sua ação por meio das tecnologias, também são atingidos.

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A pesquisa demonstra que esses profissionais também são submetidos simultaneamente ao aumento do controle formal ascendente tanto quanto a novas formas de vigilância recíproca.15 Assim, a questão da privacidade pessoal, acesso a dados pessoais e monitoramento da conectividade e tempo de resposta não podem ser separados do estudo do uso das tecnologias da comunicação.

O termo "rede de vigilância" parece bastante pertinente à problematização das consequências da adoção das novas tecnologias da comunicação, na medida em que aparelhos de comunicação móvel permitem formas de poder que não estão confinadas aos estabelecimentos institucionais, mas se realizam por meio de redes difusas de troca de informação. Nessa ótica, o controle gerencial se torna integrado às redes de informação que estabelecem conexões pela organização, permitindo a gerentes e colegas perpetuar o monitoramento dos empregados para além dos muros da organização.

Devemos, no entanto, ser cautelosos em imaginar que a proliferação e utilização das novas tecnologias é parte de uma nova forma de...

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