O trabalhador na sociedade técnica

AutorEduardo Souza Braga e João Bosco Penna
CargoMestrando em Direito pela Universidade Estadual Paulista/Doutor em Medicina Legal pela Universidade de São Paulo
Páginas205-217

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1. Introdução

No mundo do trabalho, como nos outros campos das relações humanas, a técnica vem se constituindo, sobretudo nos dois últimos séculos, como fator propulsor de radicais transformações sociais.

Novas técnicas de gerenciamento, dificuldades de adaptação homem-máquina e controle exacerbado do trabalho são fatores que tornaram o ambiente de trabalho um local propício para o sequestro da subjetividade do ser humano, seja pelo aumento da quantidade de trabalho, com possibilidades de se laborar o tempo todo, ou por sua intensidade crescente.

Essa nova con?guração do ambiente de trabalho, induvidosamente, tem o condão de causar prejuízos vários à higidez física e psíquica do trabalhador.

Há um aprisionamento do trabalhador, que tem sua vida particular invadida por sua vida pro?ssional.

Interações familiares e momentos de lazer, sem preocupações com o trabalho, se tornam cada vez mais raros, em prejuízo à identidade do trabalhador.

Há uma instrumentalização do trabalhador, o que o transforma em uma espécie de escravo técnico.

Ainda que se reconheça a supremacia da técnica, é certo que ela não é específica e deliberadamente direcionada à degradação do homem que trabalha, o que signi?ca que saídas existem dentro da própria técnica, com participação dos atores sociais envolvidos.

Esses são os principais tópicos a serem tratados neste trabalho, sem nenhuma intenção de exaurir o tema, especialmente porque a própria essência transformadora da técnica não permitiria.

2. A técnica moderna Conceito e características

A técnica pode ser conceituada, de modo sintético, como o conhecimento capaz de gerar meios de aprimorar o fazer humano.

Desse modo, conclui-se que a técnica está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento do homem.

A técnica possui características próprias que a distingue de todos os outros fenômenos presentes no mundo, além de colocá-la em posição de destaque absoluto na formação das relações sociais, atuando como elemento identi?cador base e diferenciador das interações entre os indivíduos.

Exemplo típico da influência irradiante da técnica é a própria caracterização da era moderna a partir da revolução industrial, em que o desenvolvimento de novas formas de produção (aprimoramento do fazer humano) possibilitou um novo estágio das interações entre os homens, com repercussões objetivas (interações “homem-homem” e “homem-máquina”) e subjetivas (construção do subjetivismo na modernidade).

Nesse contexto, a técnica moderna representa uma potencialização de suas repercussões no indivíduo, com a criação da ?gura do “homem moderno”.

Surge, na contemporaneidade, o conceito de “tecnologia”, que nada mais é do que uma mera expressão da evolução da técnica. Por ser uma simples derivação, a opção, neste trabalho, foi pelo termo que identi?ca o fenômeno em sua essência e inteireza.

Segundo um dos principais estudiosos sobre os efeitos da técnica na formação e identi?cação da sociedade moderna, o pensador francês Jacques Ellul, são “caracteres novos” da técnica moderna o automatismo, o auto-crescimento, a insecabilidade (ou unidade), o universalismo, a autonomia, a racionalidade e a arti?cialidade.

A racionalidade e a arti?cialidade praticamente não são trabalhadas por Ellul, diante de sua notória evidência, na medida em que não há fenômeno técnico sem processo racional lógico de construção, sendo certo que o mundo construído e transformado progressivamente pela técnica nada tem de natural.

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Para Ellul, o automatismo da escolha técnica “consiste em que a orientação e as escolhas técnicas se efetuam por si mesmas”1.

No interior do campo técnico, a escolha entre os métodos, o maquinismo, as organizações, as receitas, efetua-se automaticamente. O homem é privado de sua escolha e está satisfeito com isso. Aceita-o, dando razão à técnica”2.

Sendo determinado método técnico mais e?caz que os demais, é certo que ele tende a se tornar o único a ser utilizado, ao menos até o aparecimento de outro com maior e?cácia.

Não há, assim, escolha entre várias técnicas, mas simplesmente aceitação daquela que detém a maior e?cácia.

Nesse contexto, busca-se sempre a técnica mais perfeita, entendida como a que melhor resolve os problemas que a ela foram submetidos.

A técnica se desenvolve e se modi?ca praticamente sem a intervenção do ser humano.

A certeza nos resultados da técnica, na sua superioridade e em seu papel de protagonista na condução do progresso da humanidade, leva o homem a crer na inevitabilidade do progresso técnico e na sua continuidade sem obstáculos.

O crescimento da técnica ocorre pelo princípio da combinação das técnicas, que, segundo Ellul, pode ser formulado em duas leis: a irreversibilidade do progresso técnico e o seu crescimento em progressão geométrica.

Em relação ao crescimento acelerado e desenfreado da técnica, desnecessárias maiores explanações, já que tal característica é deveras evidente neste limiar de século, notadamente pela crescente “obsolência dos avanços técnicos”.

Pela irreversibilidade do progresso técnico, tem-se que cada invenção técnica provoca outras invenções técnicas em outros domínios, sem retrocessos, limites e condicionantes advindas do ser humano.

Nas palavras do pensador francês:

Não são mais nem as condições econômicas ou sociais, nem a formação intelectual; não é mais o fator humano que é determinante, mas essencialmente a situação técnica anterior. Quando ocorre determinada descoberta técnica, seguem-se quase necessariamente outras descobertas. A intervenção humana nessa sucessão aparece como ocasional e não é mais um homem determinado que sozinho possa realizar esse progresso, mas qualquer pessoa su?cientemente a par das técnicas pode fazer uma descoberta válida que sucede racionalmente às precedentes e anuncia racionalmente a seguinte.3

En?m, não mais existem grandes e determinantes descobertas e descobridores, mas sucessão de pequenas evoluções, que resultam em um determinado estágio do progresso técnico, que sequer é previsível e controlável, na medida em que o melhoramento técnico em uma área pode causar interferências em outras áreas, conexas ou não, com mudanças de estruturas e comportamentos sociais, além de criar problemas técnicos até então inexistentes.

Aliás, em relação aos problemas técnicos criados, é certo que eles também devem ser considerados como fatores de propulsão do progresso técnico, já que a técnica os cria e os resolve.

Nas palavras de Ellul:
(...) a técnica, desenvolvendo-se, apresenta problemas inicialmente técnicos, os quais, por isso mesmo, só podem ser resolvidos pela técnica. O nível atual reclama um novo progresso e esse progresso aumenta, ao mesmo tempo, os inconvenientes e os problemas técnicos, exigindo em seguida, ainda outros progressos.

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Esse fenômeno é particularmente sensível no urbanismo. A grande cidade supõe concentração de meios de transporte, aeração, organização e circulação, condicionamento de ar etc.: cada um desses elementos permite à cidade crescer ainda mais e provoca novos progressos técnicos.

Para facilitar a vida da dona de casa nos Estados Unidos, utiliza-se um novo aparelho que tritura o lixo e permite eliminá-lo pelo ralo da pia. Esse processo provoca imensa poluição em todos os rios norte-americanos. É preciso então procurar um novo meio de puri?cação dessa água que deve, em de?nitivo, ser consumida: maior quantidade de oxigênio será necessária para permitir às bactérias destruir as matérias orgânicas. Como oxigenar os rios? Eis como a técnica se engendra a si mesma.4

Conclui-se, então, que, no atual estágio da técnica, qualquer ser humano pode contribuir para o inevitável progresso técnico, desde que treinado para este ?m ou, para ser ?el ao estudioso francês, desde que adestrado para se desincumbir da tarefa.

A evolução da técnica se torna causal e cada vez mais espontânea, sem ?nalidade precisa e especí?ca.

Nesse contexto, a inteligência humana particular cede espaço para qualidades adquiridas, normalmente mecânicas, voltadas para a operação dos resultados da técnica, o que torna o homem mais um expectador do que um agente de transformação e controle das estruturas da técnica.

Uma vez mais, necessária a transcrição dos sábios ensinamentos de Ellul:

Nessa evolução decisiva, o homem não interfere, mas os elementos técnicos se combinam e tendem cada vez mais a combinar-se espontaneamente, de tal modo que a função do homem se limita ainda uma vez à de um aparelho registrador, veri?cando o efeito das técnicas umas sobre as outras e seus resultados.5

En?m, a técnica cresce para o homem e, sobretudo, para além dele e sem a sua inter-venção determinante.

A unicidade ou insecabilidade da técnica revela que o fenômeno técnico apresenta essen-cialmente os mesmos caracteres, formando um todo.

Essa característica é deveras evidente quando se nota como é fácil discernir o que é fenômeno técnico daquilo que não é.

De acordo com Ellul:
A análise dos traços comuns é delicada, mas a percepção de sua evidência é fácil. Ora, sem nenhuma possível dúvida, assim como há princípios comuns entre uma estação de rádio e um motor de explosão, assim também os caracteres são idênticos entre a organização de um escritório e a construção de um avião. Essa identidade em que seria útil insistir, é realmente o primeiro índice dessa unidade profunda que constitui o fenômeno técnico, essencial, sob a extrema diversidade de suas aparências.

Como corolário, é impossível separar este ou aquele elemento: verdade essencial, particularmente ignorada hoje em dia. A principal tendência de todos aqueles que pensam nas técnicas é distinguir: distinguir entre a técnica e o uso que dela se faz. Essas distinções são...

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