Teoria da harmonização jurídica: alguns esclarecimentos

AutorVera Lúcia Viegas
CargoDoutora em Direito Internacional pela USP
Páginas617-655

    Artigo desenvolvido com base na tese de doutoramento, intitulada “Harmonização Jurídica e Direito de Integração: elementos para uma teoria da harmonização jurídica”, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, aos 11 de dezembro de 2003, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Borba Casella.

    Doutora em Direito Internacional pela USP, especialista em Direito de Integração pela Universidade de Roma II “Tor Vergata”, Professora de Teoria do Direito e das Relações Internacionais da FECAP no Curso de Relações Internacionais da FECAP (Centro Universitário Fundação Escola de Comércio Álvares Pentado) e Professora de Direito Internacional Público e Privado no Curso de Direito do UNIFIEO (Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco). E-mail: vlviegas@uol.com.br

Page 619

1. Considerações Terminológicas

Antes de começarmos a explanar sobre o Direito de Integração, convém que façamos alguns esclarecimentos quanto às expressões “Direito de Integração” e “Direito Comunitário”.

Neste trabalho, utilizaremos a expressão Direito Comunitário para nos referirmos ao Direito da União Européia. Isso porque entendemos ter sido a experiência integrativa européia a primeira historicamente expressiva, a partir da qual se construiu o hoje chamado Direito de Integração.

Logo, “Direito Comunitário” denotaria o ramo do Direito cujo objeto de estudo é, em grossas linhas, o ordenamento jurídico da União Européia1, restando a expressão “Direito de Integração”, hoje, para abranger as demais experiências integrativas2.

Dessa forma, pode-se dizer que a espinha dorsal do Direito de Integração foi extraída do Direito Comunitário, possuindo este especificidades da realidade européia e caminhando aquele para o campo de uma teoria abrangente tanto dos blocos de cooperação quanto os de integração3.

Feitos estes esclarecimentos terminológicos, passemos então à análise do Direito de Integração.

Page 620

2. O Direito de Integração e suas características básicas

O Direito de Integração4 é um ramo novo do Direito, um desdobramento do Direito Internacional5, regulador das organizações internacionais comunitárias, em princípio com órgãos supranacionais6.

A palavra “integração” tem origem latina, derivando de integratio, o que significa “renovação”, “restabelecimento”7.

Em que pese existirem outras organizações internacionais com órgãos supranacionais – como, por exemplo, na América Latina, o Sistema Andino8, com o seu Tribunal supranacional9 – o Direito de Integração se desenvolveu, sobretudo, com base na experiência européia10, ou seja, no fenômeno das Comunidades Européias e o seu desembocar na União Européia11.

Mota Campos entende o Direito Comunitário como o Direito comum a uma Comunidade de Estados, e detentor de certos caracteres que o individualizam e lhe asseguram condições de aplicação uniforme na ordem interna dos Estados-membros12. Para o autor13, esses caracteres são:

1 – A Autonomia do Direito Comunitário, em virtude da sua origem supranacional e pela sua finalidade própria (essa finalidade é a de “estabelecer a disciplina jurídica dos interesses comuns dos Estados”);

2 – A inserção, das normas de Direito Comunitário, como tais, nas ordens jurídicas internas, “podendo ser diretamente aplicadas pelas jurisdições nacionais”, quando produzam efeito direto ou imediato na esfera jurídica individual, ou seja, quando atribuam diretamente, aos particulares, direitos ou obrigações, que tenham que ser reconhecidos ou impostos pelos Tribunais nacionais;

3 – A primazia da norma comunitária perante a norma nacional do Estado membro, “excluindo a aplicação da norma nacional contrária, qualquer que ela seja (de nível ordinário ou constitucional, anterior ou posterior)”;

4 – A aplicação uniforme do Direito Comunitário em todo o espaço da Comunidade, o que exige ainda a “uniformidade de interpretação e de apreciação de validade dos actos normativos emanados da Autoridade Comunitária”, assegurada pelo Tribunal Comunitário, “na conformidade de um sistema assente na colaboração dos juizes nacionais com aquele órgão jurisdicional comunitário.” [MOTA CAMPOS, 1997:14]14.

Page 621

Por nossa vez, entendemos que um ordenamento jurídico de integração é um ordenamento jurídico ímpar, bem distinto das organizações internacionais de tipo clássico. O que lhe confere essa natureza peculiar é a existência de certas características que fazem com que possamos afirmar que estamos diante de um sistema jurídico próprio.

Nós entendemos estar dentre essas peculiaridades, de modo geral:

1) a possibilidade de visualização de um certo grau de institucionalização (a existência, portanto, de uma estrutura própria, que não se confunda com a estrutura institucional de cada qual dos Estados membros de uma dada organização internacional);

2) como conseqüência dessa estrutura própria, a existência de fontes jurídicas próprias, distintas das fontes inerentes aos ordenamentos jurídicos nacionais, e

3) a existência de um inter-relacionamento entre a estrutura jurídica comunitária e a estrutura jurídica de cada qual dos Estados membros. Ou seja, para que exista um ordenamento jurídico comunitário, este sistema jurídico comunitário deve criar relações jurídicas próprias com os ordenamentos jurídicos nacionais15.

A existência dessa terceira característica permite justamente podermos falar em ordenamento jurídico de integração, ou seja, que integra os ordenamentos jurídicos dos Estados membros, sem absorvê-los.

Essa terceira característica - as relações entre o ordenamento comunitário e os ordenamentos nacionais - é de suma importância. O Direito de Integração pode inclusive ser definido com base nessas relações comunitárias16.

É exatamente em decorrência dessa terceira característica que se nos apresentam algumas questões complexas, como a aplicação pelos Estados membros do Direito comunitário; a incorporação/integração, nos ordenamentos jurídicos nacionais, do Direito proveniente das fontes jurídicas comunitárias; a hierarquia das fontes jurídicas (primado do ordenamento jurídico comunitário; primado dos ordenamentos jurídicos nacionais, ...).

Justamente ao analisar essas questões, decorrentes da terceira característica de um ordenamento jurídico comunitário supra mencionada, é que surgem outras características, de igual importância:Page 622 eficácia direta das normas comunitárias; aplicação imediata das normas comunitárias (efeito que não se confunde com a eficácia direta)17, primado do Direito Comunitário, ... competência exclusiva, competência subsidiária da Comunidade, ... (aqui nos baseamos especificamente no exemplo do ordenamento jurídico comunitário da UE, e nos seus princípios comunitários).

3. O Direito de Integração e sua dupla faceta: Ramo Autônomo do Direito e Desdobramento do Direito Internacional

O Direito de Integração é sim um ramo novo do Direito, um desdobramento do Direito Internacional, como afirmamos acima, mas não podemos aqui dizer que o Direito de Integração é um sub-ramo do Direito Internacional Público Clássico18, porque entendemos que entre o Direito Internacional Público Clássico e o Direito de Integração pode ser visualizado o que podemos chamar de Direito Internacional Público Hodierno (Direito Internacional da Idade Contemporânea).

Assim, desde o surgimento do Direito Internacional19 (que para alguns teve como marco inicial a Paz de Westphalia, em 1648 – já que essa data seria, para alguns, o marco do surgimento do Estado -, e para outros, antes ainda, com a centralização e conseqüente surgimento do Estado de Portugal), cujo sujeito por excelência era o Estado Soberano e a principal fonte de Direito, os Tratados bilaterais20, passamos por um período de afloramento de novos sujeitos de Direito no cenário internacional: as Organizações Internacionais.

Por serem essas Organizações Internacionais, intergovernamentais21, ainda não podemos falar em Direito de Integração, porém não se pode igualmente continuar falando em Direito Internacional Público Clássico para esse novo cenário, já que temos mudanças significativas quer quanto aos sujeitos, quer quanto às fontes de Direito22.

Portanto, nesse período de afloramento das Organizações Internacionais (período entre guerras e principalmente, após a 2ª GM), como conseqüência lógica dos desdobramentos históricos, estamos diante de um “Novo Direito Internacional”: o Direito Internacional Hodierno (Direito da “nova ordem internacional”23), e com o fenômeno das organizações internacionais comunitárias (de integração, com órgãos supranacionais), ainda enquanto uma continuação da evolução inicial, surge o “Novíssimo Direito Internacional”: o Direito de Integração (Direito da “novíssima ordem internacional”)24/25.

Page 623

Diferenciando e distanciando o que nós chamamos de “Novíssimo Direito Internacional” (o Direito de Integração), do Direito Internacional Público Clássico, e ao mesmo tempo apontando o Direito de Integração como um ramo novo do Direito, são pertinentes as palavras de Antonio José Fernandes:

[O] ordenamento jurídico das organizações internacionais constitui um ramo novo do Direito Internacional geral, apresentando maior...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT