Trabalho decente: o sistema gerencialista de produção como óbice?

AutorUbirajara Carlos Mendes
Páginas73-87

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1. Introdução

O trabalho, elemento ínsito à condição humana e categoria fundante do ser social1, sofre deturpações que lhe sobrelevam aspectos e consequências negativas e comprometem seu caráter emancipador, como a exploração da mão de obra infantil, a escravização do trabalhador e as diferentes formas de descumprimento de normas de segurança e medicina do trabalho, entre outros exemplos. Mas, a par dessas manifestações objetivas, palpáveis e, por isso, claramente identificáveis, merece reflexão uma relativamente nova forma de gestão produtiva, identificada por muitos estudiosos como subversiva do papel dignificante do trabalho e corrosiva da personalidade humana, que, por carregar um elemento negativo que só se aperfeiçoaria em seu efeito (não em sua intenção isoladamente considerada), é de difícil visibilidade.

Nesta perspectiva e diante das atuais conjunturas econômicas, legitimadoras, para muitos, de sacrifícios antes imponderáveis, o presente artigo propõe uma reflexão sobre o sistema gerencialista de produção, na acepção cunhada por Vincent de Gaulejac2, cujas principais características são o primado dos objetivos financeiros, a produção da adesão e a mobilização psíquica do trabalhador. O sistema, tal como concebido, supõe que a experiência humana possa equivaler a resultados numéricos. Para tanto, congrega um conjunto de técnicas e experiências práticas utilizadas nos setores de recursos humanos de grandes empresas, com o objetivo de orientar condutas e estabelecer uma cultura corporativa que mobilize as subjetividades para a realização de um perfil adequado às exigências da norma ordem econômica, ou seja, um indivíduo autônomo, polivalente, responsável, criativo e flexível o suficiente para contornar a instabilidade atual do sistema econômico e superar-se em frequentes situações de adversidade.

Para tanto, como antecedente necessário, algumas linhas serão tecidas sobre o caráter edificante do trabalho, qualidade cuja busca incessante deve estar presente em qualquer conjuntura. Segundo Lukács, o trabalho é a protoforma (a forma originária, primária) da ativi-dade humana. Não, porém, que o ser humano seja a ele redutível, mas no sentido de que a omnilatelaridade humana, expressa nas artes, na ética, na filosofia etc., nele encontra sua base de sustentação. É a partir dele, pois, que as demais expressões da atividade humana podem se desenvolver.

A partir de uma breve recapitulação das várias doutrinas legitimadoras dos modos de produção, expor-se-á como se passou da demanda por uma atitude estritamente mecânica de produção para a sofisticada introjeção, na esfera inconsciente do trabalhador, de mecanismos e objetivos altamente comprometidos com a corporação, a demandar frequente exposição consentida de esferas de sua intimidade e personalidade.

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Por fim, sem embargo de reconhecer a complexi-dade do tema, seja pela dificuldade comumente insuperável de estabelecer esta relação, seja mesmo pela frequente inocorrência dela, serão expostas algumas conexões que por vezes são feitas entre gestão produtiva e patologias atribuídas ao trabalho.

2. Trabalho emancipador

Ao analisar o modo de produção de vida, a forma e o conteúdo do capital, Karl Marx3 ponderou que os homens, para existirem, precisam ser capazes de se reproduzir enquanto seres humanos, e a forma específica desta reprodução opera-se por uma especial relação do homem com a natureza por meio do trabalho. O conceito de trabalho, assim, em Marx, não se limita ao aspecto econômico de mera ocupação, mas é compreendido como atividade vital e prioritária nas relações sociais, nas relações dos homens com a natureza e nas relações com outros homens. A possibilidade de idealização do objeto que impende, com sua força de trabalho, produzir, peculiariza o ser humano e ressalta a capacidade teleológica do ser social: ele tem ideado, em sua consciência, a configuração que quer imprimir ao objeto do trabalho antes mesmo de sua realização.4

O elemento presente neste processo de objetivação e exteriorização imprime utilidade aos produtos dele resultantes, ao mesmo tempo em que estimula uma transformação potencializadora das capacidades humanas, reduzindo o aspecto meramente instintivo e espontâneo dos outros seres vivos, pois o homem, “atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza.”5

Para Georg Lukács6, o trabalho constitui categoria intermediária que possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser social, situando-se, assim, no centro do processo de humanização do homem.

É a função social do trabalho que o distingue de todas as demais atividades humanas, e é por meio dela que o trabalho realiza o intercâmbio orgânico com a nature-za, sem o que não haveria qualquer reprodução social possível. Afirma que:

Por um lado, o próprio homem que trabalha é transformado pelo seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, a sua própria natureza; ‘desenvolve as potências nela ocultas’ e subordina as forças da natureza ‘ao seu próprio poder’. Por outro lado, os objetos e as forças da natureza são transformados em meios, em objetos de trabalho, em matérias-primas, etc. o homem que trabalha ‘utiliza as propriedades mecânicas, físicas e químicas das coisas, a fim de fazê-las atuar como meios para poder exercer seu poder sobre outras coisas, de acordo com sua finalidade’.7

O pressuposto da ontologia de Lukács é, assim, retirado de Marx: os homens apenas podem viver se efetivarem uma contínua transformação da natureza, e isso se dá pelo trabalho.8 Acentua Marx que: “Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana.”9 Pondera, todavia, que o modo de produção capitalista transforma o trabalho concreto “social” em trabalho abstrato “assalariado”, deixando de lado o caráter útil, necessário e razão da relação de intercâmbio entre os homens. Como afirma:

Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de

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trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valores de uso (...). De um lado, tem-se o caráter útil do trabalho, relação de intercâmbio entre os homens e a natureza, condição para a produção de coisas socialmente úteis e necessárias. É o momento em que se efetiva o trabalho concreto, o trabalho em sua dimensão qualitativa. Deixando de lado o caráter útil do trabalho, sua dimensão concreta, resta-lhe apenas ser dispêndio de força humana produtiva, física ou intelectual, social-mente determinada. Aqui aflora sua dimensão abstrata, onde desvanecem-se as diferentes formas de trabalho concreto e onde elas não distinguem uma das outras, mas reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato.10

Em estudo sobre a obra de Benjamin Franklin, Ana Maria Brito Sanches11 identifica que para o estadista, o trabalho era identificado com a própria vida, era visto como energia vital do homem, expressão de sua própria humanidade, e, como tal, a exortação do trabalho era uma exortação à emancipação do homem. Advertiu o escritor, já naquela época, que a sociedade capitalista de consumo, ao criar necessidades superficiais, emprega o homem na produção destas superficialidades e transforma sua força de trabalho, sua energia vital, em mercadoria, alienando-o. E tal importaria, de fato, em última análise, considerado o tempo e a energia dispensados ao trabalho, alienar a própria vida para, paradoxalmente, fazê-la subsistente.

Tais reflexões revelam que ao lado da dimensão construtora, emancipadora, o trabalho também tem um aspecto alienante, opressor, ligado às condições em que é realizado, como destacam Antônia Aranha e Deise Soares Dias:

O trabalho pode conter duas dimensões, dependendo das condições de sua realização. Uma primeira dimensão construtora, emancipadora. É o trabalho concreto de Marx, voltado para a satisfação das necessidades humanas, contribuindo para a realização do indivíduo enquanto criador e transformador do seu meio. (...) outra dimensão alienante, opressora. Nas condições de existência da propriedade privada, o trabalhador não tem condições de interferir sobre os objetivos e produtos do seu trabalho, e até mesmo de dominar o próprio processo de produção.12

O sentido do trabalho não pode ficar reduzido, portanto, à sua dimensão abstrata, sob o risco de ser visto apenas como atividade produtora de mercadorias, invisibilizando os sujeitos que participam, com suas vidas, deste processo. De outro lado, vislumbrar o trabalho apenas em seu sentido concreto induz à idea-lização, impedindo que se vejam as possibilidades de superação de sua forma alienada.

O processo de alienação do trabalho13, de expropriação da atividade essencial em sua plenitude, é próprio da sociedade capitalista, embora tenha suas outras vantagens, bom que se pontue. Se o trabalho, como atividade essencial e vital do homem possibilita sua plena realização, sua humanização, a exploração da atividade humana como expressão de uma relação social fundada na propriedade privada, na produção de mercadorias para o mercado, na distinção entre proprietários e não proprietários, determina o processo inverso, induzindo

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um processo de estranhamento, como refere Ricardo Antunes, com apoio em Marx:

O que deveria se constituir na finalidade básica do ser social – a sua...

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