A teoria da justiça de martha nussbaum e os direitos humanos

AutorGina Marcilio Pompeu - Ana Araújo Ximenes Teixeira
CargoDoutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Mestre em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (1994) - Doutoranda em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Fortaleza, atualmente integra como pesquisadora o Centro de Estudos das Relações Econômicas...
Páginas177-196

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Considerações iniciais

O debate em torno dos direitos humanos e, pois, dos direitos fundamentais, é o tema que domina o constitucionalismo desde o final da Segunda Guerra Mundial. Em sua concepção clássica, a teoria da constituição busca o equilíbrio entre a organização do poder político e a proteção aos direitos fundamentais do homem. Desde 1945, porém, sob inspiração do princípio da dignidade do ser humano, a teoria da constituição passa a submeter a organização política à realização dos direitos fundamentais.

A relevância assumida pelo princípio da dignidade do ser humano na teoria da constituição inaugura uma nova forma de antropocentrismo: a construção política e jurídica da sociedade em função da dignidade do homem. A ordenação do poder com base no princípio da dignidade do ser humano coloca os fatores concretos de poder em segundo plano. Nessa lógica, exalça-se o homem – por meio de seus direitos básicos – à condição de princípio e fim da organização estatal.

A teoria da constituição voltada à realização dos direitos fundamentais do homem, portanto, deve adequar-se à necessidade de submeter os fatores reais de poder político que ameaçam a proteção da dignidade humana. Nesse diapasão, a teoria da justiça como equidade de John Rawls lançada nos Estados Unidos em

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1971 cumpre razoavelmente a tarefa de subsidiar a teoria da constituição comprometida com a centralidade dos direitos fundamentais.

Todavia, as transformações políticas e econômicas causadas pelo fenômeno da globalização criam e agravam problemas socioeconômicos, mesmo em democracias constitucionais outrora aparentemente inatingíveis por essas questões. Na nova ordem mundial caracterizada pelo recrudescimento de desigualdades econômicas e sociais e pela mitigação do poder emanado da soberania nacional, a preservação da dignidade humana revela-se assaz desafiadora para a teoria da constituição e para as teorias da justiça que lhe subjazem. É nesse nicho que se insere a teoria da justiça das dez capacidades de Martha Nussbaum, construída como uma proposta de complementação da teoria da justiça como equidade de John Rawls.

Com efeito, a teoria da justiça das dez capacidades compartilha componentes teóricos com a teoria dos direitos humanos em quantidade suficiente para, à primeira vista, qualificarem-na a alicerçar a teoria da constituição que prioriza a proteção de direitos fundamentais. Porém, principalmente em razão da adoção de um elemento substancial inicial, o enfoque das capacidades de Martha Nussbaum suscita questionamentos alusivos à racionalidade e compatibilidade com o contratualismo liberal. Nesse sentido, o exame da racionalidade da teoria da justiça das dez capacidades reflete diretamente na pretensão de colmatar as lacunas da teoria da justiça de Rawls.

Assim, o presente artigo objetiva analisar criticamente a pretensão de racionalidade da teoria da justiça de Martha Nussbaum e, por conseguinte, sua compatibilidade com o contratualismo liberal, de modo a aferir a viabilidade para servir de complemento à teoria da justiça como equidade de John Rawls. Objetiva-se também demonstrar em que medida a resposta a essa questão reflete-se na teoria dos direitos humanos internacionais e nos estudos acerca do escopo do Estado nacional no panorama da globalização.

Cumpre destacar a esse respeito, com base nos relatórios de desenvolvimento humano das Nações Unidas que seguem em anexo, que o propósito dos Estados nacionais de salvaguardar os direitos humanos tem na globalização um de seus maiores desafios. As pressões que a globalização exerce sobre a soberania do Estado-nação têm dificultado a proteção da dignidade humana mesmo em países desenvolvidos.

O modelo de organização estatal construído a partir da Revolução Francesa e as teorias da constituição e da justiça que o embasam apresentam sinais de esgotamento ante os efeitos negativos da integração econômica mundial, o que potencializa a relevância desta pesquisa, visto que o enfoque das capacidades de Nussbaum almeja complementar a mais prestigiada teoria liberal e contratualista da justiça para adequá-la às exigências do mundo globalizado.

Para cumprir os objetivos aqui expostos, adota-se a metodologia descritivoanalítica aplicada em pesquisa de tipo bibliográfico e documental – com relação aos relatórios estatísticos oriundos da Organização das Nações Unidas. Estruturalmente, o primeiro tópico aborda em que consiste o enfoque das capacidades. No tópico

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dois, aborda-se a principal objeção oponível à possibilidade de fundamentação racional da teoria de Martha Nussbaum no sentido de impedi-la de alinhar-se ao contratualismo liberal como complemento à teoria da justiça como equidade de Rawls, bem como os argumentos pelos quais a referida objeção pode ser refutada. Ao final, são declinadas as conclusões extraídas.

1 A teoria da justiça das dez capacidades

A análise econômica do desenvolvimento humano contemporânea à teoria da justiça como equidade reflete o viés utilitarista que Rawls combate na teoria da justiça como equidade. Os estudos do economista Amartya Sen acerca das habilidades ou capacidades que o ser humano deve ter a oportunidade de desenvolver para viver uma vida conforme aquilo que valoriza são recentes.3

Ao permitir a aferição do desenvolvimento humano com base em variáveis múltiplas desvinculadas da simples leitura do índice de renda per capita de cada nação, a teoria econômica de Sen cria o IDH – índice de desenvolvimento humano –
, que possibilita uma visão precisa sobre a qualidade de vida das pessoas. Com o IDH – que utiliza dados mais adequados na análise das condições de vida que o simples cálculo aritmético da renda per capita –, viabiliza-se a medição realista do grau de distribuição de justiça aos cidadãos.

O progresso trazido pela criação do IDH coincide com a sedimentação da globalização como processo de integração econômico-cultural. Nesse contexto, as análises estatísticas empreendidas por organismos internacionais sobre desenvolvimento humano demonstram que não existe uma relação direta entre crescimento econômico (ou aumento de renda per capita) e a melhoria das condições de vida do ser humano.

O Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas de 2013, por exemplo, informa que a soma da produção econômica da China, da Índia, e do Brasil é equivalente à dos seis países mais ricos do hemisfério norte, a saber, Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá. Todavia, a qualidade de vida das populações dos três primeiros países situa-se em nível bem inferior a dos povos das seis últimas nações.4

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Consoante o Relatório de Desenvolvimento Humano elaborado pela Organização das Nações Unidas em 2015, Chile e Guiné Equatorial possuem renda per capita semelhante, porém o Índice de Desenvolvimento Humano chileno é bem superior ao da Guiné Equatorial. Da mesma forma, o Gabão tem renda superior à da Indonésia, mas ambos os países equiparam-se em termos de IDH.5Como se observa, em todos os casos a desigualdade de renda não interfere decisivamente na qualidade de vida.

Dessarte, considerável parcela da teoria da justiça de Rawls afigura-se nitidamente ultrapassada, visto que, ao adotar somente a renda como fator para medir as posições sociais relativas entre as pessoas, não possibilita analisar com precisão nem apontar soluções para os problemas de justiça social detectados pelas estatísticas relativas ao crescimento econômico e ao desenvolvimento humano no mundo globalizado.

Como enfatiza Nussbaum, o que importa para a justiça é a qualidade de vida das pessoas (2013, p. 100), contudo o perfil de organização política amparado pelo contratualismo rawlsiano não cogita nem dispõe de meios para considerar as condições de vida concretas e complexas dos cidadãos. O contratualismo tem como meta principal garantir o reconhecimento da igualdade entre os seres humanos com vistas a que as assimetrias da ordem social absolutista não mais entravem o desenvolvimento econômico e humano dos Estados nacionais.

Locke, Hobbes e Rousseau constroem suas teorias sobre justiça política no contexto do absolutismo monárquico, razão pela qual firmar a ideia da igualdade entre os homens é ponto vital nessas elaborações teóricas. Nesse sentido, é criada a ficção do contrato social, firmado pelos homens livres e iguais no estado de natureza visando à consecução de vantagens mútuas com a vida numa sociedade politicamente organizada. O avanço com relação às bases da sociedade monárquica

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e absolutista é inegável, vez que nesta os homens são considerados desiguais desde o nascimento e sujeitos a uma ordem política e social sobre cujos princípios – estabelecidos pela autoridade e não pelo debate racional – não podem opinar.

O contratualismo clássico afirma, em síntese, que homens iguais em racionalidade e direitos abandonam o estado de natureza ao eleger – com o escopo de auferir vantagens mútuas – os princípios políticos da sociedade que organizam. O contratualismo rawlsiano agrega elementos morais que aperfeiçoam o contrato social clássico, ao estabelecer, v.g., que esse pacto é realizado, estando as partes contratantes ‘sob o véu da ignorância’, de maneira a desconhecerem quais são suas posições sociais efetivas nesse momento prévio de escolha dos princípios políticos que subsequentemente regerão a todos assegurando vantagens mútuas.

Por meio do véu da ignorância, Rawls introduz o elemento moral da imparcialidade no momento da escolha dos princípios políticos que regem a sociedade, o que lhe permite realizar uma justificação procedimental da teoria da justiça como...

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