Por uma repersonalização do direito do trabalho

AutorKonrad Saraiva Mota
Páginas155-160

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1. Ponto de partida: os pressupostos do raciocínio teórico empreendido

Todo raciocínio teórico precisa de um ponto de partida. São estabelecidos pressupostos a partir dos quais a argumentação se desenvolve. Obviamente que tais pressupostos exigem uma relevante base epistêmica, de modo que o raciocínio terá maior consistência em função da coerência do que se pressupôs. O presente artigo constrói-se a partir de alguns pressupostos de índoles política, econômico-social e jurídico-normativa.

Na arena política, o presente artigo partirá do pressuposto de que o Direito do Trabalho no mundo ocidental foi positivamente institucionalizado para conferir alicerce normativo ao então emergente Estado Social, surgido no final do século XIX e início do século XX como superação da estrutura firmada (mas não confirmada) do Estado Liberal1, sustentada nas teses de igualdade formal, liberdade individual e autonomia contratual, cujo tronco cavou raízes nas teorias de autorregulação econômica e não intervencionismo estatal.

Em âmbito econômico-social, será pressuposto o fato de que o Estado Social e o Direito do Trabalho nele institucionalizado foram fortemente impulsionados por reivindicações gestadas como resultado das lutas travadas pela classe-que- -vive-do-trabalho contra as consequências danosas prove-nientes de um capitalismo incipiente. Obviamente que as aludidas reivindicações somente se apresentaram possíveis por causa da divisão social do trabalho promovida pela burguesia, cuja ética proclamava a acumulação de riquezas e a sujeição do trabalho ao capital.

Finalmente, no campo jurídico-normativo, este ensaio situará a institucionalização do Direito do Trabalho no mesmo período em que efervesciam as teses de (pseudo) neutralidade científica do Direito, com afastamento entre norma, política, economia e moral, cujo ápice fora alcançado nas teorias positivistas exclusivas do início do século XX.

Eis, portanto, o ambiente político, social, econômico e jurídico utilizado como pressuposto da argumentação a seguir desenvolvida, não se ignorando a multiplicidade de acontecimentos que permearam o "surgimento" do Direito do Trabalho, mas que, aqui, não serão enfrentados pelo necessário corte epistemológico proposto pela abordagem.

2. O direito e seus componentes não normativos

O Direito não é neutro! Esta afirmação é, hoje, algo amplamente aceito pela teorética jurídica. Enquanto resultado de uma atividade humana, o Direito traz consigo uma série de influências de índole política, econômica e ideológica, que acaba repercutindo no modelo normativo institucionalizado em uma dada época. O Direito é, portanto, cultural e histórico.

A institucionalização do Direito no Estado moderno, com a consequente concepção de seu sistema jurídico (Direito oficial), é sempre resultado de uma decisão política, que pode ou não refletir a vontade popular. Não se está, aqui, incorrendo no equívoco de reduzir o Direito à vontade do legislador político "de plantão", sob pena de gerar um indesejado déficit de legitimação ética da norma. O que se está afirmando é que, sobretudo na consecução do Direito estatal, a decisão política é força que se faz presente na criação normativa.

A moralidade existente em uma determinada sociedade, em um determinado tempo, também é espelhada na norma jurídica. Ainda que a Filosofia do Direito consiga estabelecer pontos de diferenciação entre o modelo de conduta jurídico e o modelo moral, o certo é que o Direito sempre carregará em si certa medida de valoração. Como preleciona Vasconcelos2

"a norma prevê condutas segundo valores tidos por justos, os quais se oferecem aos indivíduos, do ponto de vista de sua liberdade, como possíveis, e à sociedade, do ponto de vista de sua preservação e desenvolvimento, como desejáveis".

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Já a economia também tem seu grau de influência na formação do Direito, posto que fruto da interação social, sobretudo no mundo capitalista. Para Polanyi3, "nenhuma sociedade poderia sobreviver durante qualquer período de tempo, naturalmente, a menos que possuísse uma economia de alguma espécie". Porém, para o autor, foi a economia de mercado que alterou o rumo da sociedade humana, imiscuindo-se na política, na natureza e na organização produtiva. Não é à toa que Polanyi é considerado o precursor da Economia Institucional. Concordando ou não com o referido economista, não se pode negar a influência que a economia exerce na vida política e ética da sociedade moderna, bem assim no Direito sistematizado.

Percebe-se, portanto, um verdadeiro entrelaçamento entre Direito, Política, Economia e Moral, todos dialogando constantemente no seio social. Conforme sustentado por Habermas4, "[...] somente a consciência de normas, tradicionalmente consolidadas e moralmente obrigatórias, modifica a jurisdição e possibilita a transformação de um poder factual, num poder normativo".

3. Ciência do direito e positivismo jurídico exclusivo: tentativa de afastamento dos componentes não normativos do direito

Não foi tarefa fácil para a Sociologia ser assimilada enquanto ciência dentro dos parâmetros metodológicos prevalentes no final do século XIX e início do século XX. Por estudar o homem em sociedade, com toda sua complexidade, a Sociologia não conseguia se amoldar nas estruturas das leis gerais criadas pelas ciências exatas e naturais. Os processos científicos de experimentação e confirmação não encontravam no homem a sua justa medida.

A primeira matriz teórica que tentou afastar qualquer aspecto metafísico da Sociologia foi o positivismo de Augusto Comte (1798-1857). Em linhas gerais, o positivismo comteano preconizava que a Sociologia somente seria considerada ciência se atingisse a mesma positividade das ciências exatas e naturais, como a matemática, a física, a química e a biologia. Para tanto, teria que se valer da experimentação, classificação e comparação como métodos. Somente assim, seria possível a criação de leis gerais sociológicas.

Outro momento relevante na tentativa de avaloração da Sociologia se deu com o movimento intelectual europeu conhecido como Círculo de Viena (1922-1936), no qual professores da Universidade de Viena reuniram-se para conceber o que denominaram de empirismo lógico, a partir de uma perspectiva reducionista de que os fenômenos sociais deveriam ser observados e testados mediante de mecanismos estritamente racionais, de modo que a atividade científica construiria indutivamente as teorias.

O empirismo lógico prescrevia que todos os enunciados e conceitos referentes a um dado fenômeno deveriam ser traduzidos em termos observáveis (objetivos) e testados empiricamente para verificar se eram falsos ou verdadeiros. A observação estava, ao mesmo tempo, na origem e na verificação da veracidade do conhecimento, utilizando-se a lógica e a matemática como um instrumental a priori que estabelecia as regras da linguagem. Assim, a atividade científica ia construindo indutivamente as teorias, isto é, transformando progressivamente as hipóteses, depois de exaustivamente verificadas e confirmadas pela observação, em leis gerais e as organizando em teorias, as quais se propunham a explicar, prever e controlar um conjunto ainda mais amplo de fenômenos.5

No campo do Direito, a assunção do posto de ciência social aplicada também dependia de um esforço teórico voltado ao afastamento de componentes políticos e morais, considerados não científicos. Exsurge, nesse ambiente, o positivismo jurídico: exegético e legalista, tendo como maior expoente o jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1973) e sua Teoria Pura do Direito (1934). Para Kelsen, o campo de estudo da ciência do direito teria que se limitar à norma jurídica, desvinculando-se de toda e qualquer influência metafísica.

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do direito positivo [...]. Quando se intitula Teoria "Pura" do Direito é porque se orienta apenas para o conhecimento do direito e porque deseja excluir tudo o que não pertence a esse exato objeto...

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