O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado: parâmetros para uma reconstrução

AutorIuri Mattos de Carvalho
CargoMestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Advogado
1. Introdução

Em coletânea de artigos recentemente publicada,1 alguns juristas têm questionado a existência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado no ordenamento jurídico brasileiro apoiando-se em críticas das mais diversas ordens. Argumentam desde que a supremacia do interesse público não pode ser considerada um princípio, diante dos atuais avanços da teoria do direito,2 até que esse princípio é fruto de uma concepção "autoritária" de direito administrativo.3 Por isso, conclamam pela "desconstrução" do princípio da supremacia do interesse público.

Apesar do vigor dos argumentos apresentados, os autores das críticas, infelizmente, não considerarem que as recentes reformulações do princípio, efetuadas por uma significativa parcela da doutrina administrativista atual,4 representaram um notável avanço em direção a um maior controle social dos atos administrativos, na medida em que afirmam a supremacia do interesse público perante os interesses privados e os interesses meramente estatais (os "interesses secundários do Estado", na já consagrada expressão de Celso Antônio Bandeira de Mello, que foi inspirada na doutrina de Renato Alessi). Longe de justificar posturas autoritárias da Administração, o princípio aponta uma exigência de legitimidade da atuação administrativa, e serve como fundamento para o controle do exercício das competências discricionárias.

Na verdade, muitas das críticas atingem tão-somente a utilização indevida do princípio por aqueles que, por desconhecimento ou má-fe, lhe atribuem um sentido antidemocrático. Sabedora disso, Alice González Borges, em importante artigo sobre o tema, ao invés da "descontrução" propugnada pelos críticos, sugere uma "reconstrução", pois: "É preciso não confundir a supremacia do interesse público - alicerce das estruturas democráticas, pilar do regime jurídico-administrativo - com as suas manipulações e desvirtuamentos em prol do autoritarismo retrógrado e reacionário de certas autoridades administrativas".5

Sob pena de arriscar os avanços teóricos alcançados, entendemos que o momento não é de desconstrução. O princípio da supremacia do interesse público, na medida em que pressupõe uma dissociação entre interesse público e interesse estatal, nunca se prestaria para justificar atos abusivos do Estado. Por isso, defender o fim da idéia de supremacia, ao invés de um avanço na direção de uma Administração Pública mais democrática poderia servir de justificação jurídica para a colonização do interesse público por interesses privados.

Ao invés de negar sua existência, devemos combater a utilização indevida do princípio da supremacia do interesse público, que ocorre quando tal princípio é usado para justificar decisões administrativas arbitrárias, ou vinculadas à busca de interesses pessoais. Além disso, devemos aprimorar seu conceito, tornando-o mais apto para servir de fundamento e parâmetro do controle social dos atos administrativos - e com esse propósito, repensar a relação entre o interesse público e os direitos fundamentais.

Neste artigo, tratamos inicialmente do papel do princípio da supremacia do interesse público no Direito Administrativo. Em seguida, defendemos que o conceito de interesse público deve ser reformulado para oferecer maior operacionalidade ao princípio, desenvolvendo sua aptidão para o controle da atuação administrativa.

Apontando alguns limites da definição de interesse público proposta por Celso Antônio Bandeira de Mello, indicamos novos parâmetros para uma definição de interesse público como o resultado do procedimento de determinação da medida administrativa que melhor atenda a realização dos direitos fundamentais no caso concreto.

Em seguida, analisaremos as contribuições que a teoria dos princípios de Robert Alexy pode oferecer para o aprimoramento dos critérios de controle do ato administrativo, bem como para a compreensão da natureza teórica do princípio da supremacia do interesse público.

2. O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado no Direito Administrativo

O sistema de Direito Administrativo Brasileiro se constrói sobre os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público pela Administração.6 Tais princípios buscam oferecer uma resposta teórica à tensão que se configura entre "prerrogativas da Administração - direitos dos administrados".7 Por um lado, num Estado Democrático de Direito, somente a vinculação à busca do interesse público poderia justificar a existência de prerrogativas para a Administração. Por outro lado, a busca da realização do interesse público é um compromisso indisponível.

Nessa construção teórica, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado tem uma função muito especial, guardando uma dupla dimensão de sentido. Em um primeiro sentido, remete às prerrogativas do Estado, e em especial ao atributo da imperatividade, justificando a possibilidade da Administração Pública constituir obrigações para os administrados por meio de ato unilateral, ou modificar, também unilateralmente, relações já estabelecidas. Em um segundo sentido, vincula a atuação administrativa à exigência de legitimidade, pois as prerrogativas atribuídas pelo sistema jurídico para a Administração Pública condicionam-se à realização do interesse público: "Não há, no Estado de Direito, privilégios atribuídos à "força governante" (para usar uma desataviada mas realista expressão de Duguit) pelo mero fato de ser a força governante".8

Como tradicionalmente o ordenamento jurídico atribui inúmeras prerrogativas à Administração Pública, a exaltação da segunda dimensão de sentido - comprometer a atuação administrativa com a realização do interesse público - representou um avanço em direção a um maior controle da atuação administrativa. Afirmar que somente ao interesse público cabe a supremacia é apontar para um Direito Administrativo mais democrático. Com isso, a noção de interesse público apresenta uma importância central, figurando-se como condição de validade dos atos administrativos. Ou nas palavras de Marçal Justen Filho:

Afirmar sua supremacia corresponde a reconhecer natureza instrumental aos poderes titularizados pelo Estado e agentes públicos. O exercício das competências públicas se orienta necessariamente à realização do referido interesse público. Isso significa que a interpretação de todas as normas atributivas de poder funda-se em diretriz hermenêutica fundamental, afetando todas as relações jurídicas contidas no âmbito do Direito Administrativo. A construção doutrinária que privilegia o interesse público representa uma evolução marcante em direção à democratização do poder político.9

Entretanto, essa essencial referência a uma exigência de legitimidade da atuação administrativa não é suficiente para operacionalizar o controle de legitimidade dos atos administrativos. Como saber se a decisão administrativa atende ao interesse público? Nesses termos, o problema passa a ser a definição de interesse público. Como definir tal conceito, tornando-o um critério realmente eficaz de análise das escolhas da Administração Pública?

2. 1 O que não é o interesse público

Em uma primeira abordagem, devemos lembrar que o conceito de interesse público não se constrói a partir da identidade do seu titular.10 Nem todo interesse manifestado pela Administração Pública é interesse público. Afinal, não se trata de um princípio da supremacia do interesse do Estado, pois tal redução conduziria a impossibilidade de utilizá-lo como instrumento de controle da atuação administrativa.

Por outro lado, o interesse público não se confunde com interesses meramente privados. Não é o interesse pessoal do agente público que deve determinar o conteúdo da decisão administrativa. Há muito, a doutrina busca evitar tal confusão através da noção de "desvio de poder", que ocorre quando o agente "usar de seus poderes para prejudicar um inimigo ou para beneficiar a si próprio ou amigo".11 Se o ato administrativo for praticado com desvio de poder, deverá ser considerado inválido. Trata-se, portanto, de uma patologia que compromete a validade de atos administrativos que não possam ser justificados com fundamentos jurídicos, por se basearem unicamente em preferências pessoais.

2. 2 O que é interesse público

Definir positivamente o interesse público, entretanto, não é um empreendimento fácil. O conceito, que comporta uma grande pluralidade de significados, sempre careceu de uma definição que pudesse restringir seu uso por parte da Administração Pública. Afinal, o interesse público não poderia ser tratado como um desses conceitos despidos de conteúdo, ou passíveis de serem manipulados para legitimar qualquer atuação do Estado. Dentre as diversas tentativas de se definir o conceito de modo direto, o que poderíamos chamar de abordagem semântica, destaca-se a proposta de Celso Antônio Bandeira de Mello, inspirada no conceito de "vontade geral" de Rousseau.

2.2. 1 Posição de...

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