A terceirização trabalhista como forma de subverter a lógica protetiva do Direito do Trabalho

AutorSamir Alves Daura
CargoAdvogado. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários ? IBET. Graduado pela Faculdade de Direito Milton Campos ? FDMC
Páginas179-192

Page 180

1. Introdução

As últimas reformas sobre a ordem jurídica brasileira demonstram a clara intenção de poderosos grupos econômicos e políticos, que objetivam, acima de tudo, afastar o controle do Estado sobre as várias atividades privadas. No Direito do Trabalho, esta ordem, denominada flexibilizatória, tem agido de maneira perversa, pois objetiva enfraquecer e eliminar diversos direitos há muito garantidos.

Sob este enfoque, a terceirização é um dos grandes paradoxos atuais do Direito do Trabalho. Como é notório, ela se diferencia totalmente da clássica forma de contratação (empregado x empregador), por meio da inserção de uma empresa intermediária, responsável pelo vínculo com o trabalhador terceirizado. Tal fato, muitas vezes, enfraquece o poder de atuação do obreiro posto nesta situação.

Inegavelmente, o fenômeno descrito está disseminado, não cabendo mais refutarmos sua utilização, exceto nos casos de ilicitude.

Com efeito, o papel do estudioso e do aplicador do direito é reconhecer a excepcionalidade do instituto, convertendo a terceirização ao âmbito de atuação do Direito do Trabalho, não permitindo a perpetração de fraudes.

Entretanto, vivenciamos um momento bastante preocupante, pois o fenômeno da terceirização tem se dissipado velozmente, sendo, muitas das vezes de maneira ilícita, com o intuito precípuo de fraudar as normas protetivas do ramo justrabalhista.

Vivenciamos uma era flexibilizatória, que pugna pelo distanciamento do Estado em face da relação entre trabalhadores e empregadores. Desta maneira, a luta contra o abuso deste movimento econômico/político deve se fortalecer, posto estar em jogo preceitos dispostos pelo texto constitucional, da ordem dos direitos sociais, que conferem dignidade à pessoa humana.

Atualmente, no julgamento do ARE n. 713.211, o tema teve repercussão geral reconhecida pelo STF, especialmente com o intuito de se delimitar as hipóteses de terceirização trabalhista diante do que se compreende como "atividade-i m" e "atividade-meio" das empresas.

Page 181

Ainda, sobre o tema em comento, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 4.330/2004, que tem recebido inúmeras críticas de diversos estudiosos do Direito do Trabalho, principalmente por generalizar a utilização da terceirização, ao invés de delimitar a possibilidade de sua utilização, posto se tratar de evidente instituto excepcional.

Desta maneira, faz-se necessário a elaboração consciente de normas tendentes a regulamentar a terceirização de maneira correlata com os princípios e regras responsáveis por proteger os trabalhadores. Ademais, devemos renovar a coni ança depositada no Judiciário Trabalhista, responsável em equilibrar as grandes disparidades encontradas nos embates característicos do Direito do Trabalho.

2. Da terceirização e suas hipóteses restritas de aplicação
2.1. Caracterização

De acordo com o próprio signii cado da palavra, terceirização indica a existência de um intermediário, de um terceiro. No caso do fenômeno social, político, econômico e jurídico ora estudado, trata-se da relação de trabalho triangular, na qual participam o empregado, o tomador de serviços e a empresa terceirizante.

Nos diversos casos concretos, o empregado, apesar de prestar o serviço diretamente ao tomador, estabelece o vínculo empregatício junto à empresa interveniente, responsável pelos serviços terceirizados. Nas palavras de Mauricio Godinho Delgado:

Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado trabalhista: o obreiro, prestador de serviços, que realiza suas atividades mate-riais e intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata este obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de serviços, que recebe a prestação de labor, mas não assume a posição clássica de empregadora desse trabalhador envolvido.1

Com efeito, a estrutura triangular de contratação se diferencia da histórica relação formada entre empregado e empregador. O surgimento de desequilíbrios perante a relação de emprego é evidente, o que torna a terceirização um tema polêmico, objeto de várias críticas advindas da doutrina e da jurisprudência. Ademais, sua utilização no Brasil é vedada, sendo permitida em apenas alguns casos excepcionais.

Muitas vezes, o trabalhador terceirizado fica submetido a precárias condições de trabalho, pois não cria uma relação direta com o tomador, bem como com os demais componentes de seu ambiente de trabalho. Ademais, em vários casos, fica exposto a diferenças salariais em relação aos obreiros responsáveis pelas mesmas tarefas, mas que possuem o vínculo de emprego formado diretamente com o tomador, no caso, o empregador.

Ainda, não podemos nos esquecer dos casos de terceirização ilícita, em que o trabalhador sofre ordens diretas do tomador, sendo considerado, na prática, um empregado terceirizado, com seus direitos ameaçados. Destacam-se, também, os casos absurdos de formação de pretensas cooperativas de mão de obra, formadas com o objetivo de eliminar o direito fundamental de todo trabalhador ao vínculo de emprego.

Assim, iremos rel etir sobre a falta de parâmetros legais, capazes de no mínimo limitarem

Page 182

os efeitos danosos, causados pela terceirização. Desta maneira, para melhor situarmos a questão, cumpre analisar as modalidades lícitas do fenômeno.

2.2. Terceirização lícita

Conforme já destacado anteriormente, as hipóteses lícitas de terceirização são exceções, tendo em vista que já é pacífico, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, a ilegalidade da simples contratação de maneira terceirizada, sem observância das condições permissivas (vide a evolução das súmulas do TST sobre o tema).

Desta maneira, abordaremos nos próximos tópicos as hipóteses descritas na legislação sobre o tema, bem como as dispostas na Súmula n. 331 do TST.

2.3. Terceirização no serviço público

A primeira forma de terceirização no país ocorreu perante a Administração Pública.

Como forma de concentrar os investimentos nas áreas de principal atuação dos entes públicos, editou-se o Decreto-lei n. 200/67, que em seu art. 10, assim dispõe:

Art. 10, § 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, super-visão e controle com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, a execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada sui cientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.

Diante do texto legal colacionado, ficou clara a intenção do legislador em descentralizar os trabalhos tidos como não essenciais da Administração Pública. Assim, delegou a particulares que possuíssem condições técnicas, a execução de determinados serviços.

Entretanto, apesar da clara intenção disposta na lei, algumas dúvidas ainda se faziam presentes. Dentre elas, estava o questionamento:

quais seriam as atividades não essenciais que poderiam ser terceirizadas? A indagação era bastante relevante, visto que a Administração Pública estava (e está) submetida aos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade.

Com o objetivo de esclarecer o texto normativo anterior, foi publicada a Lei n. 5.645, de 1970, que à época, exemplii cou hipóteses permissivas de terceirização no serviço público. Veja-se o art. 3º, parágrafo único, do mencionado diploma legal (quanto a este dispositivo, destaca-se que foi revogado pela Lei n. 9.527/97):

As atividades relacionadas com transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas serão, de preferência, objeto de execução mediante contrato, de acordo com o art. 10, § 7º, do Decreto-lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967.

De acordo com o exposto, denota-se a intenção do legislador em priorizar a prestação do serviço público de maneira mais ei ciente, concentrando os investimentos para as atividades voltadas à coletividade, ou seja, principais.

2.4. Trabalho temporário

Para muitos autores, verdadeira forma de terceirização é a contratação de trabalhadores temporários.

Dissertando sobre o tema no âmbito do Direito Português, Luis Manuel Teles de Menezes Leitão assim dispõe:

Trata-se de uma modalidade especial de contrato de trabalho, em que um trabalhador se vincula perante uma empresa de trabalho temporário a prestar a sua activi-dade a quem esta indicar, celebrando esta com terceiros um contrato de utilização, por virtude do qual lhe disponibilizam os seus trabalhadores. Estes contratos originam assim uma relação triangular, no âmbito da qual se estabelece como que uma cisão na posição jurídica do empregador, na medida em que a obrigação de pagamento da restribuição e contribuições para a segurança

Page 183

social se mantém na empresa de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT