O trabalho no call center: um olhar através do trabalho decente

AutorFlávia Moreira Guimarães Pessoa e Mariana Farias Santos
Páginas143-153

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1. Introdução

O presente estudo tem por objetivo analisar o trabalho prestado nos call centers, tomando como parâmetro o trabalho decente. Este paradigma foi desenvolvido pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, partindo de objetivos estratégicos para garantir a observância dos direitos humanos nos mais diversos ambientes laborais, tendo por base a dignidade da pessoa humana. A moldura na qual hoje podemos encaixar o trabalho decente já tinha seus contornos delineados, porém, separadamente. Privilegiando uma postura mais pró-ativa, a OIT entendeu por bem destacar e consolidar esses contornos, a fim de deixar bem claras as exigências mínimas e indispensáveis à garantia dos direitos do homem-trabalhador nas relações laborais.

O trabalho decente se mostra, então, como o arcabouço protetivo mínimo dos trabalhadores, em todo o mundo. Sendo o parâmetro ideal básico para qualquer meio ambiente de trabalho. No entanto, a reali-dade nem sempre retrata esse ideal e, por vezes, acaba por subvertê-lo, como será analisado adiante. Por esta razão, e da mesma forma que os direitos humanos, o trabalho decente é um conceito em permanente construção, cuja aplicabilidade depende, sobremaneira, da situação concreta que se apresente, com o primordial objetivo de dignificar o ambiente e o trabalho realizado.

Desta forma, importa destacar que não há um parâ-metro cuja objetividade prescinde maiores elucidações.

Muito pelo contrário. O trabalho decente depende de cada situação fática em particular, mormente quanto aos direitos garantidos (ou não) em cada caso, para, só então, ser identificada a melhor forma de promover a dignidade e demais direitos humanos na situação laboral em foco. Em ampla relação com a teoria de Robert Alexy acerca dos princípios, principalmente quanto à caracterização destes como um mandamento de otimização.

Com efeito, trata-se de um meio de garantir que a dignidade do cidadão trabalhador, preexistente ao vínculo laboral, mantenha-se hígida durante o contrato de trabalho, assim como os direitos daí decorrentes. Nesta senda, podemos citar, dentre os direitos insertos na moldura do trabalho decente, o direito a um trabalho livre e em condições justas, o direito à justa remuneração, o direito de exercer trabalho em condições que preservem a saúde do trabalhador e o direito à liberdade sindical. Além disso, também se traduz numa forma de evitar a precarização das relações de trabalho, dada a sua aplicação aos mais diversos tipos de natureza jurídica, seja ela empregatícia, seja ela autônoma, seja ela de trabalho, sempre prezando pela máxima dignidade possível.

O trabalho decente garante, ainda, reflexos não só na relação entre os empregadores e os trabalhadores, mas também na sua vida em sociedade, na medida em que contribui para a superação da pobreza, para redução das desigualdades sociais e para promoção do desenvolvimento sustentável, consoante se depreende do Plano Nacional do Trabalho Decente (BRASIL, 2010).

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Trata-se, na verdade, de um instrumento de identidade social, por meio do qual o indivíduo deve ter reconhecido o seu valor enquanto ser humano dotado de dignidade, dentro e fora do ambiente de trabalho. O trabalho decente transcende, então, as condições contratuais trabalhistas. Os resultados são, por conseguinte, passíveis de repercussão nos mais diversos ramos da vida em sociedade.

Estando claro o parâmetro do presente estudo, teremos que cotejá-lo com o ambiente de trabalho em foco, qual seja, o call center. A despeito de se tratar de um dos setores que mais emprega no Brasil, também é um dos locais em que mais se verificam práticas vilipendiadoras dos direitos humanos, na medida em que os atendentes de telemarketing encontram-se sujeitos a pressões internas pelo cumprimento de metas, pela observância das normas de atendimento, pela satisfação do cliente atendido, além de sofrerem um severo controle de suas atividades, inclusive de suas idas ao banheiro.

Ao mesmo tempo, os teleatendentes são pressionados pelo cliente que está do outro lado da linha e deseja ter suas reivindicações atendidas e o seu problema resolvido. Ocorre que nem sempre esta relação tem uma linha de cordialidade a conectando. A insatisfação pressiona os dois lados desta tênue conexão, tendo o atendente como o mais atingido.

Outrossim, é possível vislumbrar uma instrumentalização deste homem trabalhador, que é utilizado apenas como mais um fator de produção, como mera engrenagem do sistema. Sendo encarado como um meio de atingir os objetivos patronais e não como um fim em si mesmo. Desconsiderando-se, totalmente, a dignidade que lhe é intrínseca.

Por esta razão, além de analisar o trabalho decente e os direitos humanos do trabalhador, far-se-á necessário examinar o meio ambiente laboral a que estão sujeitos os teleatendentes, caracterizando e descrevendo as suas peculiaridades. Assim como é preciso traçar um perfil deste teleatendente, a fim de individualizá-lo ao máximo, o que auxiliará na análise dos dados referentes aos call centers, mormente quanto à rotatividade e grande índice de adoecimento dos trabalhadores de telemarketing.

2. Direitos humanos do trabalhador: o caminho trilhado até o trabalho decente

No âmbito nacional, a Constituição Federal estipula como fundamentos da República Federativa do Brasil, em seu art. 1º, III e IV, a “dignidade da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (BRASIL, 1998). Já em seu art. 170, fixa a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assim como elenca o trabalho como direito social, em seu art. 6º. O trabalho é alçado, então, a posição importante no ordenamento jurídico pátrio, não só no âmbito econômico, como também para a República como um todo, que o toma como fundamento.

Por sua vez, no âmbito internacional, a tutela deste direito também se verifica. É possível vislumbrar uma constante aproximação entre os direitos humanos e as garantias mínimas de direito do trabalho, de modo a resguardar a dignidade do empregado e o valor social do trabalho. Este fato pode ser confirmado por meio das normas internacionais ratificadas pelo Brasil, em algumas das quais há a tutela dos direitos dos trabalhadores, numa dimensão social. Também confirma a tutela e proteção deste direito, o lançamento pelo Brasil da Agenda Nacional do Trabalho Decente, cujos moldes veremos adiante.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos, cujo objetivo é garantir o exercício dos direitos da pessoa humana (PIOVESAN, 2015, p. 81), também abrange o direito ao trabalho, por conseguinte. Nesta medida, é possível afirmar que, numa concepção contemporânea de direitos humanos, na qual eles “são concebidos como unidade indivisível, interdependente e inter--relacionada” (PIOVESAN, 2015, p. 79), o direito ao trabalho encontra-se inserido. Podendo-se falar, então, numa proteção internacional aos direitos humanos do trabalho.

O direito ao trabalho, embrião do hoje chamado direito humano ao trabalho decente, insere-se, junta-mente com os direitos econômicos, sociais e culturais, nos direitos humanos de segunda dimensão1, que revelam garantias obrigacionais por parte do Estado (AZEVEDO NETO, 2015, p. 52). Esta dimensão inclui, ainda, outros direitos ligados ao trabalho, mais relacionados às liberdades sociais, tais como o direito à greve, à liberdade de sindicalização e alguns direitos fundamentais dos trabalhadores, como o salário mínimo, férias e repouso semanal remunerado. Abrangendo muito mais do que direitos de cunho prestacional e que se reportam, especificamente, à pessoa individual. (SARLET, 2015a,
p. 48).
É possível dizer, então, que a proteção internacional aos direitos humanos do trabalho vai muito além da mera tutela do direito ao trabalho, estendendo-se aos

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direitos e garantias que possibilitam a promoção da dignidade do trabalhador, dentre elas as liberdades sociais citadas e alguns outros direitos que compõem o arcabouço protetivo mínimo decorrente do trabalho decente, que delinearemos adiante.

3. Origem e características do trabalho decente

Em decorrência do franco avanço do capitalismo globalizado, surgiu a necessidade de melhor resguardar os interesses e direitos do trabalhador, invocando, assim, a promoção da dignidade na relação de labor. O que se deu, de certa forma, através do trabalho decente. O trabalho decente, enquanto bandeira de ação da OIT, teve seus contornos delineados, inicialmente e de forma indireta, na Declaração sobre os princípios e direitos fundamentais do trabalho, de 1998.

A OIT publicou a Declaração sobre os princípios e direitos fundamentais do trabalho (OIT, 1998), listando como primordiais à consecução dos seus objetivos os seguintes pontos: a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição efetiva do trabalho infantil; e
d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. Trazendo uma compilação de suas mais importantes Convenções até aquela data, obrigando todos os países participantes da Organização a cumpri-las e a envidar esforços, constitucionais e financeiros, para alcançar estes objetivos.

A OIT começa a dar indícios, assim, de que existem certos direitos básicos e indispensáveis à relação trabalhista, sem os quais não há respeito à...

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