The Disciplinary Socialization of the Struggled Family/ A socializacao disciplinar da familia batalhadora.

AutorVisser, Ricardo

Introducao

A sociologia da familia e aquela que busca compreender os encadeamentos emocionais, afetivos e cognitivos que constroem o patrimonio de disposicoes dos individuos socializados. Por disposicoes entendemos a formacao de tendencias para um determinado tipo de acoes. Seu traco aprendido e nao natural e absolutamente essencial na compreensao dos fenomenos sociais constituintes da base de socializacoes primarias dentro de uma classe social. Estes patrimonios disposicionais nascem engendrados em um longo exercicio cotidiano de introjecao e incorporacao de determinadas praticas sociais. Isto e, o sociologo nao pode abster-se de investigar os elementos fundadores das classes sociais dentro do ambiente familiar.

No caso dos Batalhadores Brasileiros pesquisa da qual pude fazer parte, um tipo de socializacao familiar muito peculiar vem a tona: a socializacao disciplinar no e atraves do trabalho. Esta nao se baseia apenas na imposicao nua e crua da autoridade, mas possui o proposito de despertar admiracao pelas figuras familiares, contendo ate certo elemento "ludico". Deste modo, ela exibe uma caracteristica de formacao da individualidade e da personalidade, participando mesmo do que se pode chamar de uma cultura familiar de classe. Aqui, separar os fatores economicos, culturais e psicoemocionais privilegiando uma explicacao causal, na qual uma das variaveis se sobrepoe como "necessidade" em detrimento das outras nos conduz simplesmente a um reducionismo. Veremos entao, como o aspecto economico tambem esta ligado a formacao do estilo de vida na medida em que estas praticas se generalizam nas interacoes de um grupo. O trabalho social, principalmente o especializado em funcao do seu capital cultural/escolar particular, agrega sua dimensao simbolica ao incutir uma visao de mundo e uma racionalizacao particular do comportamento social no patrimonio de disposicoes individuais, mesmo que nao incorra numa necessaria tomada de consciencia de classe revolucionaria. Por outro lado, ele e uma mercadoria, em razao de seu desempenho impessoal ser trocado pela renda em dinheiro--um salario. A dimensao etico-valorativa (cultural) e a "mercadologica" definem o trabalho social moderno. Ele exige tanto a adesao subjetiva e um compromisso do trabalhador ao conteudo, mas em contraste um distanciamento deste produzido por ser recompensado em dinheiro.

Se existem, no mundo social, familias que se estabelecem de modo diferencial, estes ultimos se realizam enquanto matrizes formadoras de disposicoes. O ethos familiar de classe dos batalhadores se torna visivel atraves de um tipo trabalho social particular. Em distincao com as classes medias burguesas em meio as quais a trajetoria profissional e primeiramente racionalizada atraves da incorporacao de disposicoes para o estudo, nas classes trabalhadoras, esta socializacao acontece por uma insercao prematura no mercado de trabalho, o que envolve um grupo especifico de profissoes localizadas nas posicoes inferiores do espaco economico. Ela fundamenta os vinculos de admiracao dentro da familia enquanto os lacos de solidariedade primarios se constituem, estimulando obrigacoes morais internas enquanto integra o individuo ao seu universo social. Portanto, a socializacao disciplinar do trabalho produz um efeito de aderencia sobre a crianca, pois impede com que este seja "perdido" para o seu inimigo mais mortal: a delinquencia.

  1. A socializacao disciplinar atraves do trabalho social

    A primeira questao que precisamos abordar para avancar no entendimento da socializacao disciplinar do trabalho e que ela se faz em contraposicao a delinquencia, e em certa medida alheia ao sistema de ensino. A primeira seja ela de qual ordem for, constitui a desclassificacao social maxima, de modo que a familia de classe nao consegue estabelecer vinculos de admiracao e autoridade fortes e solidos o suficiente para que o individuo se mantenha como parte integrante de seu nucleo social. A delinquencia e a forca destruidora contra a qual a socializacao disciplinar do trabalho atua, afirmando a unidade afetiva familiar em face do poder fragmentador e desintegrador da primeira. Em nosso entrevistado Daniel (32), isto surge de modo claro. Ele e um pequeno comerciante de frutas em uma arca na cidade de Campina Grande e e beneficiario do programa CrediAmigo. Tendo uma origem parcialmente rural, ele aprendeu a trabalhar com os pais, o que e um grande motivo de orgulho e autoafirmacao. Quando perguntado sobre sua relacao com seus filhos ele responde:

    A gente que entende das coisas, a gente percebe. Um falo um negocio ali ou outro fala acola. A gente vai pegando. Quer dizer, voce pega o seu filho e solta no colegio, certo? Depois na hora de entrar dentro do carro, voce nao conheceu os amigos dele, voce nao conheceu o professor dele, voce nao conheceu ninguem. (...)Tudo isso a gente ta em cima. E outra coisa: na criacao dos seus filhos, muito cuidado nas amizades. Sempre que chega um amigo dos meus meninos eu mando ele entrar pra gente conhecer ele. Saber a maneira que ele fala. Dependendo da maneira que o 'cidadao' fala, voce ja tem uma nocao. Voce ja tem uma nocao da criacao dele. (...) Voce tem que botar o amigo do seu filho dentro da sua casa pra voce conhecer ele. Vem cheio de giria, esses negocios, voce ja sabe de onde vem. Dependendo da situacao ... Voce aceita, impoe umas regras ou entao, "nao da pra voce nao". (...) As vezes tem vergonha que a mae vai buscar no colegio. Nao tem problema nao! Voce tem vergonha, mas "nois" vai assim tambem! Eu quero participar da sua vida ate o ultimo dia da vida. (Daniel, 32, comerciante no ramo de frutas).

    Podemos complementar esta passagem de Daniel chamando atencao para o fato de que manter o seu filho "ocupado" e simplesmente um quesito fundamental deste modo de socializacao. Ademais, identificamos nesta "fala" outra dimensao socializadora preponderante: ele (Daniel) se coloca como autoridade moral e simbolica na formacao da auto-responsabilidade de seus filhos. Assim, toda escolha de "certo e errado" contem anteriormente um principio pre-escolhido em que as figuras familiares podem, em situacoes limite, impor suas regras e seu modo de vida. O contrario se daria quando o pai ou a mae nao se interpusessem entre a "rua" e o seu filho, imputando neste a decisao total pelo seu destino social. Neste caso, a aparente "escolha pura" nao e acompanhada pela introjecao de um comportamento avaliativo, decorrente de uma socializacao disciplinar previa, o que incorreria na "atomizacao" destrutiva do patrimonio de disposicoes individuais. Ao dizer quais amizades "sao proprias e quais nao" ou simplesmente impondo ("nao da para voce"), ele introduz a selecao pratica no que tange a frequencia dos circulos sociais. Ou seja, a familia se estabelece, segundo nosso caso empirico, obrigacoes e compromissos sociais de "dentro para fora" enquanto se fecha como em sua unidade relativa em oposicao ao "publico". Podemos distinguir esta categoria, seja o "publico" ou a "rua" a partir de uma primeira ordem, em que esta--em razao de uma indiferenciacao original--se coloca como abertura ameacadora (uma trajetoria delinquente) e o de segunda ordem em que a interacao entre familia e instituicoes como Estado, mercado, religiao, sistema escolar, de saude e etc., ocorre tendo como base a integracao simbolicocultural basica da familia.

    A partir da narrativa detalhada de nosso entrevistado encontramos nao apenas uma especie de receio geral e etereo, mas um comportamento efetivo em situacoes cotidianas concretas A preocupacao com a origem social dos amigos de seus filhos se configura como um cuidado pratico e cotidiano, procurando antever possiveis atitudes sociais julgadas como "perigosas". Este efeito de encerramento familiar em face da exterioridade social inclui o reconhecimento pre-reflexivo de um padrao de comportamento desejavel ou indesejavel, isto e, a construcao de uma "alteridade impessoal" da qual se deve manter distancia. Este e o sentido da assertiva sobre as "girias" e o uso de uma linguagem demasiadamente informais associadas neste contexto, a um possivel habitus delinquente projetado em um "outro abstrato". A ambiguidade estrutural deste processo social no ambiente familiar se deixa transparecer na ideia de que a protecao atraves da estipulacao de obrigacoes sociais interiores (efeito de encerramento) e acompanhada pela construcao praxeologica de um estigma das classes localizadas mais abaixo na hierarquia social. Norbert Elias e John Scottson (1993) haviam percebido que tao central na estigmatizacao de certos grupos sociais nao e apenas a condenacao objetiva as posicoes degradantes, mas igualmente a construcao da "imagem coletiva" dos dominados pelos dominantes. Por esta razao, nao e de modo algum arbitraria a fofoca como dispositivo social responsavel pelo desenho, muitas vezes exagerado e homogeneo, destas caracteristicas. O distanciamento com relacao aos grupos sociais desclassificados e o meio pelo qual ao mesmo tempo se afirma sua propria identidade no espaco social. Isto pode ser ainda mais bem ilustrado quando se enfrenta um problema como o alcoolismo:

    Eles (os pais) sempre me ensinaram o caminho do bem. Eles sempre tinham cuidado comigo quando eu saia para beber. Se ele soubesse que tava bebendo em qualquer canto de Campina Grande, ele ia atras de mim. "Por causa que" ele tinha medo de acontecer algo comigo. Ele sempre me dando conselho dizendo que esse caminho nao era bom pra mim e nem pra ninguem (Seu Jose, 55 anos, comerciante no ramo de plastificacoes, Xerox e artesao).

    Observamos em seu Jose a mesma configuracao familiar que Daniel tem com seus filhos dentro de uma preocupacao pratica, o que inclui cuidado, atencao, carinho, mas tambem a imposicao da autoridade simbolico-moral. A partir de um caso limite como este, observamos como uma rede familiar batalhadora bem construida influencia as chances de recuperacao. Do contrario, o abandono familiar significaria fatalmente o...

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