A elisão tributária e a lei complementar nº 104/2001

AutorProf. Cesar A. Guimarães Pereira
CargoMestre e Doutorando em Direito do Estado pela PUC/SP. Advogado em Curitiba, São Paulo e Brasília.
Páginas1-22

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I - Apresentação do tema
  1. O presente estudo destina-se a propor uma interpretação para o parágrafo único do art. 116 do CTN, introduzido pela LC nº 104, de 11 de janeiro de 2001. O novo dispositivo atribui à Administração tributária competência para "desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária", submetendo expressamente o exercício dessa competência a procedimentos ainda a ser instituídos por lei ordinária.

Em ocasião anterior1, apontamos que a regra diz respeito apenas à possibilidade de reconhecimento administrativo da simulação nas condutas elisivas (ao que então se chamou de elisão tributária ineficaz). Vista desse modo, não agrega nenhuma competência fiscal já não anteriormente contida no art. 149, VII, do CTN. A provável intenção com que foi editada (mens legislatoris) não se traduziu no seu conteúdo. Page 2

Essa opinião é aqui ratificada. Os tópicos abaixo formulam a justificativa dessa interpretação e apontam as derivações e os efeitos da nova regra.

II - As bases para a identificação da elisão tributária
  1. Como norma de conduta, a que institui deveres tributários descreve abstratamente fatos que, quando ocorridos, subsumem-se à previsão normativa e provocam o desencadeamento dos efeitos da norma (surgimento do dever de recolher tributo ou de praticar conduta instrumental).

    Mas não é só isso. Essa norma sofre o influxo de outras, que alteram o seu âmbito de validade. É o caso, p. ex., de normas de isenção, remissão ou parcelamento, em que outras hipóteses descrevem fatos que se agregam aos previstos naquela primeira norma.

    A elisão tributária relaciona-se exatamente com essa estrutura normativa. Corresponde à construção ou à preparação dos fatos praticados pelo particular de forma que não se enquadrem nos modelos das normas jurídicas tributárias, embora permitindo obter resultados econômicos similares aos dos fatos nela efetivamente previstos.

  2. Bem por isso, a elisão não se restringe aos fatos descritos na hipótese de incidência propriamente dita.

    Dirige-se a impedir a incidência da norma. Relaciona-se com qualquer ponto da norma tributária em que haja pressupostos de fato - seja na hipótese (antecedente normativo), seja no mandamento (conseqüente ou prescrição). Pode ocorrer sempre que o particular estiver diante de hipóteses normativas.

    É o caso da construção dos fatos de modo a que o particular se enquadre nas condições para a obtenção de parcelamento de tributos ou em norma que proporcione créditos fiscais presumidos. Nessas situações, há hipóteses normativas em que a conduta do particular pode enquadrar-se. E essas hipóteses integram normas que afetam o mandamento da norma tributária básica.

    As hipóteses normativas com que se relaciona a elisão contemplam fatos da esfera do particular, que é livre para realizá-los ou não. Essa liberdade é precisamente o que está na base da elisão tributária: somente se alude a elisão (ou planejamento) na medida em que o particular seja livre para determinar sua conduta.

  3. Por isso é que, após a ocorrência do fato jurídico-tributário, tendo já ocorrido a incidência da norma, não há mais lugar para a elisão. Nesse momento, ao menos em relação à existência do dever tributário, o particular não mais deterá qualquer liberdade de alterar o ocorrido. Sua conduta terá sido já qualificada juridicamente, tendo-se desencadeado os efeitos do mandamento (conseqüente) normativo. Page 3

    Pela mesma razão é que dificilmente se poderia aludir a elisão tributária relacionada com tributos vinculados. Nesses tributos, a hipótese descreve um fato da Administração, não do particular. A não-realização do fato previsto na hipótese corresponderá usualmente à simples abstenção de obter o resultado econômico do fato imponível.

    Nessas situações, somente restará a possibilidade de elisão tributária relacionada com determinações2 do mandamento normativo. O particular buscará enquadrar sua conduta em hipóteses de normas que alterem favoravelmente o regime de cumprimento dos deveres tributários, como as que ampliam os prazos de pagamento, outorgam parcelamento ou concedem remissão.

  4. No objetivo de delimitar a noção de elisão tributária, a primeira preocupação é apartar a elisão da evasão tributária.

    A elisão é lícita e pode legitimamente conduzir ao resultado de economia de tributos. A evasão, por outro lado, não é admissível e é punida como ato ilícito. Essa distinção é muito clara na doutrina brasileira há mais de trinta anos.

    A elisão tributária é realizada por meios lícitos e sempre antes da ocorrência do pressuposto normativo. Através dela, pretende-se evitar a ocorrência desse pressuposto de fato. A evasão ocorre por meios ilícitos ou, de qualquer forma, após a ocorrência do fato jurídico-tributário.

    O critério distintivo, portanto, está na comparação entre o momento da conduta elisiva e o da ocorrência do fato imponível. Se a conduta se produz após ocorrido o pressuposto de fato, é logicamente inapta para impedir a incidência da norma correspondente.

  5. A divulgação desse critério objetivo de distinção no Brasil deve-se inicialmente a RUBENS GOMES DE SOUSA3. A partir daí, esse critério inspirou quase a integralidade da doutrina brasileira. Houve grandes desenvolvimentos acerca de questões diversas relacionadas com a elisão tributária. Porém, a objetividade desse critério de distinção entre elisão e evasão permanece insuperada4.

  6. O problema mais complexo, porém, não é distinguir a elisão tributária da evasão mas identificar os limites da própria elisão. Page 4

    Mesmo através de meios lícitos e antes da ocorrência do fato jurídicotributário, os particulares não são completamente livres para moldar, construir ou preparar suas condutas a fim de obter vantagens tributárias.

  7. Em grande parte dos países que servem de modelo para a construção do direito tributário do Brasil, há regras ou soluções jurisprudenciais específicas prevendo situações em que formas jurídicas insólitas, anormais, abusivas ou dissimuladas não podem ser opostas ao Fisco com o propósito de obter tributação mais branda.

    Esse é o caso da Alemanha5, da Espanha6, da França7, do Reino Unido8, dos Estados Unidos9 e da Argentina10. Nesses países, há regras gerais Page 5 de combate ao planejamento tributário, valendo-se de conceitos como os de fraude à lei e de abuso de direito ou de formas jurídicas.

    Na Itália, até recentemente, a tendência vinha sendo a de combater a elisão tributária através de normas específicas (cláusulas ad hoc ou setoriais) - o que coincidia, aliás, com a solução dada ao problema também no Brasil. Porém, em outubro de 1997, foi editado texto legal prevendo que não seriam oponíveis ao Fisco atos praticados pelos particulares que, sem válidas razões econômicas, utilizassem uma de várias formas relacionadas especificamente no texto legal11.

  8. No Brasil, a doutrina de direito tributário vem tendendo a reconhecer a licitude e a eficácia da elisão tributária sempre que a norma não preveja expressamente a tributação da forma jurídica adotada pelo particular12.

    O raciocínio fundamental é o de que, em face dos princípios da legalidade e da tipicidade, o fato não previsto na norma tributária - ainda que tenha efeitos econômicos similares ao do fato previsto - não gera efeitos tributários. Parte-se da distinção entre conceitos estruturais (jurídicos, formais) e funcionais (materiais)13, para se concluir que apenas no primeiro caso é possível a elisão. No segundo, o conceito normativo funcional abrange qualquer resultado econômico, mesmo quando atingido por conduta atípica ou insólita.

  9. Em 1994, MARCO AURÉLIO GRECO inaugurou uma linha de pensamento segundo a qual seriam ineficazes para o fim de obter vantagem tributária as condutas praticadas pelo particular com mero propósito tributário, Page 6 sem razão extratributária (negocial, pessoal, familiar etc) que justificasse a operação14.

    Esse raciocínio tem ampla correspondência no direito comparado. Em face do direito brasileiro, parte da constatação de que o objeto da tributação não é a mera apropriação de patrimônio privado mas a realização de um objetivo fundamental da República (art. 3º da Constituição), através da construção de uma sociedade solidária, em que cada qual participe dos gastos públicos na medida de sua capacidade.

    De um modo ou de outro, para essa corrente de pensamento, a adoção de condutas atípicas com o objetivo exclusivo de economia tributária caracterizaria abuso de direito (uso indevido do direito de auto-organização). Isso seria causa de ineficácia da conduta elisiva, que deveria ser requalificada tal como se não houvessem ocorrido os atos praticados de modo abusivo.

  10. O presente estudo formulará uma proposta teórica em relação aos postulados dessas duas linhas principais de raciocínio acerca do tratamento da elisão tributária no Brasil.

    Isso permitirá identificar o contexto em que se insere o dispositivo recentemente introduzido pela LC nº 104/2001.

  11. Antes de ir adiante, há duas premissas fundamentais para o desenvolvimento do tema. Sua relevância deriva das categorias usualmente invocadas ao se examinar o problema da elisão tributária. Por um lado, apontase que as condutas elisivas ocorrem nos espaços deixados por "lacunas" do direito tributário, vazios não preenchidos por inadvertência do legislador. Por outro, é amplamente reconhecido (no direito espanhol há...

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