O Surgimento do Paradigma Ambiental

AutorAlbenir Itaboraí Querubini Gonçalves
Páginas37-60

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2. 1 O movimento ambiental e o rompimento com o modelo clássico

Como visto anteriormente, o direito de propriedade, a partir da visão clássica instaurada pela codificação das leis cíveis, possibilitou ao proprietário os poderes de usar, gozar e dispor da coisa como bem entendesse. Paralelamente, foram asseguradas aos cidadãos a igualdade (formal) e a liberdade para realizarem seus negócios jurídicos livres da interferência estatal na esfera privada. Com isso, o mecanismo jurídico implementado pela codificação, além de consolidar a propriedade como direito fundamental dos cidadãos livres e iguais, trouxe a segurança jurídica que favoreceu a ascensão do capitalismo.

A Revolução Francesa também simbolizou o início do mundo moderno, o qual passou a viver as mudanças de uma revolução industrial nas cidades e de uma expansão agrícola no campo. Foi com a modernidade que a apropriação do homem sobre os bens ambientais cresceu em escala geométrica, na medida em que avançavam as descobertas científicas, as quais impulsionavam ainda mais o crescimento econômico. Nesse sentido, a forma de pensar a propriedade baseada na concepção privatista e economicista refletiu-se diretamente na relação do homem com a natureza.

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Outrossim, fazia-se presente na concepção tecnocrática moderna o pensamento de que os recursos naturais eram ilimitados e de que o progresso econômico traria as soluções para todos os problemas ambientais que poderiam surgir. O homem moderno confiava plenamente no poder tecnológico e considerava que os problemas ambientais se resolveriam pelo emprego da ciência e da técnica, por meio da simples expansão do modelo de economia de mercado, conforme observa Jesús Ballesteros46. Além disso, ao contrário da tradição de respeito com a natureza, a qual era observada por muitos povos da Antiguidade, o homem moderno também possuía difundida a ideia de que a natureza constituía um entrave ao seu desenvolvimento econômico, concepções cujos resquícios ainda relutam em persistir nos dias atuais47.

Com o crescimento populacional houve um grande aumento da demanda por alimentos. Da mesma forma, a expansão do setor industrial, cuja atividade preponderante está na transformação das matérias-primas em produtos para o consumo, também passou a demandar, cada vez mais, produtos oriundos do campo para atender a demanda do mercado. Tais fatores impulsionaram, no setor primário, a expansão da atividade agrária48, a qual se deu

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diretamente sobre o meio ambiente em áreas anteriormente ricas em recursos naturais.

Deve-se ficar claro que no curso do desenvolvimento da atividade agrária sempre existiu um avanço do homem contra a natureza. No entanto, o diferencial nos tempos modernos foi que as mudanças passaram a se operar de forma diretamente mais impactante sobre os principais bens ambientais que compõem os ecossistemas, favorecidas pelas inovações tecnológicas no campo: novas técnicas, defensivos agrícolas (agrotóxicos), fertilizantes, máquinas e implementos agrícolas.

Toda essa degradação ambiental perpetrada pelo homem moderno acabou custando um preço caro, refletido diretamente na perda da qualidade de vida dos cidadãos. A consequência dessa forma de pensar acabou resultando em graves desastres ambientais, que colocavam em risco a qualidade de vida, tanto das presentes quanto das futuras gerações. Nas cidades, as indústrias lançavam seus resíduos diretamente na natureza, contaminando o ar pelas emissões de fumaça, os rios pelo despejo de produtos químicos, o solo, etc. Muitas cidades industrializadas começaram a sentir os efeitos da chuva ácida provocada pela emissão de gases nocivos, além de ver suas florestas desaparecerem, seus rios morrerem junto com sua fauna marinha e as reservas de água potável, que antes eram abundantes, se tornaram escassas.

A mesma tecnologia que favoreceu o aumento da produtivi-dade, somada à sede pelo lucro (crematística), resultou na utilização da terra de forma irresponsável pelos proprietários, favorecendo o desmatamento indiscriminado das florestas para dar lugar as plantações ou pastagens. Tal tecnologia trouxe também a contaminação dos solos, das águas e dos alimentos pelo uso excessivo de agrotóxicos, a matança dos animais silvestres, entre outras tantas e graves agressões à natureza. O homem moderno modificava a natureza como nunca antes se havia visto na histó-

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ria da humanidade, colocando em risco a própria sobrevivência, bem como a sobrevivência de suas gerações futuras em face de todas as consequências negativas de agressão ao meio ambiente na busca de seu desenvolvimento. Um triste exemplo desse quadro está no ocorrido com a Mata Atlântica no Brasil, a qual restou quase totalmente devastada pelo homem49. Mesmo com os exemplos negativos da exploração indiscriminada da Mata Atlântica, o quadro dantesco hoje se repete com outros ecossistemas, como se verifica nos biomas Amazônia, Pantanal e Cerrado.

Como reação a tudo isso, a sociedade passou a responder de forma contrária ao modelo clássico de desenvolvimento moderno, na medida em que passou a sofrer os efeitos negativos advindos degradação ambiental. Não seria correto dizer que o homem, no curso da sua história, nunca teve uma preocupação com a nature-za. O que se diferenciou nesse exato momento é que houve uma retomada de forma ampla da preocupação do homem com o meio ambiente, necessária a sua própria sobrevivência: trata-se do movimento ambiental, o qual passa a questionar o modelo de desenvolvimento até então adotado. As mudanças se operaram gradativamente, tanto em âmbito mundial quanto em âmbito nacional.

O mesmo passou com o direito, que não ficou alheio às mudanças na sociedade, e também passou a prever e garantir os meios de tutela do meio ambiente50. Salienta-se que a adoção de

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medidas em caráter global quase sempre foram precedidas de desastres ambientais ou de estudos de grande impacto51.

No âmbito internacional, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente Humano, realizada no período de 5 a 16 de junho de 1972, em Estocolmo, na Suécia, é apontada como o marco da consolidação do movimento ambiental, tendo sido responsável por uma verdadeira troca de paradigma na sociedade. Constituiu-se em um contraponto ao modelo clássico, com a "consolidação de um novo modo de pensar ecológico"52, sendo seu principal tema as ameaças e riscos ao meio ambiente53. A Declaração do Meio Ambiente firmada na Conferência de Estocolmo foi o primeiro documento assinado entre as nações reconhecendo

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o meio ambiente como um direito fundamental. O referido documento é composto de 26 princípios fundamentais, os quais passaram a influenciar as constituições de diversos países, a exemplo do Brasil, pela Constituição Federal de 198854.

Já em seu primeiro princípio, a Declaração de Estocolmo dispõe que o homem tem o direito fundamental "ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar", além de ser portador solene da "obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras". Ademais, chamou a atenção para o risco do esgotamento dos recursos naturais, prevendo que o desenvolvimento econômico deveria se dar de forma sustentável, respeitando a preservação do meio ambiente como forma de se garantir o bem-estar e a qualidade de vida das populações presentes e futuras.

Após a Conferência de Estocolmo55, também foi um importante marco para o ambientalismo a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (também chamada de "RIO 92" ou "ECO 92"), realizada de 3 a 21 de junho de 1992 no Rio de Janeiro, cujo tema foi a economia e o meio ambiente. Seu principal objetivo foi ressaltar "a defesa do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável pela qual a humanidade é capaz de atender às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade de as gerações futuras atenderem também às suas"56.

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Além da Declaração de 1992, composta por 27 princípios, outros importantes documentos foram resultado da Convenção do Rio de Janeiro: a Agenda 2157e as Convenções sobre as Mudanças e Climáticas e sobre a Biodiversidade.

Posteriormente, realizou-se em Johanesburgo, na África do Sul, a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, no período entre 24 de agosto e 11 de setembro de 2002, cujo tema foi a pobreza e o desenvolvimento, com a "avaliação da efetividade da implementação da Agenda 21"58.

A partir de Estocolmo, com visto, houve a criação de uma série de órgãos de proteção ambiental em âmbito nacional e internacional, estatais e privados. Todos esses fatos vêm a demonstrar que as mudanças operadas no campo internacional ambiental foram reflexo da consolidação de um pensar ecológico no seio da sociedade atual, em oposição ao modelo de desenvolvimento clássico-liberal59, o qual passou a ser considerado incompatível e atentatório à própria qualidade de vida e à sobrevivência humana.

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Outrossim, deve ficar claro que as mudanças em matéria ambiental não ocorreram apenas no campo jurídico, refletindo-se na sociedade como um todo. A preocupação da sociedade com um ambiente sadio e equilibrado cresce na medida em que a conscientização ambiental avança, como ocorre, por exemplo, com a quantidade cada vez maior de consumidores, que passam a exigir produtos com certificação ambiental, e a rejeitar aqueles produtos que degradam o meio ambiente.

Da mesma forma, as exigências ambientais impostas tanto pelos Estados quanto pelos próprios consumidores acabam obrigando as empresas a adotarem posturas voltadas à preservação ambiental em seus processos produtivos, o que também se tornou hoje uma ferramenta competitiva de mercado...

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