Terceirização: lícito x ilícito

AutorLorena Vasconcelos Porto
Páginas271-277

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1. Considerações iniciais

Ao longo da história, as sociedades humanas se organizaram de formas diferentes para produzir os bens e serviços necessários ao atendimento de suas necessidades. Nesse sentido, surgiram relações de trabalho - que consistem no modo como os homens se relacionam para propiciar a modificação da natureza pelo seu engenho - também diversas. O trabalho, portanto, sempre esteve presente nas sociedades humanas organizadas, embora a sua forma de articulação tenha variado ao longo do tempo.

Costuma-se identificar quatro modos de produção que marcaram a evolução da civilização ocidental: o comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo e o capitalismo1.

O capitalismo se consolidou com a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra no século XVIII. Nessa época, a estratégia utilizada para se racionalizar e potencializar a produção foi concentrar os trabalhadores nas fábricas, nas quais estavam submetidos a ordens, controle e vigilância constantes. Essa reunião, que propiciou a maximização dos lucros empresariais, gerou, paradoxalmente, a maior solidariedade entre os operários, que, vivenciando a mesma exploração e sofrimento, uniram-se para lutar por melhores condições de vida. Isso resultou na criação dos sindicatos e do próprio Direito do Trabalho.

Depois da Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, a partir do final da década de 1970, ocorreram grandes transformações socioeconômicas, como as inovações e os avanços tecnológicos (telecomunicações, robótica, microeletrônica, microinformática), conhecidos como 3ª Revolução Industrial; a reestruturação empresarial; o aumento da concorrência, inclusive no plano internacional; e a globalização econômica e cultural.

Ao mesmo tempo, em virtude da convulsão econômica que marcou o período, ocorreu a crise do Estado de Bem-estar Social e a ascensão do ultraliberalismo, o qual defende a ideia do Estado mínimo, que não deve intervir nas relações contratuais privadas e, nesse sentido, a desregulamentação do Direito do Trabalho.

A introdução de novas tecnologias no processo produtivo, sobretudo relativas às telecomunicações e à informática, permite que o trabalhador preste serviços em local diverso do estabelecimento empresarial. Os vários aspectos da prestação laborativa (tempo, modo, lugar) tornam-se flexíveis, sem que isso prejudique a direção e o controle pelo empregador, que, por vezes, tornam-se mais intensos e eficientes, embora menos visíveis.

Nesse contexto, a estratégia empresarial, sempre voltada à redução dos custos e à maximização dos lucros, modificou-se, passando a utilizar, entre outros mecanismos, a terceirização.

Por um lado, a grande empresa torna-se mais enxuta, fragmentando-se em unidades menores, organizadas em rede, para as quais transfere parcelas do seu ciclo produtivo. As "filhas", no entanto, permanecem sob o controle da "mãe", o que é propiciado pelas novas tecnologias da informática e das telecomunicações. É a denominada terceirização externa2.

Essa descentralização produtiva ocorre, inclusive, em nível global, aproveitando-se das vantagens comparativas oferecidas por determinados países, entre as quais se insere uma proteção social e trabalhista insuficiente3. É o chamado shopping social, nas palavras de Umberto Romagnoli.

Por um lado, as empresas menores, menos visíveis e sujeitas à fiscalização, e concorrendo acirradamente entre si, praticam condições laborativas precárias, semelhantes aos

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primórdios da Revolução Industrial: informalidade, jornadas exaustivas, trabalho infantil, remuneração insuficiente, desrespeito às exigências mínimas de saúde, higiene e segurança no trabalho. A par de se obter a redução dos custos pela exploração da mão de obra, é uma forma de a grande empresa tentar se livrar dos vínculos trabalhistas e da responsabilidade deles resultante.

Não por acaso esse tipo de terceirização é frequentemente acompanhado da submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo e a condições ambientais totalmente inadequadas, com grande incidência de acidentes de trabalho, inclusive fatais, e doenças ocupacionais.

Nos últimos quatro anos (2010 a 2013), em 90% (noventa por cento) dos dez maiores resgates de trabalhadores em condições análogas às de escravo no Brasil, as vítimas eram terceirizados4.

A maior incidência de terceirizados entre as vítimas de acidentes de trabalho fatais tem sido demonstrada por pesquisas realizadas nos últimos anos, não apenas nos setores elétrico e petroleiro, mas também nas demais atividades econômicas5.

Do mesmo modo, restou comprovada a maior incidência de doenças ocupacionais entre os trabalhadores terceirizados, em especial no ramo das telecomunicações6.

As piores condições de saúde e de segurança no trabalho dos terceirizados, inclusive com a maior incidência de acidentes de trabalho, também foram demonstradas por pesquisas realizadas em outros países, como a Itália7.

Na França, por exemplo, é previsto expressamente que o trabalho temporário não pode ser utilizado em atividades particularmente perigosas, definidas por Portaria Ministerial. Essa norma tornou-se necessária em virtude da prática das empresas de utilizar o trabalhador temporário nas tarefas mais perigosas, visando a "economizar" o pessoal permanente e para que acidentes do trabalho e doenças ocupacionais fossem suportados por pessoas não mais pertencentes aos quadros da empresa8.

Por outro lado, a fragmentação da mão de obra ocasionada pela terceirização desestrutura e enfraquece os sindicatos e as demais formas de organização coletiva dos trabalhadores, o que gera um rebaixamento nas condições de trabalho9. Isso porque os sindicatos exercem um papel de extrema relevância, não apenas na conquista de novos direitos trabalhistas, mas também na garantia do efetivo cumprimento dos direitos previstos nas leis e nas normas coletivas. O exemplo dos países desenvolvidos demonstra que não há verdadeira democracia, nem real desenvolvimento socioeconômico, sem sindicatos fortes e atuantes.

Outra forma de terceirização é a utilização direta pela empresa de trabalhadores contratados por outra, com a qual celebra um contrato de prestação de serviços. O objeto do ajuste empresarial é o fornecimento de mão de obra, o que consiste, em verdade, na coisificação do ser humano, na utilização do trabalho como mercadoria, na prática de marchandage, há muito proibida pela ordem jurídica dos países civilizados10.

Trata-se da denominada terceirização interna, a qual "discrimina, cria uma subespécie de trabalhadores, cujos corpos são virtualmente negociados por um intermediário, que nua e cruamente os aluga ou arrenda, quase como se fossem animais ou coisas"11.

Essa forma de terceirização também é utilizada pelas empresas para reduzir os custos, por meio da precarização

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-, ocasionada pelo menor patamar de direitos e garantias aplicáveis aos terceirizados e pela desestruturação e enfraquecimento do sindicato -, e para tentar se esquivar da responsabilidade decorrente do vínculo empregatício12.

Ademais, ela afeta a subjetividade e fere a própria dignidade do trabalhador, que se vê como uma mercadoria, um objeto que é realocado de empresa a empresa. Ele se sente discriminado, segregado, inferiorizado em relação aos empregados do tomador de serviços13. Gera também um sentimento de adversidade entre os terceirizados e os empregados permanentes, que se enxergam como uma ameaça e um obstáculo recíprocos, minando a possibilidade de uma união que pudesse resultar na pressão por melhores condições de trabalho.

Se na Revolução Industrial a empresa teve que reunir para produzir, o que gerou o nascimento do sindicato e do Direito do Trabalho, por meio da terceirização externa ela consegue produzir sem reunir e, na terceirização interna, é possível reunir sem unir14.

É interessante notar que os autores clássicos condenavam veementemente esse tipo de terceirização, denominada "aluguel de mão de obra", considerada visceralmente contrária ao Direito do Trabalho e violadora dos seus princípios basilares. Nas palavras do jurista italiano Paolo Greco, na primeira metade do século XX, trata-se da "elusão das normas protetivas do trabalho, separando a pessoa do empregador, como tal responsável frente aos trabalhadores e ao Estado pelo adimplemento das referidas normas, da pessoa que utiliza a obra destes e junto à qual é prestado de fato o trabalho"15.

A terceirização interna "dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente", inserindo "o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade interveniente"16.

2. A licitude da terceirização
2.1. A Súmula n 331 do Tribunal Superior do Trabalho

É necessário traçar um histórico, ainda que breve, da terceirização na ordem jurídica brasileira. Ela foi prevista primeiramente para a Administração Pública, pelo Decreto-lei n. 200/1967, com o objetivo de "melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle", por meio do repasse contratual de "tarefas executivas" à empresa privada "suficientemente desenvolvida e capacitada" (art. 10, § 7º).

A previsão dessa contratação indireta foi delimitada pela Lei n. 5.645, de 1970, que, em seu art. 3º, parágrafo único, previu um rol de atividades de apoio, instrumentais, isto é, de atividades-meio, que poderiam ser terceirizadas pelos entes públicos.

Para o setor privado, foram editadas a Lei n. 6.019/74, que instituiu o trabalho temporário urbano, e a Lei n. 7.102/83, que autorizou a terceirização de serviços de vigilância patrimonial e de transporte de valores no segmento bancário.

Em 1986, o Tribunal...

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