Término do contrato por ato culposo do empregador: rescisão indireta

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas1446-1469

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I Introdução

Os dois tipos de resolução contratual mais importantes existentes na teoria e prática do Direito do Trabalho são, como visto, a ruptura por ato culposo do empregado (chamada dispensa por justa causa) e a ruptura por ato culposo do empregador (chamada rescisão indireta).

No capítulo precedente examinou-se a dispensa por justa causa do empregado; já este capítulo será dedicado ao estudo do término do contrato por infração do empregador.

Neste estudo, será feito o debate sobre a pertinência ou não aos casos de infração empresarial dos critérios de aplicação de penalidades que prevalecem no ramo justrabalhista do País e que são imperativos nas dispensas por infrações obreiras.

Serão aqui examinadas também as figuras das infrações empresariais, tipificadas essencialmente no art. 483 da CLT. Logo em seguida, será feita a análise dos procedimentos cabíveis no tocante à decretação da rescisão indireta do contrato de trabalho por iniciativa do empregado.

O capítulo dedicará estudo ainda a duas modalidades especiais de terminação do contrato de trabalho inseridas nos §§ 1º e 2º do art. 483 da CLT, mas que não se confundem com a denominada resolução contratual por ato culposo do empregador.

Finalmente, este capítulo encerrar-se-á com a análise da resolução contratual por culpa recíproca das duas partes contratuais trabalhistas.

II Infração empresarial — aproximações e especificidades em face da justa causa obreira

A validade da resolução contratual por culpa do empregado supõe, conforme já estudado, a correta observância de critérios para o exercício do poder disciplinar pelo empregador no âmbito do contrato. Tais critérios (ou requisitos de validade da punição) são objetivos, subjetivos e circunstanciais.

Objetivos são os requisitos que dizem respeito à caracterização da própria conduta infratora cometida; subjetivos, os que concernem ao envolvimento ou não do sujeito contratual na respectiva conduta; por fim, circunstanciais são os requisitos que dizem respeito à aferição da infração e aplicação da respectiva penalidade.

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Cabe, em consequência, propor-se importante indagação: tais critérios ou requisitos também se aplicam à resolução do contrato por falta empresarial? De algum modo, o trabalhador tem de se certificar da observância de tais requisitos, ainda que ciente de que o término efetivo do contrato somente se confirmará em decorrência da decisão judicial?

A resposta traz certa complexidade: de fato, há critérios que seguramente se aplicam também, quase que na mesma medida, à infração empresarial; a seu lado, há outros que se aplicam, embora com significativa atenuação ou modificação; finalmente, há critérios que, de maneira geral, se mostram incompatíveis com as peculiaridades da chamada rescisão indireta do contrato de trabalho. É o que será estudado logo a seguir.

São diversos os pontos de aproximação entre a falta empresarial e a justa causa obreira. Não obstante, em diversos desses pontos é necessária a realização de certas adequações, em face das particularidades da rescisão indireta.

1. Requisitos Objetivos

De maneira geral, os requisitos objetivos das justas causas mostram-se pertinentes à rescisão indireta.

Ilustrativamente, a tipicidade da conduta faltosa: aqui também aplica-se o critério penalista da prévia tipificação legal da conduta censurada, embora, é claro, se saiba ser relativamente plástica e imprecisa a tipificação celetista. Nesse quadro, as infrações empresariais estão no art. 483 da CLT, em suas alíneas “a” até “g”, não se podendo enquadrar como infração conduta do empregador que escape efetivamente à previsão contida na lei laboral.

Conforme já exposto, entretanto, a plasticidade dessa tipificação tem permitido a adequação de tipos jurídicos tradicionais a condutas que adquiriram notoriedade mais recentemente, como ocorre com o assédio sexual. Sendo o ato ofensivo praticado pelo empregador, pode enquadrar-se, conforme o caso, nas alíneas “a”, “e” ou “f” do art. 483 da CLT: respectivamente, serviços contrários aos bons costumes ou alheios ao contrato, ou, ainda, “ato lesivo da honra e boa fama” ou “ofensa física”1.

Do mesmo modo, o chamado assédio moral, que consiste na exacerbação desarrazoada e desproporcional do poder diretivo, fiscalizatório ou disciplinar pelo empregador de modo a produzir injusta e intensa pressão sobre o empregado, ferindo-lhe o respeito, o bem-estar, a higidez físico-psíquica e a dignidade. Esta

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conduta pode se enquadrar em distintas alíneas do art. 483 da CLT (“a”, “b”, “d”, “e” e “f”), embora se insira mais apropriadamente, de maneira geral, na regra vedatória do rigor excessivo (alínea “b”).2

O requisito da gravidade da conduta empresarial também é relevante ao sucesso da rescisão indireta. Conforme já foi exposto, em se tratando de conduta tipificada, porém inquestionavelmente leve, não é possível falar-se na imediata resolução do contrato de trabalho. A par disso, se o prejuízo não é do tipo iminente, podendo ser sanado por outros meios, a jurisprudência não tem acolhido, muitas vezes, a rescisão indireta.3

2. Requisitos Subjetivos

De maneira geral, também os requisitos subjetivos comparecem à rescisão indireta, embora aqui se deva mencionar a necessidade de algumas adequações importantes.

A autoria empresarial da infração é requisito lógico: é necessário que sejam o empregador ou seus prepostos ou chefias os comitentes das faltas relacionadas nas alíneas do art. 483 da CLT.

Entretanto, o presente requisito subjetivo sofre importante adequação no caso da rescisão indireta. É que, em decorrência da alteridade, inerente ao contrato de trabalho, pela qual o empregador assume os riscos do empreendimento e do próprio labor prestado, a responsabilidade pelo ato ou omissão mantém-se, muitas vezes, com o empregador, independentemente de ter sido ele o agente imediato e direto causador do malefício. Ilustrativamente, é o que se passa com um grave descumprimento de obrigações contratuais que tenha resultado, efetivamente, de dificuldades severas geradas por medidas legais ou administrativas (por exemplo, os conhecidos planos econômicos, adotados ao longo de décadas pelo Governo Federal). A estrita autoria das omissões contratuais mantém-se com o empregador, em face da alteridade, sendo que somente em raríssimos casos a jurisprudência tem acolhido a transferência dessa autoria para a pessoa jurídica que instituiu a regra legal ou medida administrativa que provocou o inadimplemento do empregador (os

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casos de factum principis, referidos pelo art. 486 da CLT, são excepcionalmente acolhidos na jurisprudência, conforme já estudado)4.

O requisito do dolo ou culpa é outro que sofre intensa adequação, no tocante à rescisão indireta do contrato.

Em primeiro lugar, enquanto a culpa em sentido lato do empregado, na dispensa por justa causa, é examinada em concreto, isto é, considerando-se o nível de escolaridade do obreiro, seu segmento de atuação profissional, seu nível socioeconômico e outros aspectos subjetivos relevantes, no caso do empregador, regra geral, é examinada apenas em abstrato. Ilustrativamente, o descumprimento grave e reiterado de obrigações contratuais (art. 483, “d”, CLT) não é atenuado pela circunstância de se tratar de um microempresário, ou de uma pessoa física empregadora, em vez de um grande empreendimento capitalista. Praticamente, apenas no caso de infração por ofensa moral (art. 483, “e”, CLT) é que pode se tornar relevante a consideração sobre a individualidade do empregador ofensor, o que não acontece nos demais tipos jurídicos do art. 483 da CLT.

Além disso, a ordem justrabalhista não autoriza, regra geral, a transferência do risco do empreendimento e do labor prestado para o próprio obreiro (alteridade): isso significa que motivos poderosos para o reiterado e grave inadimplemento contratual (recessão, mudança da política econômica, etc.), os quais, supostamente, poderiam reduzir a culpa do empregador, não têm esse efetivo poder, não sendo bastantes para afastar o tipo jurídico do art. 483, “d”, da CLT, por exemplo.

3. Requisitos Circunstanciais

No exame das justas causas obreiras, verificou-se que requisitos circunstanciais seriam aqueles relacionados à atuação disciplinar do empregador em face da falta cometida e do obreiro envolvido. De fato, as infrações trabalhistas (advertência, suspensão punitiva, dispensa por justa causa, por exemplo) são aplicadas, no Direito brasileiro, diretamente ao empregado pelo empregador, cabendo a este avaliar a conduta do obreiro, dosar as punições e, apenas em último caso, aplicar a pena máxima existente. O empregador exerce, desse modo, cotidianamente, o poder disciplinar, o que torna variados e complexos os requisitos circunstanciais para sua atuação.

Contudo, no que tange à rescisão indireta, ela não é resultante do prévio exercício de um poder disciplinar do empregado sobre seu empregador — como é óbvio. Em consequência, alguns dos requisitos circunstanciais das justas causas obreiras, ligados à modulação do poder...

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