O trabalho da mulher entre a produção e a reprodução

AutorIsabelle Carvalho Curvo
Ocupação do AutorMestranda em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Advogada
Páginas88-95

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1. Introdução: sobre garotas e garotos

Há cerca de um mês, a marca de absorventes Always iniciou uma intrigante campanha de marketing, cujo vídeo circulou pelas redes sociais e hoje já possui quase 42 milhões de visualizações. Em uma audição, os diretores do vídeo convidaram meninos e meninas de várias idades a encenar situações "como uma garota". Pensemos: o que seria correr como uma garota? Lutar como uma garota? Jogar a bola como uma garota?

O que estava em jogo, afinal, eram os estereótipos acerca do feminino. Entre os adolescentes, ficou evidente que correr ou lutar como uma menina é algo menor ou menos importante. "Como um insulto", disse uma das garotas. "Parece que você está tentando humilhar alguém", disse a outra. Ou seja, jogar bola como uma garota "significa que você é fraco, que não é tão bom quanto eles". E quem são "eles", nesse caso? O vídeo demonstra claramente como funciona nosso imaginário: de um lado existem coisas de meninos e, de outro, coisas de meninas, universos separados, distintos, incomunicáveis. Nesse quadro de referência, quando mulheres realizam atos convencionados masculinos, tais como lutar e jogar bola, elas só podem ser piores. São e serão símbolo de fracasso, fragilidade e fraqueza, como se aqueles atos fossem alheios à sua condição feminina.

Em uma segunda parte do vídeo, no entanto, meninas mais novas são chamadas a interpretar as mesmas cenas. E o mais interessante acontece: elas dão o melhor de si, correm sem pensar pelo set de filmagem, lutam e atiram a bola com toda a força. À pergunta "O que significa correr como uma garota?", uma menina responde "Correr o mais rápido que você consegue". A intuição presente na campanha é a de que não só a "condição feminina" mas também o seu tom negativo são elementos construídos, decorrentes de certa socialização. Quando crianças, não sabemos bem o que significa ser uma garota, ou se isso é bom ou ruim. Nessa fase, "eu acordo como uma garota porque eu sou uma garota". Pouco a pouco é que vamos aprendendo que lutar com espadas, brincar com carrinhos, soltar pipas ou jogar video games são coisas de meninos. Pouco a pouco vamos aprendendo a nos comportar, a gostar do universo das bonecas, a cruzar as pernas, a falar baixo e a usar batom, aprendemos o que "é" a mulher.

2. Os estereótipos da reprodução

Dentro da tradição que nos cerca, nossos pensamentos e ações se baseiam em certas imagens do que mulheres e homens são, de como devem agir, de como devem se portar. É isso que nos permite ver uma propaganda e inclusive criticar o que significa correr ou lutar "como uma menina"; as imagens são nossas referências - homens são fortes, mulheres nem tanto; homens usam sapatos, mulheres, saltos; homens dirigem bem, mulheres cozinham bem. Na fronteira entre sexo e gênero, os limites e origens dessas diferenças são pouco questionados, e seguimos acreditando que os distintos papéis são complementares - cada um a seu modo, ambos, homens e mulheres, mantêm a sociedade binária funcionando.

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A divisão sexual do trabalho é uma forma de organização espacial do trabalho na sociedade, que decorre da divisão e determinação dos gêneros masculino e feminino. Funciona como uma separação das funções consideradas próprias a um e a outro sexo, mas essas funções não são exatamente complementares. Pois além de diferentes as tarefas dadas aos homens são consideradas de maior valor e reconhecimento social, pelo simples fato de terem sido realizadas por um homem. Não é coincidência que políticos, religiosos, militares e grandes empresários sejam homens. Ou seja, a divisão sexual do trabalho se assenta em duas premissas: a de separação e a de hierarquização dos papéis (NOBRE, 2004), sendo que ambas as premissas têm, no fundo, uma deter-minada representação do feminino e do masculino.

As imagens de gênero são prévias à inserção de homens e mulheres no trabalho, ou seja, são produzidas e reproduzidas desde as etapas iniciais da socialização dos indivíduos e estão baseadas na separação entre o privado e o público, o mundo familiar e o mundo produtivo, e na definição de uns como territórios de mulheres e outros como territórios de homens. Por sua vez, essas imagens condicionam fortemente as formas (diferenciadas e desiguais) de inserção de homens e mulheres no mundo do trabalho: tanto as oportunidades de emprego quanto as condições em que este se desenvolve. (ABRAMO, 2007. p. 10)

Tradicionalmente, essa divisão se refletiu na separação entre outras duas esferas: de um lado, a da produção, ou do espaço público, simbolizado pela fábrica e considerado território masculino; e de outro, a esfera da reprodução, situada no espaço privado, a casa, o lugar do feminino. A complementaridade física e simbólica entre os dois campos se materializou nas figuras do homem-provedor e mulher-dona-de-casa: cabia ao pai manter o sustento da família através do trabalho, enquanto à mãe cabiam as tarefas domésticas, que incluem o cuidado e a educação dos filhos e idosos (HIRATA, 2004). Afinal, se a mulher não precisava ganhar dinheiro, para quê trabalhar? Mal visto pela sociedade e pelos maridos, o trabalho feminino por muito tempo foi considerado secundário e pouco valorizado, inclusive do ponto de vista econômico. Isso quando o trabalho era permitido pela autoridade moral e legal masculina. A família girava em torno da figura paterna, todos nela deveriam se adequar aos projetos pessoais e profissionais do pai/marido.

A partir da década de 70, com a entrada mas-siva da mulher no mercado de trabalho, vemos a transformação radical do que entendíamos como família e como trabalho, lançando questões até hoje debatidas e pouco consensuais. De algum modo, o trabalho fora de casa simbolizou desde logo a segurança em um mundo de relações progressivamente inseguras e casamentos instáveis, representou a autonomia e independência tolhidas por tanto tempo.

Da mesma forma que a família, entidade natural, biológica e duradoura se esfacela, também implode a esfera do trabalho assalariado, espaço produtivo e masculino por excelência. Progressivamente os espaços masculinos vão sendo tomados, e a família se reorganiza em vários projetos de vida, múltiplos, distintos, individuais e coletivos. A tríade pai-mãe-filhos se transforma, afetada pela diversi-dade e instabilidade do mundo moderno, no qual agora há famílias plurais, outras monoparentais, casais divorciados e famílias reconstituídas posteriormente, uniões estáveis, uniões homoafetivas, assim como pessoas que simplesmente não desejam se casar ou ter filhos.

Difícil encontrar uma definição de família de forma a dimensionar o que, no contexto social dos dias de hoje, se insere nesse conceito. É mais ou menos intuitivo identificar família com a noção de casamento, ou seja, pessoas ligadas pelo vínculo do matrimônio. Também vem à mente a imagem da família patriarcal, o pai como a figura central, na companhia da esposa e rodeados de filhos, genros, noras e netos. Essa visão hierarquizada da família, no entanto, sofreu com o tempo uma profunda transformação. Além de ter havido uma significativa diminuição do número de seus componentes, também começou a haver um embaralhamento de papéis. [...] Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares...

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