Trânsito de gênero e precariedade no mercado de trabalho: muito além da qualificação profissional

AutorAnna Paula Vencato - Regina Stela Corrêa Vieira
Páginas185-192

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O intuito deste livro, como seu título indica, é de apresentar o que chamou de "outra metade da história", vez que de fato a historiografia tradicional manteve-se com frequência cega ao gênero e ignorou as vivências das mulheres, quando não as apagou das narrativas históricas ou reduziu seu papel. Por exemplo, nos currículos escolares, quando o objeto de estudo é a Revolução Francesa, nada se fala de Olympe de Gouges, revolucionária que criticou com veemência a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão por se autoproclamar universal, mas falar apenas para os homens livres, excluindo as mulheres.3

Agora, se para as mulheres que se enquadram aos padrões sociais do feminino a invisibilização de sua presença na História é uma realidade, a exclusão é uma realidade ainda mais dura para mulheres que na vida social ou nas políticas públicas nem mesmo tem garantido seu (re)conhecimento enquanto mulheres, como é o caso de pessoas que se identificam como travestis e mulheres transexuais. Para quem está fora das categorias de gênero socialmente impostas, não apenas a

História as fez invisíveis, como nosso cotidiano as com-prime para que sua existência se delimite a poucos e demarcados espaços à margem da sociedade. Reflita brevemente: quantas colegas de trabalho travestis você já teve na vida? Quantas professoras trans você já teve? Em que categorias profissionais você costuma encontrar pessoas trans?

O objetivo deste texto é discutir, a partir da experiência de transexuais, travestis, drag queens e crossdressers a intersecção entre o que chamaremos, insatisfatoriamente, de trânsito de gênero e sua relação com o acesso precário ao mercado de trabalho. A ideia do texto é trabalhar sempre a partir da experiência de vivências femininas. Para tanto, utilizaremos narrativas encontradas ao longo de trabalhos de pesquisa de mestrado e doutorado de Anna Paula Vencato.4 5 No primeiro, analisou-se a performance e corporalidade de drag queens em espaços de sociabilidade dirigidos ao que se chamava "boates GLS"6 em final dos anos 1990 e início dos 2000.7 No segundo, buscou-se compreender como "homens que se vestem de mulher" negociam

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esta prática em suas vidas cotidianas.8 Ainda, visamos dialogar com o dado divulgado pela ANTRA9 (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), de meados de 2013, de que 90% das pessoas que se identificam como travestis e transexuais, no Brasil, encontram-se trabalhando no mercado do sexo10.

Compreendemos que transexuais e travestis, em geral, não transitam dentro da lógica de gênero como fazem drags ou crossdressers. De qualquer modo, é necessário reconhecer um trânsito que fazem do momento em que ainda não circulam tendo tornado públicas suas identificações de gênero até o momento em que passam a adequar seus corpos a suas identidades de gê-nero. Não estabeleceremos aqui um limite entre o que é ser drag, crossdresser, travesti ou transexual. Para fins formais, separaremos drags e crossdressers de travestis e transexuais pela ideia de que, as primeiras, passam em geral pelo processo de montagem11 e desmontagem e as duas outras pela ideia de adequação corporal.

Ao partir de tal ponto de análise, assumimos o risco de fixar práticas e modos de apresentar-se no cotidiano que extrapolam os limites de qualquer classificação mais rígida, uma vez que drags e crossdressers podem buscar por métodos distintos de adequação corporal ao gênero que desejam manifestas e, ao mesmo tempo, há travestis e transexuais que afirmam que suas identidades não passam pela adequação de seus corpos. Usaremos, doravante, "pessoas trans" para fazer referência a todas essas experiências, a partir da ideia de transgê-nero como um termo guarda-chuva para agrupar diferentes experiências, e quando precisarmos falar de uma identificação especificamente, recorreremos ao termo que for mais adequado.

Utilizamos a definição de transgênero dada por Juliana Gonzaga Jayme.12 De acordo com a autora, quando iniciou sua pesquisa no final da década de 1990 o termo transgender era utilizado em textos internacionais para definir, de modo geral, travestis, transexuais, transformistas, drags e andróginos, levando em conta que há particularidades entre esses sujeitos. A autora usa, em seu trabalho, a definição que lhe foi dada por Jó Bernardo, uma das informantes da pesquisa, que atuava na Associação ILGA-Portugal13:

(...) transgender é uma palavra que quer englobar os vários ‘transgêneros’, que são travestis, transformistas, transgenderistas, drag-queens, cross-dressers, transexuais também e mais nada, e que engloba todos, todos esses grupos. Qualquer desses grupos pode ser homossexual, como heterossexual, como bissexual, por isso não engloba homossexuais, mas desde o momento que sejam transgender (…).14

Vale dizer que, com o passar dos anos, alguns sujeitos passaram a se identificar a partir desta categoria.

Falar sobre a não rigidez na autoclassificação de pessoas trans pode parecer algo deslocado quando a ideia é englobá-las na categoria das "mulheres trabalhadoras", mas é algo importante a este debate. Por isso iremos trazer ao texto algumas narrativas selecionadas que falam de algumas experiências de trabalho dessas pessoas. Esclarecemos que não temos a pretensão abordar todas as experiências de trabalho de transgêneros, tampouco afirmar que as narrativas aqui contadas dizem respeito às vidas de todas as pessoas trans, vez que compreendemos a diversidade de experiências e realidades experimentadas por cada indivíduo e em diferentes contextos. As narrativas limitam-se a experiências

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de pessoas que vivem em centros urbanos, especificamente capitais de médio e grande porte no país.

1. Algumas histórias sobre trans no mercado de trabalho

Iniciamos elencando casos que servirão de base para a análise proposta aqui. Os três primeiros casos foram coletados e sistematizados a partir de observação etnográfica. Os demais coletados de modo assistemático em conversas estabelecidas no cotidiano.15

Narrativa 1: Uma mulher transexual16, antes da transição, atuava como engenheiro e era especializado em uma área bastante específica e de formação "difícil de encontrar no mercado". Quando decidiu "viver como mulher"17 definitivamente julgou que não seria aceita pela empresa em que trabalhava - cujo dono era "de igreja" - e tentou atuar como cabeleireira. Algum tempo depois, tendo percebido que a nova profissão não lhe traria o mesmo retorno financeiro que a anterior, optou por "vestir-se de homem" durante o expediente e "de mulher" o resto do tempo. Com o passar do tempo, os traços inevitáveis da transição foram transformando sua aparência, que se tornava cada vez mais ambígua. Certo dia o dono da empresa a chama para conversar e diz: "venha trabalhar vestida de mulher e se comporte de acordo: assim você me causa menos problemas".

Narrativa 2: refere-se a uma queixa frequente coletada durante a pesquisa de Vencato (2002) com drag queens. Era bastante comum a reclamação de que, idea-lizadores de festas e eventos para o público LGBT18 pagavam pouco ou tentavam não pagar pelo seu trabalho artístico. Ao longo da pesquisa foi comum encontrar a afirmação de que eram "artistas da noite gay" e que o que faziam era representar uma personagem. Contudo, foi comum também encontrar casos de organizadores de festas e eventos que tinham a percepção de que não precisavam contratar drags pois, como seriam parte do público de suas casas, "apareceriam" de uma forma ou de outra (o que, na prática, não ocorria e era percebido pelas drags como abusivo).

Narrativa 3: uma mulher transexual, que era capitão da marinha, foi "posta na reserva" ao assumir publicamente sua identidade feminina. A justificativa institucional foi de que seu cargo não tinha "correspondente hierárquico" para mulheres.

Narrativa 4: refere-se à história de uma médica que é transexual e que é contada por seus colegas de trabalho. De acordo com estes, ela se nega a falar em eventos sobre o fato de ser transexual ou acerca da temática da transexualidade. Quando a história era contada, revelava-se um incômodo expresso por seus colegas de trabalho pelo fato de ela querer falar publicamente apenas a partir de sua especialidade médica.

Narrativa 5: relato que não se estrutura como uma narrativa organizada sobre uma vida, embora seja coletada com frequência dentre pessoas trans sobre suas experiências no mercado de trabalho fora da prostituição. Em geral, espera-se delas que sigam carreiras femininas, adequadas ao gênero que manifestam, como bordadeiras, cabeleireiras, costureiras etc. Ou, ainda, se não há esta demanda de uma profissão associada ao gênero, são colocadas em lugares em que não precisam "mostrar-se", como é o caso do trabalho como operadora de telemarketing ou estoquista em lojas ou supermercados.

A leitura dessas narrativas permite antecipar a percepção da dificuldade posta para pessoas trans - em todas as suas apresentações de si - de inserção profissional a partir do trânsito de um gênero a outro. Além disso, é notável que o mercado reserva a elas, em sua grande maioria, vagas que refletem a marginalização de seus corpos, ou seja, destinam-se postos de trabalho precários para vidas em condição precária19. Falaremos mais acerca deste tópico a seguir.

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2. O gênero que se expressa e o gênero que se vê

A realidade das pessoas trans no Brasil é permeada pela invisibilidade e pela violência. Invisibilidade por estarem nas margens da sociedade, uma vez que pessoas trans são continuamente enquadradas nos mais baixos níveis da "hierarquia sexual", como chamado por Gayle Rubin,20 a qual atua reiteradamente criando uma linha imaginária que divide o "bom sexo" do "mau sexo", linha esta que determina o...

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