Terceirização ilícita na administração pública - harmonização das súmulas ns. 363 e 331 do Tribunal Superior do trabalho

AutorAnnelise Fonseca Leal Pereira
CargoProcuradora do Trabalho, pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho, 2008
Páginas395-428

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Introdução

A utilização ilícita da terceirização pelo ente estatal gera um aparente conflito entre os entendimentos constantes nas Súmulas ns. 331 e 363 do Tribunal Superior do Trabalho, que tratam, respectivamente, do instituto da terceirização e dos efeitos da nulidade do contrato de trabalho celebrado sem concurso público pela Administração Pública.

O conflito aparentemente existente entre os bens jurídicos constantes dos supracitados entendimentos sumulados ocorre em razão de o primeiro verbete vedar a formação de vínculo empregatício do empregado terceirizado com a Administração Pública (conforme disposto no seu inciso II)1, enquanto o segundo, ao fixar os efeitos do contrato de trabalho celebrado entre o ente público e o empregado contratado sem concurso público, acaba por admitir a existência de tal vínculo, não fazendo, outrossim, distinção entre as hipóteses de contratação direta do empregado e de contratação deste mediante empresa interposta/terceirizada2.

Assim, a questão que surge é como conciliar os posicionamentos — aparentemente divergentes — adotados nos citados enunciados do TST?

Tal questionamento será objeto de estudo no presente trabalho, que, partindo-se primeiramente da análise da nulidade contratual do ato de contração do servidor com preterição do concurso público, buscar-se-ão subsídios para a solução da questão, elucidando o regime das nulidades no Direito Civil e sua aplicabilidade no Direito do Trabalho, para, assim, concluir com os efeitos da nulidade do contrato celebrado pela Administração Pública sem concurso público, previstos na Súmula
n. 363 do TST.

Outrossim, após traçados os efeitos da nulidade elencados na Súmula n. 363 do TST, o presente trabalho ingressará no estudo da terceirização, de forma que delimite sua origem, conceito e finalidades, bem como esclareça as hipóteses de licitude do referido instituto.

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A ilicitude da fórmula trilateral terceirizante será explicitada de acordo com os parâmetros traçados na Súmula n. 331 do TST, que fixou seus efeitos, a responsabilidade da empresa tomadora dos serviços e a sua aplicabilidade nos casos de terceirização perpetrada pela Administração Pública, conforme será demonstrado em ponto específico.

Somente após tecidas as considerações acerca da nulidade do contrato de trabalho celebrado pela Administração Pública sem concurso público, bem como sobre os efeitos da ilicitude da terceirização, é que o presente trabalho estará apto a responder o questionamento que se propõe a solucionar, utilizando-se dos princípios e regras da hermenêutica jurídica e constitucional, de forma que harmonize os entendimentos constantes das Súmulas ns. 363 e 331 do Colendo TST.

1. Da nulidade do contrato de trabalho celebrado com a administração pública sem a prévia realização de concurso público
1.1. Teoria das nulidades no direito civil

Antes de ingressar no tema objeto do presente estudo, faz-se necessário que sejam tecidas algumas considerações a respeito da teoria geral das nulidades do negócio jurídico no âmbito do direito civil, para que assim seja formado entendimento acerca da possível aplicabilidade de tais premissas no Direito do Trabalho, bem como estabelecer qual vício existe na contratação em desrespeito ao art. 37, II, da Constituição Federal de 19883.

Primeiramente, há de se conceituar o instituto da nulidade, citando, para tanto, as palavras irretocáveis de Stolze e Pamplona Filho, segundo os quais “a nulidade se caracteriza como uma sanção pela ofensa a determinados requisitos legais, não devendo produzir efeito jurídico, em função do defeito que carrega em seu âmago” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008, p. 383).

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Com efeito, todo negócio jurídico, para produzir seus regulares efeitos, deve atender a certos requisitos de validade, sob pena de padecer de nulidade. O vício existente no ato, por sua vez, pode gerar a nulidade absoluta ou relativa do negócio jurídico, a depender da gravidade do bem jurídico afetado pela irregularidade.

Assim, o ato nulo (nulidade absoluta) é aquele que viola preceito cogente de natureza pública, contendo vício grave, motivo pelo qual existe um interesse de toda coletividade, além do interesse individual, em privar a produção dos efeitos de tal ato.

Segundo ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves: o negócio é nulo quando ofende preceitos de ordem pública, que interessam à sociedade. Assim, quando o interesse público é lesado, a sociedade o repele, fulminando-o de nulidade, evitando que venha a produzir os efeitos esperados pelo agente (GONÇALVES, 2007, p. 431).

Nos termos do art. 168 do Código Civil4, a nulidade absoluta pode ser alegada por qualquer interessado ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir no feito, e, ainda, pode ser reconhecida de ofício pelo juiz, tendo em vista a ofensa aos princípios de ordem pública, “razão por que se diz que a nulidade opera-se de pleno direito” (DINIZ, 2008, p. 388).

No tocante à aptidão para gerar efeitos, cumpre elucidar que, segundo Gonçalves, o ato nulo não é capaz de produzir efeitos, razão pela qual o pronunciamento judicial de tal nulidade opera efeitos ex tunc, ou seja, desde o momento da declaração da vontade (GONÇALVES, 2007, p. 437).

Ato anulável, por sua vez, como esclarece Rodrigues Pinto, é aquele “nascido com defeito corrigível, via de regra intrínseco, porque de sua própria essência” (1998, p. 144). Deveras, a nulidade relativa é a consequência jurídica do vício existente no ato que atinge apenas

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interesses particulares, sendo que a sua prática constitui um defeito menos grave do que a nulidade absoluta.

O art. 177 do Código Civil estabelece, no tocante à iniciativa de arguição, que a nulidade relativa não pode ser reconhecida de ofício, somente podendo ser alegada pelos interessados. Com relação aos efeitos produzidos pelo ato anulável, cumpre salientar que a “declaração judicial de sua ineficácia opera ex nunc, de modo que o negócio produz efeitos até esse momento (CC, arts. 177 e 183)” (DINIZ, 2008,
p. 537).

Com os elementos civilistas do assunto em tela devidamente explicitados, o passo seguinte é promover a análise perfunctória do regime das nulidades no Direito do Trabalho.

1.2. Teoria das nulidades no direito do trabalho

O ramo material trabalhista não se preocupou em criar, em suas normas, regras específicas e conceituais sobre a nulidade e seus efeitos no contrato de trabalho. Em razão de tal lacuna legislativa, coube à doutrina e à jurisprudência delimitar o alcance das normas gerais de nulidade do Direito Comum e a sua aplicabilidade no Direito Laboral.

Vale asseverar que a Consolidação das Leis do Trabalho trata do assunto em questão, apenas, em seu art. 9º, estabelecendo a nulidade absoluta do ato praticado com fraude aos dispositivos constantes no referido diploma legal5.

Sobre o tema, o mestre e doutor Maurício Godinho Delgado defende a existência de uma teoria justrabalhista de nulidades, que tem como regra geral o critério da irretroação da nulidade decretada (DELGADO, 2007, p. 510).

É de salutar relevância esclarecer, a priori, que, com o Estado Democrático de Direito, consagrado no Brasil através do art. 1º, da Constituição Federal de 1988, os princípios passaram a ocupar um

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papel de extrema importância na ordem jurídica brasileira, de modo a exercerem diversas funções no direito pátrio6.

Nesse diapasão, há que se ressaltar os princípios do valor social do trabalho (esculpido como fundamento: da República Federativa do Brasil — art. 1º, caput, CF/88; da ordem econômica — art. 170, caput, CF/88 e; da ordem social — art. 193, caput, CF/88) e da dignidade da pessoa humana (também consagrado como fundamento da República Federativa do Brasil, conforme previsão no art. 1º, caput, CF/88).

O escopo do constituinte originário, ao elencar o princípio do valor social do trabalho como fundamento da República Federativa do Brasil, da ordem econômica e da ordem social, foi, sem dúvida: reconhecer no trabalho o meio de dignificação do homem, pois representa a forma que este encontrou de garantir a sua subsistência. A expressão Social que qualifica o valor do trabalho humano não foi inserida por acaso pelo legislador constituinte, ao contrário, a conclusão que deve ser feita é a de que o valor do trabalho transcende o âmbito do trabalhador, sendo reconhecido como patrimônio da coletividade. (RIATTO, 2007, p. 18).

Por sua vez, Ingo Wolfgang Sarlet conceitua a dignidade da pessoa humana como sendo: a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação...

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