A Terceirizacao e a Logica do Capital/Outsourcing and capital's logics.

AutorBiondi, Pablo

Introducao

O tema da terceirizacao, sem sombra de duvidas, esta na ordem do dia, embora nao seja de hoje que a classe capitalista mantenha a ideia fixa de tornar regra aquilo que hoje e excecao, ainda, nos contratos de trabalho. Outrossim, tambem nao ha duvidas de que a implementacao desse modelo em larga escala tera efeitos cataclismicos no universo laboral brasileiro, embora devamos reconhecer que as diversas formas de trabalho precario desde muito assolam a classe trabalhadora patria.

No presente ensaio, pretendemos oferecer uma contribuicao marxista a esse assunto imensamente discutido. Nao e nosso escopo demonstrar os resultados deleterios da terceirizacao, dado que isso ja foi feito por competentes pesquisas empiricas. Alias, uma demonstracao desse tipo de forma nenhuma exige, em carater imprescindivel, uma analise apoiada no marxismo. A imprescindibilidade do materialismo historico-dialetico nesse debate, ao que nos parece, esta na identificacao das causas profundas que conduzem a subcontratacao da forca de trabalho, inclusive na modalidade de terceirizacao.

Isto posto, podemos dizer que nossa contribuicao ao debate estara centrada no apontamento das caracteristicas rigorosamente capitalistas da terceirizacao, seja ela regulamentada, como tem sido no Brasil desde os anos 1990, ou irrestrita, como na distopica reforma trabalhista em curso. Nessa empreitada, levaremos em conta tanto a forma juridica dos contratos, edificada sobre a figura do sujeito de direito representante das mercadorias, como as determinacoes da lei do valor que movem o capital.

A terceirizacao regulamentada e a perspectiva do capital

No Brasil, desde os anos 1990, a jurisprudencia do Tribunal Superior do Trabalho vem sendo a referencia normativa da terceirizacao. A famosa sumula 331 do TST reconheceu as tendencias liberalizantes do mercado de trabalho brasileiro e mundial, oriundas do processo de desmonte do regime fordista de acumulacao, e criou um criterio para convalidar as figuras introdutorias de subcontratacao. Esse criterio adota como eixo uma divisao entre "atividade-meio" e "atividade-fim": caberia a terceirizacao apenas no caso das chamadas atividades-meio, tomando-se como exemplos classicos os servicos de vigilancia, limpeza e conservacao. Todavia, o entendimento da corte os tratou justamente como exemplos, pois qualquer atividade considerada instrumental, na concepcao sumular, estaria sujeita a terceirizacao. A dogmatica juridica assim o anunciou:

Desse modo, a jurisprudencia adotou o principio teleologico da conceituacao generica, abandonando a enumeracao taxativa das hipoteses autorizadas--trabalho temporario e vigilancia. A regra geral passou a ser nao mais a proibicao, com excecoes, mas, ao contrario, a autorizacao geral, desde que preenchido um requisito, a finalidade da atividade terceirizada, qualquer que fosse a sua natureza, e nao mais a natureza da mesma. Assim e que, em se tratando de atividades cujo fim e o apoio, a instrumentalidade do processo economico, a atividade-meio, nada impede a terceirizacao. Se, no entanto, tratar-se de atividade nao de apoio mas finalistica da empresa, e desautorizada (NASCIMENTO, 2011, p. 635-636). Nessa construcao jurisprudencial, a atividade-fim seria a atuacao especifica no ramo da empresa. Assim, ilustrativamente, a atividade-fim das empresas do ramo automobilistico seria definida como a montagem de automoveis. No entanto, e cedico que o trabalho de pintura dos automoveis, nao raro, e atribuido a obreiros subcontratados, como se isso nao correspondesse a finalidade ultima da atuacao da empresa, ou seja, como se esse tipo de trabalho fosse apenas um acessorio que segue o elemento principal.

A pretexto de certeza e objetividade, a jurisprudencia do TST indicou o contrato social das empresas como a referencia fundamental de atividade-fim, o que nao esgota as controversias. Afinal, produzir ou montar carros nao pressupoe a pintura como uma etapa imprescindivel e indissociavel do objeto principal? Certamente que sim, mas ao fim e ao cabo, o que o entendimento dominante na Justica do Trabalho pretende e entregar as empresas a prerrogativa de definir o que e finalidade e o que e instrumento ou acessorio. A invocacao do contrato social das empresas sinaliza fortemente nesse sentido.

Mais do que exigir entendimentos juridico-doutrinarios mais favoraveis ao trabalhador, cumpre entender a logica capitalista adotada hegemonicamente nas cortes brasileiras no ambito da terceirizacao. Observemos: quando a jurisprudencia autoriza as empresas a definirem os marcos de utilizacao do criterio por ela criado, o que se constata, de plano, e o enaltecimento juridico do primado da propriedade capitalista sobre a condicao do assalariado e da propria concepcao capitalista sobre o processo de producao.

Expliquemo-nos. No processo de producao capitalista, a forca de trabalho adquiria no mercado e apenas uma dentre outras mercadorias que o capital adquire para efetivar a producao. O capitalista combina esses bens que lhe pertencem e se apropria do excedente gerado pela forca de trabalho como quem meramente colhe os frutos das arvores de seu quintal. A mais-valia captada na producao e ocultada no proprio processo produtivo, e o ganho do capital, resultante da acao indispensavel do trabalho (a unica fonte do valor), aparece como efeito espontaneo que "naturalmente" beneficia o empresario:

O capitalista, mediante a compra da forca de trabalho, incorporou o proprio trabalho, como fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, que lhe pertencem igualmente. Do seu ponto de vista, o processo de trabalho e apenas o consumo da mercadoria, forca de trabalho por ele comprada, que so pode, no entanto, consumir ao acrescentar-lhe meios de producao. O processo de trabalho e um processo entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem. O produto desse processo lhe pertence de modo inteiramente igual ao produto do processo de fermentacao em sua adega (MARX, 1996a, p. 304). Tudo se passa como se a acumulacao de capital decorresse nao da exploracao do trabalho, mas da combinacao de coisas legitimamente possuidas pelo capitalista. Com a terceirizacao, o raciocinio nao e diferente: para o capital, nao importa se a forca de trabalho provem de um contrato estabelecido diretamente com a empresa ou se ela foi fornecida por uma terceira parte, por uma empresa interposta. No processo de producao, essas "coisas" que o capitalista comprou serao combinadas e utilizadas indistintamente. Nao se coloca como fundamental, nesse processo, a questao de quem e o comprador oficial da forca de trabalho, pois quem a emprega pagou por ela, de um jeito ou de outro. Dai as tentativas legais de se retirar a responsabilidade do tomador de servico: se ele empenhou dinheiro para remunerar indiretamente a mao de obra, ele honrou a equivalencia mercantil. O que conta, na perspectiva capitalista, e o fato de que a empresa operante faz jus aos bens que utiliza para produzir. Os efeitos "colaterais" atinentes aos trabalhadores terceirizados sao concentrados, tendencialmente, na relacao deles com o empregador direto.

Do capitalista que usufrui dos servicos prestados, espera-se somente que ele seja detentor de um justo titulo de propriedade sobre os bens que emprega. Ao consumir onerosamente os servicos de uma empresa fornecedora de mao de obra, o capital operante coloca-se acima de qualquer questionamento formal da mesma maneira que o faz ao remunerar os trabalhadores que constam formalmente em sua folha de pagamento. Em qualquer circunstancia, a riqueza capitalista aparece como desdobramento da propriedade, e nao como criacao dos assalariados, embora nao possa prescindir deles no processo de producao. Seja na relacao de emprego ordinaria ou na forma terceirizada, tem-se que a relacao capital-trabalho se coloca como relacao entre o titulo de propriedade e o titulo do trabalho, ainda que este ultimo seja apresentado com a intermediacao de outra empresa. Mantem-se a forma desdobrada daquilo que Bernard Edelman (2016, p. 31) denominou como o poder juridico do capital, como "a dupla forma do contrato de trabalho e do direito de propriedade", ja que a mesma relacao de capital toma a forma de contrato de trabalho para o proletario e de direito de propriedade para o capitalista, coroando a separacao capitalista entre os meios de producao e a forca de trabalho.

Ora, o que faz a jurisprudencia nao e senao reiterar esse poder juridico do capital, essa separacao entre a forca de trabalho e os bens de producao que, alias, nao so se expressa juridicamente no contrato de trabalho, como tambem introduz as condicoes para as praticas de subcontratacao, dado que a mao de obra e reduzida a um ativo...

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