O tropismo da ordem jurídica para a conservação dos negócios

AutorAlexandre Pimenta Batista Pereira
Ocupação do AutorProfessor Adjunto na Universidade Federal de Viçosa
Páginas35-48

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8 - O princípio da conservação dos negócios jurídicos

O princípio da conservação dos negócios jurídicos é guia de interpretação e de execução aos negócios; e, sobretudo, pressuposto de aplicação das teorias da redução e da conversão na incidência social do negócio jurídico.

Com efeito, o interesse protegido pelo ato de autonomia privada se enfatiza em razão da utilidade social, manifestada em determinado momento histórico. “Há um defeito radical em reduzir o negócio jurídico a um mero fato psicológico do singular, desconhecendo nele a natureza de um fato social”48.

Assim, apresenta-se a noção de negócio jurídico em atenção ao reconhecimento social49. Despsicologizar50 o negócio jurídico

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representa necessidade de entendê-lo não em evidência à vontade particular das partes, senão em razão da cognocibilidade social. Partindo-se da noção da manifestação social da autonomia, desaconselhável seria impor ao negócio sanção de nulidade, uma vez que se lhe possa aproveitar a vontade, apta a gerar efeitos.

Conquanto contenha vício uma parte singular, o negócio não se deve inutilizar na totalidade - utile per inutile non viciatur: extirpa-se a parte inválida do negócio; conservam-se válidas e eicazes as demais51.

Essa máxima, que se costuma repetir como provérbio jurídico, pouco se ajusta, contudo, ao rigor do formalismo romano, cuja observância tinha incidência, sobretudo, nos atos processuais52.

A respeito da conservação dos negócios jurídicos, melhor se expressar, pois: “cum principalis causa non consistit, ne ea quidem quae sequuntur locum53.

Não se pode, portanto, impossibilitar a produção de efeitos às declarações, por razões longe de expressivas. Como quer

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DOMINGUES DE ANDRADE: “Os negócios devem ser tratados mais no sentido da sua validade que no sentido da sua nulidade”54.

A conservação do negócio jurídico é, em resumo, um princípio a direcionar o aplicador, convocando-o ao aproveitamento máximo da vontade. No caso do excesso, para não se invalidar completamente o negócio, faz-se o decote necessário, de modo a manter-se o equilíbrio.

9 - A assim chamada nulidade parcial

Para entender a sistematização do negócio inoicioso, é im-portante traçar considerações sobre a teoria da nulidade parcial, cujo debate desenvolveu-se, com profundidade e vanguarda, na Itália55.

Adverte ROPPO, de um lado, que a “redução quantitativa do objeto é [...] frequentemente tratada como hipótese de nulidade parcial”56. TAMPONI lembra, de outro, que a nulidade parcial “se aproxima, em algum aspecto da conversão”57. A conversão determina a produção de efeitos jurídicos diversos daqueles que as partes livremente estipularam, ao passo que a nulidade parcial tem seus efeitos, vinculados a um minus, em re-

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lação àqueles que os contratantes previram58. A nulidade parcial engloba, ainal, os casos de redução59.

Ao criticar a tese que procura deinir a conversão como invali-dade total do negócio, CARVALHO FERNANDES identiica a re-dução como amputação parcial dos efeitos do negócio jurídico60.

Dispõe, nesse sentido, o art. 1.419 do Código Civil Italiano que a nulidade parcial do contrato importa a nulidade por inteiro, se se inferir que os contraentes não o teriam concluído sem a parte de seu conteúdo contaminada pela nulidade.

A nulidade parcial pode levar em conta o elemento, ou o aspecto da estrutura contratual, que corresponda à perturbação, um tanto grave, do “programa predisposto da autonomia da vontade”61.

Outro importante critério pelo qual se determina a nuli-dade parcial é o contrapeso entre ônus e vantagens. Se, por tal noção, se chega a sacrifício consentido pelas partes, a nulidade é parcial; se a alteração importa reconduzir a parte a situação indesejada, a nulidade é total62.

CRISCUOLI adverte que a fenomenologia tipicamente representada pela nulidade parcial está ligada à conservação do negócio jurídico, e fundamentada pelo cânone utile per inutile non vitiatur63.

Complicado é, de fato, produzir critério objetivo segundo o qual a nulidade parcial se deduza facilmente pelo aplicador.

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PADILLA menciona genericamente os pressupostos da nulidade parcial: apuração de invalidade de parte do contrato; divisibilidade do todo; satisfação dos interesses das partes; requerimento da redução64.

O último pressuposto conirma a possibilidade de renúncia à redução. Tal entendimento signiica, em última medida, o exercício da autonomia das partes, para adotarem livremente os melhores interesses.

10 - Achegas para os pressupostos da redução do negócio jurídico

A redução exige alteração quantitativa das disposições excessivas, com vistas a manter a justiça contratual.

VAZ SERRA entende que a nova estrutura do negócio reduzido se constitui a partir da amputação do excesso. A redução não estaria, assim, no campo da diferença de tipo.65O autor comenta um caso de doação mortis causa, nula por força do art.
1.457 do Código de Seabra (Código Civil Português de 1867), mas convertível, segundo seu entendimento, em disposição testamentária. O fenômeno cronológico abarcaria primeiramente a redução da doação; depois se processaria a conversão.

A redução consiste, então, em dar valor jurídico remanescente à vontade66; pressupõe a nulidade parcial, o que é im-

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portante saber se a contaminação invalidaria parte do negócio, ou se arrastaria consigo a sua totalidade67. DOMINGUES DE ANDRADE justiica-a não só pelo princípio da conservação dos negócios jurídicos, mas também pela proporcionalidade entre causa e efeito: “Se a causa da nulidade diz respeito só a uma parte do negócio, só essa parte deve ser anulada”68.

Supõe, assim, a redução que o negócio tenha “além da parte viciada, outra ou outras partes não viciadas” e que ele tivesse sido concluído “mesmo sem a parte viciada: reduz-se, então, a parte ou partes não viciadas”69. Resumindo: ela consiste em alteração quantitativa; jamais em mudança qualitativa do negócio70.

CARVALHO FERNANDES critica, todavia, o entendimento segundo o qual a redução é enfocada sob a égide quantitativa. Como, por exemplo, situar em meros aspectos quantitativos o caso de eliminação de cláusula acessória viciada71Nesse caso, a redução é propriamente classiicada em sentido qualitativo.

Admite TAMPONI ainda que o problema da redução, segundo alguns, envolve, a um só tempo, as etapas da nulidade parcial e da conversão; para outros, no entanto, a perspectiva engloba tão-somente uma alteração do objeto72. Aderimos a esta última explicação pela razão de que a questão não envolve a mutabilidade tipológica.

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Como quer que seja, a conversão e a redução são iguras jurídicas autônomas, tendo, em comum, o aproveitamento do negócio, cuja ideia interfere na eicácia invalidante dos vícios73.

É cabível, porém, haver nulidade total, plena, de tal modo a contaminar todo o negócio. Só que essa sanção não é regra no ordenamento brasileiro. Apura-se, no regime da redução, se as partes se conformariam com o que restar do negócio.

Essa lógica perpassa a regra contida no art. 184 do Código Civil de 2002:

“Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não o induz a da obrigação principal.”

Nos termos de PONTES DE MIRANDA, o sistema brasileiro prevê, em princípio, a incontagiação; provando-se o contrário, desfaz-se o negócio por inteiro74.

Mostra-se inverso, todavia, o sistema alemão. Conforme dispõe o § 139 do BGB (Código Civil Alemão), é absoluto, em regra, o desfazimento - das ganze Rechtsgeschäft nichtig. Viciada uma parte, não se supõe que os contratantes pretenderiam o negócio com a sua anulação. Eles, ao contrário, devem se empenhar em provar que contratariam de outra forma, se pressupusessem o excesso75.

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O contrato seria, assim, necessariamente nulo se uma de suas partes fosse nula76. Não obstante, LARENZ enfatiza que o § 139 sofre limites em atenção à boa-fé, quando a nulidade total se mostre injusta77.

A doutrina lembra, também, o requisito da vontade hipotética ou conjectural para a redução78.

“Trata-se de averiguar aquilo que as partes teriam querido provavelmente, se soubessem que o negócio se opunha parcialmente a alguma disposição legal e não pudessem realizálo em termos válidos na sua integridade. Se é de admitir que as partes, nessa hipótese, prefeririam não realizar qualquer negócio, deve concluir-se pela invalidade total. Se se concluir que as partes, provavelmente, sempre o teriam realizado na parte não diretamente atingida pela invalidade, deve ter lugar a redução do negócio.”79Pressupõe-se, no momento da contratação, uma vontade que, deveras, as partes não tiveram. Efetiva-se a redução do negócio se provado que, caso soubessem da invalidade, não contratariam de forma excessiva. A vontade hipotética atuaria de modo a justiicar a redução.

JUNQUEIRA DE AZEVEDO critica, com veemência, o requisito:

“Somente um preconceito teórico poderia criar a necessidade de imaginar...

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