Os sujeitos do performativo juridico--relendo a dignidade da pessoa humana nos marcos de genero e raca/The subjects of the juridical performative - Rereading human dignity in the framework of gender and race.

Autorde Magalhaes Gomes, Camilla

Introducao: Entre o eu e o nos (1)

Since he stoops to view the inside, we are led to suppose that, for the time being, he is taller than the open door. (Jacques Derrida) O guarda afasta-se entao da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar la dentro. (Franz Kafka) "A modernidade e a epoca em que o homem foi subjetivado" (DOUZINAS, 193), a "era do individuo" (RENAULT, 1989). Supostamente essas categorias representariam a entrada da particularidade ou da singularidade em campos como o Direito e a Politica. Mas sera mesmo que essas categorias, como elaboracoes da colonialidade, permitem uma singularidade radical? Pessoa humana, sujeito e individuo sao entidades correspondentes? Se o constitucionalismo democratico, em seu componente democracia, tem no povo uma das categorias centrais; quando falamos do outro componente, o dos direitos fundamentais, uma outra categoria se torna crucial: aquela de sujeito de direitos. Enquanto o povo e o nos da voz constitucional, o sujeito de direitos e o eu que demanda diante do Judiciario, e o titular de direitos. Como tal, entao, e um instrumento fundamental e afeta significativamente a nocao de humano. Diferente dos institutos de pessoa no Direito Civil, a ideia de pessoa humana e a propria dignidade da pessoa humana nao sao conceitos juridicos (BARRETTO, 2013, p. 66) ou exclusivamente juridicos. Ademais, a dignidade da pessoa humana e comumente adotada como constatacao, como simples reconhecimento descritivo da natureza da pessoa humana digna e sua atribuicao de fundamento do Estado Democratico de Direito. Assim, ao contrario da ideia do Direito Civil de que o conceito de sujeito de direitos e mais amplo do que o de pessoa (fisica/juridica- como se este estivesse contido naquele), reflito exatamente no sentido contrario: centrando-me apenas na questao do humano, pessoa humana e bem mais (ou deveria ser) do que a ideia de sujeito de direitos representa. Ou mais do que isso: na ideia de pessoa humana deve caber bem mais do que o ultimo instituto representa. O sujeito de direitos e a entrada da pessoa humana no mundo normativo-juridico e suas instituicoes, o sujeito de direitos e uma instituicao desse mundo juridico. Para que essa entrada possa ser feita sem que tenhamos que nos abaixar tanto como no conto de Kafka, precisamos usar a nocao de pessoa humana como uma ferramenta de adiamento de sentido do humano e de sujeito.

Quero aqui colocar em questao essa operacao do seguinte modo: (i) comeco pela apresentacao da forma corrente e dominante de identificacao da dignidade da pessoa humana; (ii) analiso a referida forma teorica de modo a questionar se a concepcao de pessoa humana ali presente esta preenchida ou contaminada com as nocoes modernas de sujeito e individuo; (iii) realizo uma reflexao sobre tais termos diante do corpo como categoria de analise.

O modelo dominante da dignidade da pessoa humana

Naquilo que chamarei de literatura juridica dominante (2) tem centralidade uma concepcao neokantiana da dignidade da pessoa humana--daqui em diante DPH. Segundo Ingo Sarlet, por exemplo, e incensuravel "a permanencia da concepcao kantiana no sentido de que a dignidade da pessoa humana, esta (pessoa) considerada como fim, e nao como meio, repudia toda e qualquer especie de coisificacao e instrumentalizacao do ser humano" (2002, p. 44). Marianna Holanda, em sua tese de doutorado, faz uma analise a esse respeito, inicialmente realizando uma pesquisa etimologica sobre o termo, que a levou, segundo aponta, a um horizonte comum nas concepcoes classicas e modernas: a dignidade como "caracteristica humana excludente, um distintivo social". A autora diz que, na literatura juridica, a concepcao que domina e de que a dignidade e "um "valor supremo do ser humano" que da origem a todo e qualquer codigo ou ordem juridica" (HOLANDA, 2015, p. 64).

A partir de uma compilacao de alguns dos autores brasileiros mais citados quando se fala em uma teoria dominante, quero apresentar um pequeno resumo. Certamente ela nao esgota o debate nos campos teoricos, doutrinarios e jurisprudenciais sobre o instituto em questao. A intencao e reunir pontos comuns, referencias reiteradas e que, mesmo sob alguma critica (3), formam a cadeia de significados--ou a cadeia de convencoes historicamente constituidas (BUTLER, 1997, p. 51) - da dignidade da pessoa humana. Isso significa que, a principio, a propria teoria kantiana nao sera objeto de estudo, mas sim essa sua revisitacao. Antes de apresentar esse resumo, ha ainda duas questoes levantadas por Holanda que me parecem fundamentais para guiar nosso caminho. A primeira e a de que o "problema do humano" parece surgir mais em producoes europeias do que em qualquer outro tipo de filosofia ou heranca de pensamento. Conceituar a humanidade parece um projeto da colonialidade, talvez porque a oposicao humano/nao humano seja um dos seus grandes produtos ou fundamentos (LUGONES, 2014; MAGALHAES GOMES, 2017b)--ou os dois ao mesmo tempo (HOLANDA, 2015, p.19). Ou como diz Viveiros de Castro, que nos perguntemos "sobre o que "nos" faz diferentes dos outros--outras especies ou outras culturas, pouco importa quem sao "eles" quando o que importa somos "nos"--ja e uma resposta" (2015, p. 26). A segunda pontuacao que a autora faz e a de que a referencia a uma dificuldade em definir o referido instituto aparece com frequencia, mas que tal frequencia esta apenas relacionada a momentos em que a "dignidade extrapola os seus limites antropocentricos e androcentricos--que delimita privilegios--ampliando-se" (HOLANDA, 2015, p. 66).

Parece mesmo haver uma preocupacao em controlar e definir os limites dessa dignidade e desconfio que essa preocupacao esteja presente com maior frequencia contra pretensoes expansivas para alem de uma nocao de humano colonial e andro e antropocentrada. O curioso, no entanto, e que ela tambem surge quando alguma critica e pretensao emancipatoria estao presentes. Assim, por exemplo, Joao da Costa Neto propoe a necessidade de definicao para possibilitar uma "aplicacao coerente" e evite seu uso como reserva de equidade" (2009, p. 11). De outro lado, Daniel Sarmento, em um livro com algumas preocupacoes emancipatorias, aponta que "essa indeterminacao e ambiguidade comprometem a capacidade do principio da dignidade humana de equacionar as controversias juridicas e sociais" (2016, p. 17). Segundo ele, haveria uma "carna-valizacao do instituto" (Idem, p. 18). Luis Roberto Barroso identifica que a dignidade da pessoa humana, apesar de constituir o que ele chama de "um dos maiores exemplos de consenso etico do mundo ocidental", na realidade, juridicamente, acaba funcionando "como um mero espelho, no qual cada um projeta seus proprios valores" (BARROSO, 2012, p. 9-10). Nao me alongarei nessa discussao, mas a referencia aos autores serve a pensar como essa alegacao de indefinicao e seus perigos se revela uma constante. E, mesmo que o facam com pretensoes emancipatorias, a critica de Holanda nos da uma boa pista: a pressao ou necessidade de se definir o que e a DPH, que, em ultima instancia seria uma pretensao em definir o que e a pessoa humana, tem qualidades antropocentradas e coloniais. Outros, diante dessa dificuldade, consideram o conceito inutil e, nessa linha, ha, por exemplo, quem defenda simplesmente substitui-la pela nocao de autonomia. E o que defendeu Ruth Macklin em artigo publicado na British Medical Journal em 2003 e seguido, por exemplo, por Lincoln Frias e Nairo Lopes em artigo publicado em 2015.

A questao que fica agora e: qual o perigo maior, uma indeterminacao ou uma definicao limitadora? Ou sera que nao podemos encontrar um caminho no intervalo entre as duas posicoes? Afinal, o perigo parece ser grande nos dois casos: tanto uma nocao indeterminada que serve a tudo pode esvaziar por completo o instituto, mas tambem, uma definicao que cria restricoes pode significar negacao de humanidade. Agora, quero fazer um apanhado dos elementos ou criterios da dignidade da pessoa humana que podem ser encontrados em literatura e jurisprudencia dominantes. Nao me estenderei nessa tarefa, preocupada em me concentrar em como descentrar essa linguagem. Assim, nao farei o costumeiro recorrido historico do uso da dignidade da pessoa humana no Direito ou da nocao de dignidade (especialmente nao farei esse recorrido na nocao moderno-europeia de dignidade), esse trabalho ja esta feito em inumeras teses, dissertacoes e livros.

O primeiro componente da DPH--e entendido ou referido como sua ideia central, posicao com a qual uma grande maioria parece concordar - e a ideia de valor intrinseco baseado na proposicao kantiana de que aquilo "que constitui a so condicao capaz de fazer que alguma coisa seja um fim em si, isso nao tem apenas simples valor relativo, isto e, um preco, mas sim um valor intrinseco, uma dignidade" (KANT, 1964, p.32). Em um resumo dos elementos, Joao Costa Neto aponta encontrar em Kant os "tracos fundamentais da dignidade humana como a vemos hoje", dentre eles a pessoa ou sujeito como "ser dotado de valor intrinseco, a despeito dos fins derivados e consequencias que suas acoes tragam ou possam trazer a si ou a sociedade a qual ele pertence, ou seja, trata-se de um sujeito que deve ser encarado sempre como um fim em si mesmo e nunca como mero meio" (2009, p. 22). E em Kant e na diferenciacao entre precos e fins que Carmen Lucia Antunes Rocha tambem sustenta a ideia central da DPH como valor intrinseco: a pessoa "e um fim, nunca um meio; como tal, sujeito de fins e que e um fim em si, deve tratar a si mesmo e ao outro. Aquele filosofo distinguiu no mundo o que tem um preco e o que tem uma dignidade". Assim sendo, aponta que, por nao ter preco e ser um fim em si mesma "Toda pessoa humana e digna" (1999, s.p). Para Barroso, esse e o elemento ontologico encontrado no plano filosofico, "ligado a natureza do ser" como um "conjunto de caracteristicas que sao inerentes e comuns a todos os seres humanos, e que lhes confere um status...

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