The world of labour and structural crisis of capital/O mundo do trabalho e a crise estrutural do capital.

AutorBatista, Flavio Roberto
CargoResena de libro

Introducao

Neste ano de 2018, em que se completam duzentos anos do nascimento de Karl Marx, boa parte do pensamento critico em todo o planeta estara debrucado no debate de seu legado. Ninguem na historia do pensamento humano foi capaz de provocar tantas paixoes e tantas oposicoes; nenhum autor jamais mobilizou tanta energia em torno de sua obra.

O desafio a que se propoe o autor deste artigo e investigar a confluencia entre duas das mais marcantes contribuicoes de seu legado: o tratamento teorico do fenomeno das crises no modo de producao capitalista (1), especialmente em sua face mais destrutiva e mais relevante, a crise estrutural do capital, de um lado; e, de outro lado, a investigacao do que vem sendo chamado, especialmente por autores e pesquisadores ligados ao campo da sociologia do trabalho, de "mundo do trabalho", em suas multiplas determinacoes e a partir de sua relevancia epistemologica como chave de compreensao de toda a organizacao social sob o modo de producao capitalista.

Em vista de tal objetivo, em que se evidencia o contraste da amplitude e multidimensionalidade do objeto com a restrita extensao de espaco disponivel para esta modesta contribuicao, a articulacao do raciocinio sera bastante simples e direta: serao investigadas as contribuicoes acerca dos conceitos de crise e de crise estrutural do capital, em seguida sera abordada a conformacao do "mundo do trabalho" sob o modo de producao capitalista e, por fim, em sintese conclusiva, serao desenvolvidas algumas das potencialidades criticas e transformadoras despertadas no "mundo do trabalho" num cenario de crise estrutural do capital.

  1. Crise e crise estrutural do capital

    1.1. Existe uma teoria marxiana das crises?

    O tema das crises sempre habitou o horizonte de preocupacoes da producao marxiana, tanto do ponto de vista teorico quanto pratico. Do ponto de vista teorico, havia uma disposicao inicial de Marx para que a tematica das crises ocupasse uma das seis partes previstas inicialmente para a elaboracao de sua principal obra, O Capital (1996) (2). E o que relata Roman Rosdolsky, em estudo em que se dedicou especificamente a investigar, dos pontos de vista historico e teorico, a articulacao das ideias que compoem O Capital, a partir de sua confrontacao com os chamados Grundrisse (2011), alem de outros manuscritos de versoes preliminares d'O Capital legados por Marx:

    Como se sabe, Marx elaborou dois planos--em 1857 e 1866 (ou 1865)--que deveriam servir de base para sua principal obra economica. (...). No plano de 1857, o conjunto da obra estava dividido em seis "livros" (ou "secoes" ou "capitulos"). O primeiro deveria versar sobre o capital; o segundo, sobre a propriedade da terra; o terceiro, sobre o trabalho assalariado; o quarto, sobre o Estado; o quinto, sobre o comercio exterior; o sexto, sobre o mercado mundial e as crises. (ROSDOLSKY, 2001: 27)

    Portanto, Marx ja sabia de antemao, a partir de seus estudos de economia, ainda desorganizados, iniciados mais de uma decada antes (ROSDOSLKY, 2001: 21-25), que, do ponto de vista teorico, as crises desempenhavam papel importante na compreensao do capitalismo. Ha quem diga, ate, que a colocacao do tema no ultimo livro do plano inicial indicaria que a crise constituiria "o momento culminante do processo expositivo e, simultaneamente, do processo de acumulacao do capital" (ANTUNES, 2005: 19). Porem, conforme e relatado pelo mesmo Rosdolsky, foi tambem uma crise economica, ocorrida em 1857, que precipitou a organizacao de um plano de trabalho e a redacao da obra:

    E relevante lembrar que a decisao de redigir os Grundrisse e a pressa febril com que a tarefa foi cumprida (o enorme manuscrito foi concluido em nove meses, entre julho de 1857 e marco de 1858) decorreram especialmente do advento da crise economica de 1857. (ROSDOLSKY, 2001: 25)

    Uma das mais importantes contribuicoes de Rosdolsky para o debate do legado de Marx e justamente a demonstracao e a explicacao sobre as transformacoes que o projeto inicial de sua obra teorica economica sofreu ao longo dos nove anos que mediaram a redacao dos Grundrisse e a redacao do primeiro livro d'0 Capital. Nesse processo, o livro em que seria examinada a questao das crises foi suprimido do plano original, juntamente com os livros que examinariam o Estado e o comercio exterior. Rosdolsky sustenta, de um lado, que isso jamais decorreu de uma consideracao de ausencia de importancia do tema, e, de outro, que a principal consequencia dessa transformacao e a incompletude do que poderia ser chamada de uma teoria marxiana das crises:

    O mesmo vale para o problema, estritamente vinculado a elas [conexoes do mercado mundial], dos ciclos industriais, "a alternancia de prosperidade e crise", "cuja analise mais aprofundada"--como Marx destaca repetidamente--"se situa fora do ambito de nosso tema", podendo vir a ser tratado em um "desdobramento eventual da obra". Isso demonstra que, de fato, a teoria de Marx sobre as crises apresenta "lacunas", no sentido de que ele mesmo nao previra tratar o problema em seu nivel mais concreto. (ROSDOSLKY, 2001: 36-37)

    E preciso ter claro, assim, que, se e certo que para tratar do tema da crise no pensamento de Marx nao se pode restringir a leitura a obra propriamente marxiana, o acesso a literatura marxista nao pode olvidar que os temas que foram retirados do plano original d'O Capital acabaram, em grande medida, incorporados em outras secoes da obra efetivamente desenvolvida, de modo que ela persiste sendo o ponto de partida para tal iniciativa. Nesse ponto, alias, as leituras d'O Capital empreendidas pelo autor deste texto afastam-se da percepcao de Rosdolsky. As lacunas ou incompletudes da teoria marxiana das crises nao dizem respeito a teoria como tal, mas apenas a sua forma de exposicao, que se encontra fragmentada ao longo de todo texto. Este desenvolvimento, portanto, coincide sobremaneira com as conclusoes obtidas no extenso e profundo estudo de Jadir Antunes, que observou:

    Nosso trabalho demonstra, por isso, que e possivel encontrar em Marx uma teoria coerente sobre as crises do capital, uma teoria dialetica que parta da analise das possibilidades mais formais e abstratas da crise ate sua conversao em realidade. Este processo so pode ser demonstrado junto com a demonstracao do processo global de desenvolvimento do capital. O conceito de crise do capital e indissociavel do conceito de capital, por isso, nossa analise sobre o desenvolvimento da crise acompanhou o desenvolvimento do conceito de capital exposto por Marx nos tres livros de compoem O Capital. (ANTUNES, 2005: 23)

    Por isso, como ja observado, evidentemente e necessario debater com as "bibliotecas inteiras" (ANTUNES, 2005: 15) que estao preenchidas com obras sobre o tema escritas por autores do calibre de Kautsky, Luxemburgo, Lenin, Tugan-Baranovski, Hilferding, Grossmann, Sweezy, Carstells, Mandel, alem do proprio Rosdolsky, mas, ainda nas palavras de Antunes,

    A ausencia em Marx de uma elaboracao sistematica e definitiva sobre o futuro da acumulacao de capital nao parece nos autorizar a corrigir e completar Marx, como procurou Rosa Luxemburg, nem ao mesmo tempo nos autoriza transformar Marx num ricardiano de esquerda, como pretendeu Hilferding. (ANTUNES, 2005: 21)

    O que e preciso, portanto, para quem pretenda formular uma teoria marxiana das crises, e encontrar uma forma adequada e articulada de exposicao, que transforme as indicacoes esparsas em um todo completo e coerente. A propria exposicao das formas de movimento do capital, entretanto, deve fornecer todos os elementos para a tarefa, como demonstrado pelo ja mencionado Antunes.

    1.2. O que se deve entender por crise?

    A partir das constatacoes obtidas na secao anterior, o procedimento de pesquisa adotado consistiu na releitura do texto de O Capital em busca de um recenseamento das ocorrencias do tratamento das crises, procurando identificar seus contextos e articulacoes afim de reconstruir o pensamento ali diluido. O procedimento de releitura para o recenseamento de ocorrencias de ideias, ja utilizado em anterior oportunidade de pesquisa (3), mostra-se usualmente bastante proficuo em seus resultados, mas aponta para uma grande dificuldade de escolha de um bom procedimento de exposicao que nao canse o leitor e que consiga transmitir toda a riqueza dos resultados advindos da leitura. Para tanto, sera feita a opcao pela manutencao do procedimento anteriormente adotado, de nao apresentar todos os resultados--ate porque, na maioria das ocorrencias, Marx esta tratando de episodios concretos de crise utilizados como evidencias factuais de suas descobertas, sempre em formulas como "durante a crise do algodao de 1845" e similares--, mas de buscar compor por meio deles um quadro teorico a ser apresentado de forma articulada. Nao se trata, portanto, de uma demonstracao quantitativa do uso da palavra "crise" n'O Capital, mas de uma tentativa de compreensao das ideias por tras de tal uso.

    As mencoes a crise estao espalhadas por todo o texto d'O Capital, mas encontram maior concentracao em seu terceiro livro. Praticamente todo o tratamento sobre o capital portador de juros e fortemente permeado pelo tema da crise, contrastando com uma quantidade bem inferior de ocorrencias no primeiro e no segundo livros, em que o tratamento da crise aparece, de forma concentrada, associado ao tema do dinheiro, da acumulacao capitalista e dos ciclos do capital. Esse mesmo movimento, ao ser percebido por Jadir Antunes, revela seu significado conceitual e reforca a disposicao de leitura d'O Capital segundo a qual o primeiro e mais popular de seus livros, embora tenha sido o unico a que o proprio Marx deu a forma acabada de elaboracao, nao pode ser lido de maneira dissociada dos outros dois:

    Marx possui, sim, uma teoria sobre as crises do capital. Contudo, esta teoria e uma teoria dialetica que so pode ser compreendida a partir da analise do desenvolvimento das possibilidades mais abstratas e formais da crise ate sua realidade...

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