O trabalho autônomo da Reforma Trabalhista e a violação às normas internacionais de proteção ao trabalho

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas311-324

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Ver Nota1

1. Introdução

O presente trabalho visa ao estudo do artigo 442-B da CLT, introduzido pela Lei n. 13.467/2017, relativo à contratação de trabalhador autônomo, em contraposição com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Objetiva-se demonstrar que a interpretação desse dispositivo como uma excludente legal da relação de emprego viola frontalmente os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, em especial as normas internacionais relativas à igualdade e à não discriminação, à saúde e segurança no trabalho, à liberdade sindical e à negociação coletiva e ao regime de emprego socialmente protegido.2

Conforme o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os tratados internacionais de direitos humanos – como é o caso das normas produzidas no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT) –, quando não aprovados segundo os parâmetros estabelecidos no art. 5º, §3º, da CF/88, ingressam no ordenamento jurídico pátrio com status supralegal3. Desse modo, as normas legais –, como o artigo 442-B da CLT, introduzido pela Lei n. 13.467/2017 –, devem ser interpretadas de acordo com as normas internacionais, pois estas possuem, no mínimo, hierarquia supralegal.

O Poder Judiciário nacional, em especial a Justiça do Trabalho, tem o dever de realizar o controle de convencionalidade do referido dispositivo legal, conferindo-lhe uma interpretação conforme os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Nesse sentido, em conformidade com o disposto nas normas internacionais de proteção ao trabalho, deve ser excluída qualquer interpretação do referido dispositivo como uma excludente legal da relação de emprego. Assim, caso presentes os elementos fático-jurídicos da relação de emprego, em especial a subordinação, deve ser reconhecido o vínculo empregatício do trabalhador contratado formalmente como autônomo com o seu tomador de serviços.

2. A interpretação sistemática

A Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, ao alterar a CLT, introduziu o seguinte dispositivo legal, relativo à contratação de trabalhador autônomo:

Art. 442-B. A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação4.

Segundo Carlos Maximiliano, “a hermenêutica jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance da norma”5.

Nesse sentido, a interpretação de uma norma jurídica pressupõe a aplicação de regras anteriormente definidas pela hermenêutica para extrair o significado e extensão da norma. Entre os métodos de interpretação pode-se citar o sistemático, que consiste em “interpretação da norma à luz das outras normas e do espírito (principiologia) do ordenamento jurídico, o qual não é a soma de suas partes, mas uma síntese (espírito) delas. A interpretação sistemática procura compatibilizar a partes entre si e as partes com o todo – é a interpretação do todo pelas partes e das partes pelo todo”6.

Como toda norma jurídica, o novel artigo acima transcrito deve ser interpretado de forma sistemática, em conjunto com os demais dispositivos da própria CLT, entre os quais os artigos , e 9º. Nos termos dos artigos e da CLT, há relação de emprego quando o trabalhador presta serviços com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação. No caso da contratação prevista no artigo 442-B da CLT, é necessário verificar se na relação estabelecida entre o trabalhador autônomo e o contratante estão presentes os elementos fático-jurídicos da relação de emprego, em especial a subordinação. Caso estes se façam presentes, por força do artigo 9º da CLT, deve ser declarada a nulidade do contrato, com o consequente reconhecimento de vínculo empregatício do trabalhador com o seu contratante.

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Cumpre notar que esse mesmo entendimento foi adotado pela doutrina e jurisprudência pátrias na interpretação do parágrafo único do artigo 442 da CLT, introduzido pela Lei 8.949, de 19947. Com efeito, consagrou-se o entendimento de que, não obstante o trabalhador preste serviços formalmente como cooperado, caso presentes os elementos fático-jurídicos da relação de emprego, deve ser reconhecido o vínculo empregatício daquele com o seu tomador de serviços, com fulcro no artigo 9º da CLT8.

Nesse sentido, é irrelevante o fato de o trabalhador prestar serviços ao contratante sem exclusividade, pois esta não é elemento necessário para a configuração da relação de emprego. Com efeito, é plenamente possível que o trabalhador mantenha simultaneamente mais de um vínculo empregatício9.

Do mesmo modo, a ausência de continuidade não é obstáculo para o reconhecimento da relação de emprego do trabalhador com o respectivo contratante. Conforme assentado pela doutrina e jurisprudência pátrias –, com exceção do trabalho doméstico, que tem a continuidade como um de seus requisitos –, para a configuração da relação de emprego é necessária a presença da não eventualidade, que é diversa da continuidade. Com efeito, enquanto a CLT, ao conceituar a relação de emprego, prevê expressamente “serviços de natureza não eventual” (artigo 3º, caput), o que não foi alterado pela Lei 13.467/2017, a legislação aplicável ao trabalho doméstico vale-se de expressão distinta, isto é, “serviços de natureza contínua” (artigo 1º, caput, da Lei 5.859/72) ou “serviços de forma contínua” (artigo 1º, caput, da Lei Complementar 150/2015).

Disso resulta a possibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício do trabalhador contratado formalmente como autônomo, ainda que preste serviços de forma descontínua, desde que presente o elemento fático-jurídico da não eventualidade. Como ressalta Mauricio Godinho Delgado: “a even-tualidade, para fins celetistas, não traduz intermitência; só o traduz para a teoria da descontinuidade – rejeitada, porém, pela CLT. Desse modo, se a prestação é descontínua, mas permanente, deixa de haver eventualidade. É que a jornada contratual pode ser inferior à jornada legal, inclusive no que concerne aos dias laborados na semana”10.

Desse modo, conclui-se que, para a declaração da nulidade do contrato previsto no artigo 442-B da CLT e o consequente reconhecimento do vínculo empregatício do trabalhador com seu contratante, basta que estejam presentes os elementos fático-jurídicos da relação de emprego (pessoalidade, subordinação, onerosidade e não eventualidade), sendo irrelevante o fato de o serviço ser prestado sem exclusividade ou de forma descontínua.

Por outro lado, a presença de exclusividade e de continui-dade na prestação de serviços podem ser tidos, na análise do caso concreto, como indícios da existência da relação de emprego, para cuja configuração, no entanto, é necessária a presença dos elementos fático-jurídicos acima referidos.

Resta claro, portanto, que o artigo 442-B da CLT não pode ser interpretado como uma excludente legal da relação de emprego. Primeiramente, por força do disposto nos artigos 2º, 3º e 9º do mesmo diploma legal. Ademais, tal interpretação viria de encontro às normas constitucionais e internacionais de proteção ao trabalho.

3. Controle de convencionalidade

Conforme o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os tratados internacionais de direitos humanos –, como é o caso das normas produzidas no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT) –, quando não aprovados segundo os parâmetros estabelecidos no art. 5º, §3º, da CF/88, ingressam no ordenamento jurídico pátrio com status supralegal. Desse modo, as normas legais, como o artigo 442-B da CLT, devem ser interpretadas de acordo com as normas internacionais, pois estas possuem, no mínimo, hierarquia supralegal.

Segundo as lições de José Joaquim Gomes Canotilho, os direitos humanos possuem quatro funções fundamentais: função de defesa ou de liberdade, função de prestação social, função de proteção perante terceiros e função de não discriminação11.

Todos os agentes estatais estão adstritos ao dever de proteção perante terceiros dos direitos humanos, o qual enseja o dever do Poder Legislativo de não produzir normas contrárias a tais direitos e, caso isso ocorra, o dever do Poder Judiciário de fazer sucumbir a norma violadora por meio do controle de constitucionalidade e do controle de convencionalidade. Com efeito, o agente estatal encontra-se juridicamente impedido de atuar de forma a afrontar o Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo vedado ao

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legislador produzir norma contrária a esse último e proibido ao julgador dar cumprimento à norma violadora desse mesmo Direito, ainda que aprovada segundo os trâmites do processo legislativo nacional12.

Desse modo, o Poder Judiciário nacional, inclusive os juízes de primeira instância, têm a obrigação jurídica de realizar o controle de convencionalidade das leis internas ex officio, por serem agentes estatais vinculados às normas de Direito Inter-nacional dos Direitos Humanos. Devem os magistrados, portanto, deixar de aplicar as normas internas que contraponham esse último. Essa obrigação jurídica decorre do artigo 5º, §2º, da Constituição Federal de 1988, bem como de tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil (artigo 2.2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, da ONU; artigos 1º e 2º da Convenção Americana sobre...

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