A terceirização no caminho para uma proteção da dignidade do trabalhador

AutorDiego Henrique Schuster
Páginas23-35

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Ver Nota1

1. Introdução

Apesar de o tema comportar diferentes desenvolvimentos, a recentidade da Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017, que dispõe sobre a terceirização no Brasil – ainda que de forma bastante tímida –, exige que se trate do assunto com os pés no chão, em razão das contradições e versões que se relativizam e se negam reciprocamente.

Isso, contudo, não impede projeções: otimistas, pois com os avanços da tecnologia, as empresas poderão contar com um trabalho especializado e eficiente, que, em última análise, poderá fazer da empresa terceirizada um valioso sócio de negócios; ou pessimistas, ganhando destaque algumas inquietações da comunidade jurídica, o que será objeto deste trabalho, visando, até mesmo, o aperfeiçoamento da terceirização – um fenômeno mundialmente difundido no âmbito empresarial.

O estudo será dividido, em seu desenvolvimento, em três partes. Na primeira, busca-se medir o alcance da lei da terceirização, numa relação de comparação com a legislação de outros países (da América Latina). Na segunda, o conteúdo da dignidade humana aparece no limite da violação dos direitos fundamentais (o direito ao trabalho, a liberdade de escolha da profissão e a liberdade de iniciativa econômica privada), para evitar que o trabalhador seja transformado num objeto capaz apenas de produzir. Na terceira e última, a insuficiência de um conteúdo ético-normativo na lei da terceirização faz surgir um espaço (maior) para uma responsabilização social e aplicação horizontal dos direitos fundamentais.

Alguns pontos poderão traduzir “desfechos” ignorados ou subestimados em favor daquilo que efetivamente acontecer e, com mais razão, mudar a partir da reforma trabalhista aprovada pelo Congresso Nacional nos últimos dias, o que não se aplica à preocupação com a dignidade humana do trabalhador, princípio fundador dos direitos trabalhistas. Este enfoque pode contrastar com uma visão “moderna” das leis trabalhistas.2

2. A regulação da terceirização em terrae brasilis e os direitos trabalhistas e previdenciários (Lei n 13.429, de 31 de março de 2017): a responsabilidade solidária, no direto comparado(!)

A terceirização é uma forma de organização que permite a uma empresa transferir a outras quaisquer atividades (meio e fim), nas esferas pública e privada, incentivada por razões econômicas, como a redução estrutural e operacional, a diminuição de custos, o aumento de produtividade, a desburocratização, etcétera. Vale lembrar que a jurisprudência vinha seguindo uma linha no sentido de limitar a terceirização às denominadas “atividades-meio” das empresas, vedando-a na “atividade-fim” (que constitui a razão de ser da empresa).3

Antes de qualquer outra análise, faz-se importante destacar que nos países da Venezuela e Equador, a terceirização é vista como uma forma de precarização das relações de trabalho, razão pela qual tal instrumento é expressamente proibido. A Constituição do Equador, no seu art. 327, estabelece:

La relación laboral entre personas trabajadoras y empleadoras será bilateral y directa. Se prohíbe toda forma de precarización, como la intermediación laboral y la tercerización en las actividades propias y habituales de la empresa o persona empleadora, la contratación laboral por horas, o cualquiera otra que afecte los derechos de las personas trabajadoras en forma individual o colectiva. En incumplimiento de obligaciones, el fraude, la simulación, y el enriquecimiento injusto en materia laboral se penalizarán y sancionarán de acuerdo con la ley.

Omar Toledo Toribio, em um artigo sobre a regularização da terceirização no Peru, começa colocando em dúvida a sua utilização, enquanto instrumento de geração de empregos – principal argumento utilizado no Brasil – com qualidade e com garantia de efetiva observação dos direitos trabalhistas:

Si bien resulta innegable la importancia del outsourcing o tercerización, como herramienta de gestión de

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la empresa moderna que contribuye a hacerla competitiva, la utilización indiscriminada de dicha figura, incluso para el desarrollo de la actividad nuclear de la empresa, y, la intervención de empresas tercerizadoras que no cuentan con autonomía ni equipamento próprio, convierte a este mecanismo en un vehículo de abaratamiento de los costos laborales afectando los derechos de los trabajadores puesto que, para citar un ejemplo, el monto de las utilidades no sería el mismo entre lo percebido por el trabajador incluido en las planillas de la empresa usuária y lo percebido por el trabajador de la empresa tercerista.4

Para além da preocupação com intenções fraudulentas, a questão se vincula a assuntos intimamente imbricados com a faticidade humana e relacionados com a dignidade humana, como a igualdade entre empregados contratados e terceirizados. No Brasil, pelo menos, existe um temor no sentido de que a nova legislação incentive as empresas a demitirem trabalhadores para contratar terceirizados, com remuneração menor. Estudo do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioconomômicos (DIEESE) mostrou que os terceirizados recebiam em média 30% a menos que os contratados diretos e são mais vulneráveis a acidentes de trabalho.5 Acrescente-se a isso o risco de enfraquecimento dos sindicatos e, consequentemente, a redução das possibilidades de defesa de direitos trabalhistas, mormente num ambiente onde doenças e acidentes ocupacionais ainda são vistos como uma triste e inevitável consequência do próprio trabalho.

No Uruguai, diferentemente, a Lei n. 18.099 prevê que os trabalhadores não podem receber benefícios laborais inferiores aos estabelecidos pelos prêmios de conselhos de salário, convênios coletivos ou decretos do Poder Executivo para a categoria que desempenhem e que corresponda à rotação de atividade da empresa onde os mesmos prestam seus serviços. A Lei n. 29.245, que regulamenta a terceirização no Peru, determina expressamente que os trabalhadores tenham iguais direitos, não sendo possível a terceirização ser utilizada com a intenção ou efeito de limitar ou prejudicar a liberdade sindical, o direito de negociação coletiva, interferir na atividade das organizações sindicais, substituir trabalhadores em folga ou afetar a situação dos trabalhadores amparados pela imuni-dade sindical.6

Aqui, o trabalhador não terá vínculo empregatício com a empresa contratante, logo, o funcionário terceirizado não poderá receber ordens diretas e nem orientações que não das empresas terceirizadas. Essa subordinação exclusiva será algo a ser demonstrado na prática, pois não se exige informação sobre as medidas previstas para a coordenação de atividades, sobretudo do ponto de vista da prevenção dos riscos laborais, o que obriga a uma espécie de “sujeição”.7 Enfocando a questão sob o prisma exclusivo do desenvolvimento da técnica, da manipulação do homem pelo homem ou dos indivíduos humanos pelas entidades sociais, Edgar Morin explica que sujeição significa que o sujeito sujeitado sempre julga que trabalha para os seus, “desconhecendo que, na realidade, trabalha para os fins daquele que o sujeita. Assim, efetivamente, o carneiro-chefe do rebanho julga que continua a comandar seu rebanho, quando, na realidade, obedece ao pastor e, finalmente, à lógica do matadouro”,8 o que vem bem a calhar.

Outro aspecto negativo diz respeito à cobrança dos direitos trabalhistas, já que o trabalhador terceirizado deverá primeiro cobrar – obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços – da empresa que o contratou. Somente se não conseguir receber, ele poderá acionar a principal, que contratou a prestadora de serviço. Abre-se com isso a possibilidade de uma crítica que não depende de consenso: o empregador conhecendo perfeitamente as consequências dos seus atos, não recua perante qualquer queixa ou reivindicação do trabalhador. Os custos com parcelas trabalhistas muitas vezes não serão sequer cobrados, graças às naturais demoras dos processos judiciais e às sobejamente conhecidas dificuldades de execução dos valores.

Ao passo que a responsabilidade da empresa contratante é subsidiária, será dela a responsabilidade pelo recolhimento das contribuições previdenciárias, nos termos do

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art. 31 da Lei n. 8.212/91,9 o que não faz muita diferença, por se tratar de obrigação assessória, sendo o INSS o titular do crédito previdenciário. Não é casual o fato de a empresa que terceiriza (todas) as suas atividades ser eximida, por absoluta liberalidade, de inúmeras responsabilidades sociais, trabalhistas, previdenciárias e tributárias. Tudo isso, na contramão daquilo que vem sendo adotado por países vizinhos (Peru, Argentina, Chile, Colômbia e Uruguai), onde se apostou na responsabilidade solidária, mostrando coerência de princípio. Vale um quadro comparativo:10

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Fonte: elaborado pelo autor. 11

A responsabilidade solidária tem o objetivo de resguardar o cumprimento das obrigações laborais dos trabalhadores imersos num sistema de contratação. Apesar de o presente artigo não lidar com a terceirização na esfera pública, importante observar que o Supremo Tribunal Federal, por maioria, fixou a seguinte tese de repercussão geral

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no julgamento do RE 760.931: “O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei n. 8.666/93...

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