Um esclarecimento científico em relação à construção da subjetividade como 'efeito de discurso' e a questão da adoção das crianças por parceiros homossexuais

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas88-106

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Nosso trabalho de aproximar o Direito e a Psicanálise sobre as condições de construção da subjetividade na transferência de referências, a partir de uma perspectiva transdisciplinar por meio da teoria lacaniana dos Discursos, nos levou a escolher uma temática mais pragmática para demonstrar os efeitos dos discursos contemporâneos sobre os sujeitos.

Portanto, nossa escolha forçosamente caiu sobre a questão da família, e do Direito da Criança, que está na origem do sujeito. Nós questionamo-nos sobre as profundas modiicações dos discursos tomados como laços sociais, e o surgimento nas últimas décadas das diferentes parentalidades que desencadeiam, atualmente, cada vez mais estimuladas pela tecnologia médica, uma nova demanda de adoção de crianças por parceiros homossexuais.

Entre diferentes orientações epistemológicas sobre a psicologia humana nós escolhemos a Psicanálise porque ela considera o sujeito como o resultado de um determinismo linguageiro e cultural. Uma concep-ção que faz certamente diferença na abordagem da inluência da sociedade sobre a construção do sujeito.

Visando principalmente a um esclarecimento cientíico para as futuras jurisprudências no domínio da adoção legal de crianças, nossa pesquisa se orientou no sentido do estudo do impacto e das consequências na construção psicológica da criança e do adolescente, acolhidos por novas modalidades de família e de parentalidade, especialmente aquelas liberadas da diferença dos sexos.

Portanto, é bem evidente que essa pesquisa se situa do lado do Direito da Criança pois a adoção,

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se nós devemos chegar lá, restará um Direito que prioriza os interesses e o desenvolvimento psíquico da criança em relação aos interesses dos adultos que participam dos novos projetos de constituição familiar: pais de origem, pais de intenção, terceiros doadores ou portadores, e sociedade.

A síntese dos argumentos teóricos que sustentam os eixos desta pesquisa acadêmica no nível de doutorado, orientado por Lesourd, sobre "as inluências recíprocas das organizações sociais e a psicopatologia individual ou coletiva" bem esclareceu com relação à "construção da subjetividade como efeito de discurso", e a importância do lugar e da função da família constituída sobre as diferentes modalidades do desejo:

Desde sua origem a psicanálise, ciência da construção do sujeito na sua especiicidade, colocou as questões da origem dos disfuncionamentos do ser humano na sua relação à sua história familiar (Freud, 1905; Lacan, 1946), à sua cultura (Freud, 1914; Lacan, 1969; Legendre, 1985) e ao que lhe especiica como ser humano: a linguagem (Freud, 1908; Lacan, 1943). Assim o estudo da construção do sujeito não pode ser concebido independentemente de seu lugar na sua família, instituição cujo operador ? a filiação e onde se jogam as primeiras construções da personalidade (Cf. Eixo 1). A família não é um grupo como os outros e os "lugares aí não são intercambiáveis" (Théry, 1996) ainda que em propondo novas formas de organização dos laços familiares nas leis sociais. As modiicações recentes das formas de organização da vida familiar e dos laços de aliança e da filiação inluem sobre a construção subjetiva das crianças e sobre a maneira como essas se representam os laços afetivos e sociais no mundo que elas descobrem, pois a função dos adultos no acolhimento da criança, ser em construção, é de "lhe ensinar o mundo, esse que começou antes do seu nascimento e que continuará depois de sua morte..." (Arendt, 1956; Lacan, 1938). Os processos de no-minações, escolha de nome e de sobrenome, mas tamb?m lugar no parentesco, lugar iliativo e lugar sexuado, estão assim no coração dos processos identitários e da construção da subjetividade primeiramente na pequena infância, depois então os remanejamentos subjetivos ao longo da vida (Cf. Eixo 2).

A construção da subjetividade se impõe do fato da prematuridade do ser humano, e conduz a uma série de remanejamentos sucessivos tanto dos modos de organização do pensamento quanto dos afetos que fazem desse tempo em família a base da organização futura dos laços de um indivíduo aos outros e a ele-mesmo (Cf. Eixo 3). Os processos de adolescência são, assim, a compreender (RASSIAL, 2000; GUTTON, 1996; LESOURD, 2001) como reconstruções e integrações dos processos infantis para o acesso do sujeito a um lugar e a uma função social, ambos consideradas como lugar de expressão do sujeito.

Assim, o lugar do ambiente familiar na construção do sujeito não pode ser extraído do lugar que acorda uma socie-dade dada às funções parentais e familiares baseadas sobre as leis de aliança e de troca entre os sexos (ARENDT, 1972, LÉVI-STRAUSS, 1997). A psicanálise em seguida, juntou-se aos trabalhos de antropólogos e de sociólogos da família. Não existe família fora de um laço social que determine os possíveis e os impossíveis das relações entre os seres humanos. A modiicação dos discursos organizadores do laço social inlui então sobre o lugar que pode tomar um indivíduo na sua relação aos outros, e sobre a expressão do mal-estar individual e coletivo na civilização (Cf. Eixo 4).

Portanto, nós pesquisamos quais são os conhecimentos mais recentes da Psicanálise sobre a constituição do sujeito na contemporaneidade, considerando o fenômeno humano da "transferência" - processo de atualização fantasmático na vida adulta de todas as referências simbólicas da infância -, e os proces-sos identiicatórios inconscientes e narcísicos nas novas coordenadas simbólicas.

Nós aprofundamos a pesquisa sobre o conceito de "identiicação primária", processo fundador da estrutura do inconsciente e matriz da série de identiicações significantes subjetivas que operam com toda sua especiicidade (de Lei da Linguagem), a partir de um ponto de negatividade em relação com a primeira subtração de todo-gozo, durante toda a vida, nas relações do sujeito com o outro. Desde o início de nossa pesquisa demonstramos que em razão desses fenômenos inconscientes, as relações humanas devem ser observadas e avaliadas numa perspectiva transferencial.

Para melhor compreender a subjetividade após o surgimento da neolinguística aprofundamos a pesquisa sobre a Teoria Lacaniana dos Quatro Discursos - o Discurso do Mestre, o Discurso da Universidade, o Discurso do Histérico e o Discurso do Analista -, e aqui nós incluímos um quinto discurso, proposto por Lacan - o Discurso do Capitalista -, para informar ao campo do Direito quais são os efeitos dessas derivas discursivas pós-modernas na subjetividade, e nos comportamentos humanos de hoje, segundo a clínica dos adolescentes e das condutas aditivas. Assim como, quais são os efeitos reparáveis da relação da psicopatologia com os discursos e os laços sociais, de nosso ponto de vista de psicanalista.

O objetivo especíico de nosso trabalho é de aplicar esses saberes ? questão da adoção homoparental, como um dos exemplos empíricos do "sujeito de direito na transferência" das referências infantis, um sujeito concebido como "sujeito da metáfora", sempre clivado, no nível do inconsciente, por efeito dos discursos. O objetivo é trazer uma contribuição original à Justiça, sobre os efeitos na subjetividade do adotado

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dos discursos produzidos, a propósito da homossexualidade, no círculo de sua família homoparental e no ambiente social. Uma contribuição cientíica, primeiramente, aos Direitos da Criança.

A problemática dessa pesquisa em doutorado é de orientar para o desenvolvimento e o aprofundamento de uma aproximação transdisciplinar, social e crítica da análise jurídica. Ela é baseada sobre a noção de "sujeito clivado" no nível do inconsciente, como efeito de discurso, de sua cultura e época, e de sua história pessoal. Nessa noção, a construção fantasmática adulta "se organiza como suporte do gozo e do desejo nos laços sociais e nos discursos que os organizam".

Pegando apoio nos nossos trabalhos anteriores a propósito da Lei do Nome-do-Pai e da Teoria Laca-niana dos Discursos, trata-se nessa pesquisa de veriicar se a adoção de crianças por parceiros homosse-xuais - isto é, a "homoparentalidade" como um dos componentes das diferentes e novas parentalidades de hoje -, produz efeitos especíicos sobre a subjetividade do adotado. E, em consequência, se ela produz efeitos especíicos sobre suas expressões psicopatológicas, durante a fase da adolescência, em relação com as diiculdades de internalização dos interditos fundamentais de humanização, visto que o universo simbólico e psíquico na pós-modernidade não se sustenta mais em estruturas simbólicas coletivas tradicionais.

2.1. A construção da subjetividade

Partindo da constatação de que "não existe sujeito fora de um laço social", a Psicanálise aborda a construção da subjetividade na sociedade e na família sob seus aspectos afetivos, pulsionais e linguageiros. A Psicanálise adota a lógica do terceiro incluído, e se preocupa com a preservação da subjetividade: "Como" e "em que", a Sociedade nos seus diferentes níveis, individual e coletivo, intervém na construção do aparelho psíquico. Ela estuda as leis que regem o campo do pensamento, o mundo da alma, colocando, no nível inconsciente, a causa do psiquismo no "consentimento à interdição fundadora" do gozo ilimitado, isto é, do homicídio e do incesto. Ela considera que a causa dos comportamentos humanos transgressivos é de predominância etimológica e cultural, mais do que genética. Tomando em conta os diferentes níveis da "realidade psíquica" consciente e inconsciente, a Psicanálise demonstra, a partir da clínica, o funcionamento dos processos iden-tiicatórios e relacionais, esses que exercem uma função muito importante no desenvolvimento da criança e de seu futuro.

A noção da constituição do sujeito, para os diferentes campos epistemológicos que estudam o psiquismo humano, concerne o conjunto de caracteres e de tendências, tanto somáticas quanto psíquicas, que o...

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