A Tortura na História e a (Ir)racionalidade do Poder de Punir

AutorLígia Mori Madeira
CargoSocióloga; Bacharel em Direito; Mestre e Doutoranda em Sociologia (UFRGS); Professora das Faculdades de Direito da PUCRS e da UNISINOS
Páginas201-212

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1. A tortura no Medievo: a institucionalização da prática em busca da confissão

Iniciando então nosso primeiro tópico, vemos, a partir de uma pesquisa histórica, que a tortura é uma prática que remonta à Antiguidade. Em todas as sociedades e ordenamentos jurídicos da história, há informações sobre o uso do corpo como forma de fazer sofrer e punir àqueles que são considerados criminosos ou desviantes da moral ou dos valores tradicionais. Podemos dar como exemplo a lapidação no direito hebreu, considerado o mais humano dos direitos antigos.

Assim, vemos que a idéia do sofrimento corporal transcende a história humana, mas é sem dúvida na Idade Média, sob a atuação da Igreja Católica, que a tortura ganha força e legitimidade.

Antes de tratarmos exclusivamente da utilização da tortura, cabe referir o papel da Igreja neste período marcado pela descentralização política, crise de identidade e analfabetismo de grandes contingentes populacionais. Podemos salientar a importância da Igreja ocidental na Idade Média, tendo assumido muitas das tarefas públicas, sociais e morais do antigo império romano1. A Igreja era a força espiritual de longe mais importante; era a mais coerente e mais extensaPage 203 organização social da Idade Média; a sua ordem jurídica interna era a mais poderosa da Idade Média (Wieacker, 1967, p. 67).

Dentro dessas atribuições, cabe referir a Reforma Gregoriana e o significado político do Tribunal do Santo Ofício. A Reforma Gregoriana, levada a cabo pelo Papa Gregório VII2, teve como objetivo um processo de autonomização e centralização da Igreja, a partir de um movimento conhecido como Querela das Investiduras3, que cerceou nas mãos do pontífice o processo de nomeação de bispos4, o que culminará com a organização de um poder político, que será a origem do Estado Moderno: dominação burocrática, racional, legal e formal (Weber, 1999). A partir da reforma, inaugura-se o modelo que irá vigorar na Europa até o período das reformas, no século XVI, da Igreja constituindo-se em poder paralelo ao Estado.

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A finalidade de Gregório VII com a Reforma era o estabelecimento de um poder disciplinar em suas mãos, um controle central de uma população dispersa, o estabelecimento de uma identidade corporativa do clero com um certo corpo de leis disciplinares, dando em uma consciência de classe. Afirmação da superioridade da lei sobre os costumes (Lopes, 2003, p. 90).

Nessa empreitada, a Inquisição e as Cruzadas foram dois grandes movimentos interligados e oriundos da organização eclesiástica romana.

O Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Inquisição surgiu em 1233 como um tribunal especial para julgar e condenar os hereges5. Após cerca de cinco séculos, esta temível instituição continuaria consumindo os considerados inimigos da igreja, heréticos ou feiticeiros às centenas de milhares. A heresia é uma ruptura com o dominante e ao mesmo tempo uma adesão a uma outra mensagem. É contagiosa e em determinadas condições dissemina-se facilmente na sociedade. Daí o perigo que representa para a ordem estabelecida, sempre preocupada em preservar a estrutura social tradicional.

Se no séc. XIII a punição para os hereges era a excomunhão, com o passar dos séculos, especialmente quando o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano, os heréticos passaram a ser perseguidos como inimigos do Estado.

Entre os séc. XI e XV, as heresias são geradas principalmente pelo desenvolvimento cultural, acompanhado de prosperidade econômica e crescimento urbano. As reflexões filosóficas e teológicas da época produzem conhecimento que contradizem a concepção de mundo defendida pelo poder eclesiástico.

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Em termos processuais, no Tribunal do Santo Ofício o direito de acusar pertencia somente à parte lesada, com uma diferenciação na aplicação das penas entre nobres e plebeus. A origem do processo baseava-se e acusações secretas, os atos e provas eram mantidos em segredo e a prova testemunhal era a mais utilizada. Além disso, a prova de confissão era a mais importante. Os juízes eram livres para interpretar as leis, além de poderem utilizar penas variadas (Castro, 2003, p. 138). O processo era instaurado de ofício, a mando do inquisidor, perdendo o caráter de contraditório.

Apesar de o Tribunal do Santo Ofício ser de exceção, voltado especificamente aos delitos de heresia, acabou tornando-se num instrumento de centralização monárquica da Igreja e, posteriormente, dos Estados Nacionais.

É no Tribunal da Inquisição que historicamente temos a maior utilização da tortura na história da humanidade. Como processualmente a principal prova era a confissão, a tortura era largamente usada com este intuito, sendo considerada um ato formal do processo, tendo seu uso legitimado, a partir de instrumentos como o balcão de estiramento, a cadeira das feiticeiras, o esmaga seios, o despertador... A atuação dos torturadores era...

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