Para uma tipologia da inoficiosidade
Autor | Alexandre Pimenta Batista Pereira |
Ocupação do Autor | Professor Adjunto na Universidade Federal de Viçosa |
Páginas | 49-75 |
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Longe de um regime em numerus clausus que o presente capítulo possa sugerir, procurou-se colher situações comuns, descritas sob semelhantes características, a im de as enquadrar em uma taxionomia própria. Tanto mais se desponta a maleabi-lidade das iguras típicas, quanto mais se enriquece o direito. Ao contrário, quando o legislador impõe taxativamente o tipo fechado, há o afastamento da realidade97.
Convém lembrar que conceito e tipo são iguras jurídicas distintas.
O conceito, geral e abstrato, possibilita o juízo de inclusão ou de exclusão de certo objeto numa determinada classe, ao passo que o tipo permite a gradação - havendo casos mais típicos, outros menos98.
O tipo, desse modo, surgiu para captar as luídas transições da vida, pressupondo a abertura do sistema. “Não existe um nu-
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merus clausus de tipos jurídicos: a formação de outros tipos dessa espécie seria inteiramente possível”99.
Com efeito, a expressão tipo fechado revela-se imprópria e contraditória. Imprópria porque o tipo tem na lexibilidade a sua nota distintiva. Contraditória porque o direito, quando fecha o tipo, cristaliza-se em conceito de classe, a impossibilitar a maleabilidade das construções100.
Porquanto aparecem zonas de imprecisão, dominadas pela impossibilidade de determinar, de forma incisiva, o juízo classi-icatório, os conceitos fechados são imprecisos.
O pensamento fuzzy, incorporado na chamada teoria dos conjuntos difusos, tenta repensar os limites do sistema binário. A lógica difusa procura romper com os juízos de inclusão/exclusão, possibilitando matização dos predicados classiicatórios; não só gradua as noções de que se utilizam os conceitos, como também afasta dos casos semelhantes a aplicação por analogia101. Tratase, em essência, da lógica do mais ou menos.
Para melhor possibilitar a compreensão da complexidade da vida, o direito utiliza a taxionomia, que, todavia, não pode ser vis-ta como im em si mesma. Classiicações diversas podem coexistir com diferentes propósitos. “Por essa razão, é importante declarar claramente qual o propósito da taxionomia de que se serve”102.
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Oferecer uma classe nova sem desvendar sua ratio, nem explicar as serventias ao progresso cientíico, soa puro dog-matismo. Apresenta, na verdade, o pensamento abstrato tendência para o esvaziamento de sentido. Quanto mais o grau de abstração dos conceitos aumenta, tanto mais vazios de conteúdo serão eles103.
Em razão da aspiração cultural pela ordem sistêmica, urge ainal aproximar categorias semelhantes. O negócio inoicioso não foi nos códigos tratado de modo coerente; tampouco a ele se oferece uma organização autônoma104.
Dos modelos consagrados às espécies de ocorrência ca-mulada, os casos de incidência da inoiciosidade serão, assim, apresentados ao longo do capítulo, longe de seguirem a ordem de enumeração do Código Civil de 2002.
Oferece-se o modelo negocial havendo em comum, nas variadas subespécies, o desvio de proporção quantitativa: o excesso. Isso, entretanto, jamais lhe retira a qualidade típica, ou mesmo a juridicidade.
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BETTI, a propósito, entende que a avaliação negativa pode resultar tanto da não correspondência dos elementos constitutivos e pressupostos necessários ao tipo, quanto do impedimento espontâneo, realizado em concreto, de efeitos próprios do modelo legal105.
Por isso, ainda que a questão da juridicidade do negócio esteja ligada à licitude, não se exclui a possibilidade de estudo do tipo, quando a ele se confere um desvio de perspectiva modelar, qual seja, o vício106.
Mencionada como caso de aplicação do excesso107, a doação é dita inoiciosa quando excede a parte de que o doador poderia dispor em testamento, no momento da liberalidade108.
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Da maneira como fundamentada na lei, a perspectiva temporal para cálculo do excesso suscita críticas, longe de qualquer consenso.
BEVILAQUA justiica o sistema, levando em conta a injus-tiça de se calcular a porção disponível no momento da abertura da sucessão:
“Realmente o doador poderia ser rico, dar moderadamente, e depois empobrecer, por qualquer razão, estranha à sua liberdade. E não é razoável, que os herdeiros que tiverem herança escassa, por um acidente da vida, enriqueçam à custa do donatário de muitos anos passados.”109Alerta ALVIM que o sistema possa apresentar inconvenientes, já que nenhum outro país o adotara. O critério abre a necessidade de estimar o montante dos bens em várias épocas, se várias forem as doações110. Na eventualidade de a fortuna do pai diminuir, “não será o donatário que estará sendo beneiciado à custa dos outros irmãos?”111
Na colação, o renunciante à herança, ou o que dela foi ex-cluído, deve conferir as doações recebidas, a im de repor a parte inoiciosa.
A doação aos descendentes em vida importa adiantamento de legítima; gera, ainda, obrigatoriedade de colação, quando não dispensada pelo doador. A colação tem, assim, intuito de igualar a legítima dos descendentes, cujo montante é apurado depois de aberta a sucessão. O princípio seria supletivo, podendo o doador deixá-lo de lado no momento da liberalidade, ou em testamento.
MENGONI lembra que o fenômeno da elasticidade da legítima autoriza o de cujus a, em vida, fazer doações que, in-
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clusive, podem se valorizar posteriormente112. Em caso de excederem a porção disponível, importa anular tão-somente a porção excedente.
Que se deva apurar o excesso ao tempo da liberalidade entendem portanto os tribunais113. De igual maneira, o Código Civil de 2002 abarca a mencionada regra, ao dispor, no art. 2.007, que o excesso é apurado nas doações no momento da liberali-dade.
Ora, se é iníquo questionar, em vida, recebimento de herança futura, não faltaria possibilidade jurídica de se propor a ação de redução, antes de a sucessão se abrir114Pela resposta airmativa, ALVES entende que os herdeiros têm, antes da morte do doador, mera expectativa de direito. Haveria, pois, carência de ação quando proposta a demanda em vida115.
No mesmo sentido, CUNHA GONÇALVES:
“O momento jurídico em que a redução ou revogação da doa-ção inoiciosa pode ser requerida é o da abertura da suces-são do doador; pois, antes da morte deste, não se pode saber
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quais são os herdeiros legitimários, nem qual é a legítima deste ou a quota disponível do doador.”116
Sem embargo, VILLELA argumenta que a herança se vincula, nesse tempo, a uma situação potencial e, por isso, tem, na luidez, sua característica fundamental. A lei não obriga, destar-te, a espera da morte do doador para se demandar a nulidade da parte inoiciosa. Duas situações seriam aí díspares: a herança no momento da liberalidade e quando da morte do doador117.
Cabe, ainda, questionar como se calcula a porção disponível, caso ocorram doações sucessivas.
Segundo entendimento majoritário118, havendo doações sucessivas, a redução se dirige à última, devendo haver soma das doações anteriores, sob pena de se permitir ao donatário dilapidar o patrimônio. No entanto, o ponto de partida para cálculo da inoiciosidade é a primeira:
“Considerando-se para cálculo dessa parte disponível, quer para as liberalidades entre vivos, quer para as deixas testamentárias, como integrando o patrimônio do de cujus, todos os bens dos quais tenha ele anteriormente disposto.”119
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Do contrário, desdenhar-se-ia a porção legitimária, a prevalecerem sempre as disposições do presente.
O Código Civil de 2002 disciplina que as doações, feitas em diferentes datas, serão reduzidas, a partir da última, até a eliminação do excesso - art. 2.007, § 4º. Não limita, contudo, de forma cronológica, o reducionismo, como se veriica em sede germâni-ca em atenção aos dez anos que antecedem a abertura da sucessão: § 2325 Abs. 3 BGB.
Não só pela redução da porção excedente à quota disponível, senão ainda pela proibição de pesos e de condições, gravados sobre a legítima120, são a doação e o testamento searas próprias de incidência do chamado princípio da intangibilidade da legítima, cuja origem remonta ao Direito Romano121. A justiicati-va da delação da legítima no Direito das Sucessões marca a proteção da família, sob uma perspectiva patrimonial, a exprimir
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vantagens e garantias de subsistência, tanto em vida como para depois da morte122.
Estando subordinadas à aplicação de regras da reserva legitimária, as liberalidades testamentárias podem não ser cumpridas in totum123.
Nesse sentido, os códigos estabelecem uma ordem de redução às liberalidades: primeiro as disposições a título de heran-ça; depois os legados; e, por im, as liberalidades feitas em vida pelo de cujus124. Ocorre, assim, proporcionalmente a redução das disposições testamentárias nas quotas dos herdeiros instituídos; não bastando estas, reduzem-se os legados, na proporção de seu valor125.
Desse modo, o art. 1.967 § 1º do Código Civil estabelece que, em caso de excederem as deixas testamentárias a porção disponível, “serão proporcionalmente reduzidas as quotas do herdeiro ou herdeiros instituídos, até onde baste, e, não bastando, também os legados, na proporção do seu valor”.
A ação de redução, para afastar a lesão da...
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