O trabalho reduzido à condição análoga à de escravo no setor da indústria têxtil e da construção civil: um desafio para o Direito do Trabalho na atualidade

AutorAnderson Luiz Barbosa, Fabiano Carvalho e Victor Hugo de Almeida
CargoBacharel em Direito pelo Centro Universitário Moura Lacerda/Advogado e Professor de Direito do Trabalho no Centro Universitário Moura Lacerda/Professor de Direito do Trabalho no Curso de Direito da Universidade Estadual Paulista
Páginas80-96

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1. Introdução

O trabalho reduzido à condição análoga à de escravo tem sido um dos assuntos do universo laborai mais discutidos recentemente nos veículos de comunicação, tornando-se um grande desafio para o Direito do Trabalho na atualidade. Utilizando-se dessa forma ilícita de trabalho e explorando trabalhadores aliciados e iludidos com falsas promessas de ingresso e prosperidade na carreira profissional, grandes empresas faturam milhões de reais ao ano em detrimento da dignidade dos trabalhadores submetidos a condições de trabalho degradantes, avessas à dignidade da pessoa humana, agasalhada pelo art. Ia, inciso III, da Constituição Federal, à legislação penal e às Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A maioria desses trabalhadores não consegue pagar seus débitos contraídos com seus empregadores, fato conhecido como servidão por dívida, submetendo-se, por isso, a condições degradantes caracterizadas pelo trabalho forçado, jornadas excessivas, supressão salarial e pela precária condição de higiene e segurança do meio ambiente do trabalho.

Nos últimos anos, dois setores têm se destacado na exploração de mão de obra em condições análogas à de escravo: a construção civil e a indústria têxtil. Por isso, em razão do alto número de casos recentemente divulgados, o presente artigo se aterá a apenas esses dois segmentos económicos, tendo por objetivo examinar o trabalho reduzido à condição análoga à de escravo nesses setores, bem como analisar quais medidas têm sido tomadas pelo Poder Público.

O método de abordagem utilizado foi o método de caso, oportuno quando se procura analisar um determinado fenómeno em uma situação particular, permitindo apontar problemas potenciais ou efetivos1, além da técnica de pesquisa bibliográfica em materiais já publicados, como doutrinas, legislação, jurisprudência e reportagens veiculadas em revistas/jornais/sifes.

2. Breve abordagem histórica do trabalho escravo no Brasil

Segundo a OIT, "toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco

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nem sempre é verdadeiro", pois é a liberdade que diferencia um conceito do outro, ou seja, o trabalho escravo pressupõe a apreensão de documentos, a presença de guardas armados e de "gatos" e/ou a restrição da liberdade por dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográficas do local2.

Embora haja diferença entre trabalho escravo e trabalho reduzido à condição análoga à de escravo, não são raras as confusões, porque, conquanto tenha sido o trabalho escravo formalmente abolido em 13 de maio de 1888, portanto, ilegal, permaneceram as situações semelhantes àquela forma de trabalho quanto à supressão da dignidade do trabalhador e ao cerceamento da sua liberdade.

Para Sérgio Pinto Martins, na primeira forma de trabalho, a escravidão, o escravo nada mais era do que um objeto de troca; era considerado "coisa" e não possuía direitos, inclusive relacionados ao trabalho. Era obrigado a trabalhar diariamente, cumprindo jornadas de trabalho excessivas, sem o correspondente pagamento, vez que toda riqueza gerada em decorrência do trabalho escravo pertencia aos senhores feudais da época3.

De acordo com Douglas Cole Libby e Eduardo França Paiva, no Brasil, a escravidão ocorreu desde o início do século XVI, com a colonização portuguesa, até o final do século XIX, com a exploração de mão de obra de índios e negros trazidos do continente africano pelos portugueses em suas embarcações. Sendo o destino preferido para o comércio de escravos, o Brasil impulsionou o tráfico negreiro, sobretudo na produção de açúcar, artesanatos, fumo e cereais4

Considerados objetos, os escravos se ativavam como carregadores, pescadores, estivadores, barqueiros, vendedores, artesãos e músicos, podendo ser alienados, alugados, penhorados, leiloados ou trocados por diversas mercadorias como armas e utensílios domésticos produzidos na Europa, panos de algodão oriundos da índia e até aguardente e rolos de fumo de origem brasileira. Mais tarde, o trabalho escravo foi utilizado para a extração de minérios, como ouro e diamante5

Ainda no século XVI, as primeiras ativi-dades escravas no território brasileiro, mais precisamente no território paulista, foram motivadas pelas grandes organizações de caçadas aos povos nativos que habitavam a área, capturados e comercializados como escravos para o trabalho produção de alimentos. A maioria dos escravos era homens, os quais possuíam maior valor de mercado em relação às mulheres, principalmente em razão da força física6

Segundo Douglas Cole Libby e Eduardo França Paiva, "ao longo de todo o período do tráfico negreiro, para cada dois homens adultos traficados uma mulher também era escravizada". Os mesmos autores apontam que durante aquele período cerca de 12 milhões de escravos negros foram trazidos para as Américas; desse total, 38%, ou seja, cerca de 4,5 milhões de escravos foram trazidos para o Brasil7

Submetidos a jornadas excessivas e a um rigoroso sistema de disciplina imposta pelos senhores feudais, sofriam castigos físicos e torturas. De acordo com a literatura, "Os castigos eram aplicados diante de todos os outros escravos para servir de exemplo aos que pretendiam desobedecer às ordens de seus proprietários", mediante o uso de instrumentos de tortura, além de mutilações físicas e agressões psicológicas8

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Em decorrência da expansão da agricultura e das lavouras de café no Brasil, aumentou o número de escravos vindos da África, sendo que, após a independência do país, foi proibida a prática do tráfico de escravos para o território brasileiro, extinto definitivamente no ano de 1850. Com a proibição do tráfico de pessoas no âmbito internacional, o tráfico persistiu internamente mediante preços bem acima do comum, tendo como motivo a escassez de escravos no mercado escravagista9

No Brasil, por volta do século XIX, muitos eram contrários à continuidade da escravidão no país. O movimento abolicionista existente na época ganhou força após o fim da Guerra do Paraguai, com a criação da Lei do Ventre Livre, que concedia a liberdade aos filhos dos escravos, e da Lei do Sexagenário, que libertava todos os escravos que tinham mais de 65 anos de idade. No período da Guerra do Paraguai, vários escravos ou cativos lutaram pelo exército brasileiro e foram alforriados pelo esforço e garra demonstrados durante o período do combate.

Em 1886, o governo brasileiro extinguiu o castigo por açoitamento e, em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, decretando o fim da escravidão no Brasil.

Para Amauri Mascaro Nascimento, naquele período "predominou a escravidão, que fez do trabalhador simplesmente uma coisa, sem possibilidade sequer de se equiparar a sujeito de direito. O escravo não tinha, pela sua condição, direitos trabalhistas". Acrescenta o jurista ine-xistir na sociedade pré-industrial um sistema de normas jurídicas de direito do trabalho10

A Constituição de 1934 foi a primeira a mencionar direitos trabalhistas, seguida da Constituição de 1937, que garantiu a liberdade sindical, a isonomia salarial, o salário mínimo, a jornada de oito horas de trabalho, a proteção ao trabalho das mulheres e dos menores, o repouso semanal e as férias anuais remunerados11. A Constituição de 1946 acolheu princípios liberais na ordem política e a Constituição de 1967 introduziu o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, criada por lei ordinária em 196612

A partir de 1988, com vigência da atual Constituição Federal, os direitos trabalhistas no Brasil alçaram novos rumos e aos trabalhadores foram conferidos diversos direitos antes não reconhecidos. Previu-se um amplo rol de direitos relacionados ao trabalho, prescritos nos arts. 7- a 11, elevando o direito ao trabalho ao patamar de direito fundamental.

Todavia, apenas isso não foi suficiente para garantir melhores perspectivas de vida e de trabalho a muitos trabalhadores, em razão da inventividade de tantos empregadores que, estimulados pela sanha capitalista, passaram a buscar novas formas de exploração injusta da força de trabalho, em detrimento da dignidade daqueles submetidos a condições análogas à de escravidão.

3. A precarização do trabalho na atualidade

Já dizia Bobbio, "o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político". Eis o desafio da atualidade.

É certo que efetivação do direito fundamental ao trabalho requer a observância das condições mínimas laborais, respeitadas, evidentemente, as garantias previstas no art. 5a, incisos III e XLVII, alínea c, da Constituição Federal de 1988. Todavia, o Brasil ainda encontra dificuldades para efetivar os direitos mínimos trabalhistas, quanto mais a funda-mentalidade do direito ao trabalho.

O trabalho escravo dos velhos tempos, em que senhores de engenho e capitães do

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mato protagonizavam o perverso contexto da escravidão, cedeu espaço para um trabalho prestado no limite da sobrevivência humana, sem qualquer dignidade, deveras distante da garantia das necessidades básicas e do desenvolvimento pessoal e profissional por meio do trabalho; cedeu espaço para um trabalho sujeito a extensas jornadas, ritmo de trabalho elevado...

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