Transitional Rule of Law/Estado Transicional de Direito.

Autorde Oliveira Costa, Rafael

Introducao

O constitucionalismo e fenomeno complexo e que pode ser vislumbrado sob diferentes perspectivas. Em uma primeira acepcao, emprega-se o termo em referencia ao movimento politico-social que pretende limitar o exercicio do poder. (1-2) Uma segunda acepcao entende que o constitucionalismo se identifica com a evolucao historica das cartas constitucionais, as funcoes que desempenham esses diplomas normativos e a evolucao do Estado. Por fim, sob vertente restritiva, o constitucionalismo e concebido como a evolucao historico-constitucional de um determinado Estado. (3)

Partindo da primeira acepcao do termo, o presente estudo pretende atentar para a indispensavel aproximacao entre o constitucionalismo e o Estado de Direito, permitindo concluir que estamos diante de um novo paradigma (4): o Estado Transicional de Direito.

A fim de tornar mais didatica a nossa exposicao, faremos inicialmente uma incursao nos paradigmas modernos do Estado de Direito para, em seguida, tecermos os contornos, os limites e as potencialidades do Estado Transicional de Direito.

Esse o nosso plano de estudos. Passemos a sua concretizacao.

  1. Constitucionalismo e os Paradigmas (Modernos) do Estado de Direito

    A ideia de Estado de Direito surge como busca pela legitimacao do poder politico e pela constitucionalizacao das liberdades. (5) Erige como fundamento a observancia ao ordenamento juridico, tornando possivel falar, segundo a doutrina classica, em triplice vertente: Estado Liberal, Estado Social e Estado Democratico de Direito. Cada modelo pretende demonstrar a insuficiencia dos anteriores e propor uma releitura dos valores que servem de pano de fundo para a atuacao estatal e para a tutela de direitos. E o que se convencionou chamar de "paradigmas do Estado de Direito". (6)

    Assim e que, no paradigma do Estado Liberal de Direito, o individuo ocupa posicao central, contando com a elevacao de sua dignidade pessoal a de sujeitos de direitos. A ideia de liberdade se assenta na concepcao de que todo cidadao e proprietario de si proprio e, portanto, todos sao sujeitos de Direito. Consagra-se, nesse contexto, os "direitos de primeira dimensao" (7), atrelados a concepcao de liberdade, tais como a vida, a propriedade, os direitos civis e politicos. O Estado, nesse cenario, adota uma postura de "intervencao minima" e a Constituicao assume o papel de fundamento de validade do direito posto. (8) Ultrapassando o Estado Absolutista--que atribuia ao monarca poder absoluto--, o novo paradigma afasta a percepcao de que qualquer modalidade de restricao a esfera individual em favor da coletiva e legitima. (9)

    No pos-primeira guerra mundial, especialmente com a intensificacao da exploracao da mao de obra e com a formacao de imensas disparidades economico-sociais, surge o paradigma do Estado Social de Direito, que coloca em evidencia a coletividade em detrimento do individual. Busca-se uma igualdade nao apenas formal, mas tendencialmente material, por meio da consagracao dos direitos de "segunda dimensao". A ideia de liberdade, antes tida como absoluta, agora se funde com a busca pela igualdade material, reconhecendo-se na lei as diferencas existentes. A titulo de exemplo, a Constituicao Mexicana de 1917 e a Constituicao de Weimar de 1919 buscam tutelar a assistencia positiva que todo Estado deve prestar ao cidadao, consagrando inumeros direitos economicos e sociais. (10)

    Finalmente, no paradigma do Estado Democratico de Direito consagra-se o ideal de fraternidade e os direitos de "terceira dimensao", especialmente nas searas do Direito Ambiental, do Direito ao Patrimonio Historico, do Direito do Consumidor e do direito a participacao no debate publico. As benesses economicas sao insuficientes e a liberdade absoluta implica em desigualdades: a experiencia democratica e sempre uma experiencia de aprendizado e demanda o efetivo exercicio da cidadania pela maioria e pelas minorias. O Principio da Separacao de Poderes ganha uma nova roupagem, na qual o Poder Judiciario amplia sua participacao e estabelece um novo equilibrio nos processos de densificacao normativa. Em suma, o Estado Democratico de Direito busca sua legitimidade a partir de "um pensamento constitucional normativo (e de modo algum com um pensamento constitucional nominalista ou simbolico)". (11-12)

    Contudo, as inumeras atrocidades e violacoes aos direitos humanos (v.g., as disputas na ex-Iugoslavia, as ditaduras sul-americanas, o regime do apartheid, entre outros); os riscos envolvidos no viver social (13); a ausencia de efetiva participacao do cidadao; e a liquidez da modernidade (14) veem causando a insuficiencia dos paradigmas classicos. O fim da Guerra Fria implicou na transicao de regimes comunistas para uma nova ordem e na democratizacao de varios paises da America do Sul: processos constitucionais que decorreram de um envolvimento significativo da comunidade internacional, mas tambem do fortalecimento da ordem interna. Assim, os paradigmas classicos do Estado de Direito passaram a se mostrar insuficientes para lidarem com a nova realidade, especialmente diante da incessante busca pela verdade e equilibrio entre a tolerancia e a responsabilidade. Exsurge, como resposta a esses anseios da contemporaneidade, um novo paradigma: o Estado T ransicional de Direito.

  2. Constitucionalismo do Futuro: Do Estado Transicional de Direito

    O novo paradigma do Estado de Direito provoca uma ruptura ao tracar um original "pano de fundo", fundado na complementariedade entre seguranca juridica/justica, no equilibrio das relacoes entre Estados e na reconceptualizacao do dialogo publico/privado. Como decorrencia dos Tribunais da ex-Iugoslavia e de Ruanda, o fim do apartheid e da Guerra-Fria, a globalizacao do constitucionalismo (especialmente pela consolidacao da Uniao Europeia) e a busca crescente pela participacao democratica, erigese um novo paradigma que nao desconsidera as atrocidades do passado e, atentando para o futuro, busca a efetiva reparacao civil as vitimas.

    O Estado, nesse contexto, tem o dever legal de adotar todas as medidas cabiveis para evitar violacoes aos direitos fundamentais, tutelando os individuos--"com todas as suas peculiaridades"--e respectivas identidades, visto que qualquer tratamento baseado exclusivamente na origem etnica, religiosa, racial, sexual ou idade deve ser objetivamente justificado em uma sociedade democratica e construida a partir dos pilares do pluralismo e do respeito as diferencas. (15) E mais: o novo paradigma traca limites nao apenas para as acoes estatais, mas tambem para outras entidades, adotando como principio norteador a formacao de um padrao global de accountability e governanca. (16-17) Trata-se de uma compreensao dinamica da ordem social e dos valores democraticos que deixa de lado o proprio Estado, para colocar a sociedade civil (18), suas vulnerabilidades e atores nao estatais no cerne da ordem constitucional, com o consequente reconhecimento da titularidade de direitos a pessoas coletivas--v.g., comunidades, nacionalidades, entre outros. (19)

    A complementariedade entre a seguranca juridica e a justica encontra respaldo no que se convencionou chamar no ambito do Direito Norte-Americano de transitional justice, expressao traduzida para o portugues como "Justica de Transicao". Trata-se de um conjunto de respostas sistematicas aos danos provocados por regimes que nao mais prevalecem. A principal contribuicao da Justica de Transicao pode ser sintetizada no seguinte questionamento: os regimes democraticos devem perdoar ou punir os excessos e as injusticas ocorridas durante as ditaduras/governos autoritarios, ainda que perpetrados sob o palio da legalidade? A problematica foi tratada na jurisprudencia Alema apos a Segunda Grande Guerra Mundial, descartando o argumento da legalidade do regime nazista com base em dois fundamentos: 1) as normas juridicas que contrariam o sentimento de justica nao possuem validade juridica; 2) as graves violacoes a direito humanos devem ser punidas, ainda que em detrimento do principio da irretroatividade da lei.

    A proposta de (re)pensar o problema dos paradigmas do Estado de Direito sob a otica da Justica de Transicao revela-se, assim, de grande utilidade para uma compreensao mais profunda do tema, pois inaugura um novo enfoque, que prioriza o questionamento acerca do proprio fenomeno da Estado de Direito (nao mais limitado ao estudo das restricoes ao exercicio do poder). As pre-compreensoes, no Estado Transicional, consolidam-se a partir dos fatos ocorridos no passado, mas com um olhar centrado no futuro. Se o constitucionalismo moderno tem...

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