A subsuncao dos direitos humanos a nova razao do mundo: LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razao do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. Sao Paulo: Boitempo, 2016.

AutorFerreira, Pedro Pompeo Pistelli
CargoRESENHA

Christian Laval, professor de sociologia na Universidade Paris Nanterre, e Pierre Dardot, filosofo e professor na mesma instituicao, formulam em A nova razao do mundo uma proposta de releitura do fenomeno neoliberal, a fim de reagir a sensacao de que o pensamento critico falhou na tarefa de compreender o seu inimigo. Ou seja, "a esquerda ainda nao entendeu o que e o neoliberalismo, e esta pagando um preco altissimo por isso" (LAVAL, 2016).

Para tanto, fazem recurso de uma leitura renovada dos postulados teoricos de Marx (desde 2004 realizam seminarios com o objetivo de "reinterrogar o quadro teorico e a base historica da critica social e politica que foi o pensamento de Marx" [ANDRADE; OTA, 2015, p. 275-276]) e das consideracoes de Foucault (2008) acerca da governamentalidade neoliberal, nas quais o filosofo frances desloca o centro do estudo do neoliberalismo para alem da analise de politicas e medidas economicas, de modo a enfocar seu papel na construcao de uma politica de sociedade sustentada pela teoria da concorrencia pura e na generalizacao da forma empresa e do homo oeconomicus a todas as esferas da existencia humana (1).

Esse resgate foucaultiano, ja realizado por outras autoras, como Brown (2006 e 2015) e Dean (2009), permite pensar de forma inovadora a questao das particularidades e peculiaridades do neoliberalismo, de modo a evitar a reducao desse fenomeno a uma versao recrudescida do capitalismo classico (2), que naturaliza o mercado, resgata o laissez-faire e se reduz a um intervencionismo negativo (p. 14-15). Portanto, os autores propoem-se a pensar seu objeto a partir da construcao descontinua, processual e dinamica da sociedade neoliberal, que engloba aspectos economicos, sociais e subjetivos (p. 16), a partir de uma narrativa que entende que "a historia e muito mais complexa, menos linear e, ao mesmo tempo, menos maniqueista" do que a maioria dos relatos (p. 246).

Metodologicamente, essas consideracoes culminaram na necessidade de realizar uma pujante empreitada de historia das ideias (neo)liberais, valendo-se de uma extensa revisao bibliografica e analise documental, que inclui desde obras classicas do receituario liberal (como as de Locke e Bentham, por exemplo) a programas politicos da esquerda neoliberal (como os da terceira via britanica).

Assim, na primeira parte ("A refundacao intelectual"), a trajetoria do livro comeca com a constatacao da crise do liberalismo, decorrente da ascensao do movimento operario e da questao social, e com os primeiros germens da racionalidade neoliberal, que os autores encontrarao no neoevolucionismo spenceriano, marcado pela ultravalorizacao da competicao (entendida como selecao e nao mais como especializacao) entre individuos como chave ao progresso da humanidade (p. 52-53). Depois, tal como Foucault (2008), elege-se o Coloquio Walter Lippmann, realizado em 1938, como o evento fundador da proposta neoliberal de sociedade (3). A partir dai, listam-se as contribuicoes de varias tradicoes para assentar as bases dessa forma de pensar: a nocao de que o mercado e algo que deve ser construido, inclusive com intervencao estatal (Lippmann [p. 71-100]), a necessidade de formular um quadro juridico e normativo que permita o florescimento de um espaco para a concorrencia, implicando a modelagem da propria sociedade (ordoliberais alemaes [p. 101-132]), a transformacao do ser humano de acordo com a imagem da empresa, como um capital humano que deve sempre buscar a autovalorizacao (Von Mises [p. 133-156]) e a proposta de submeter o Estado as normas de direito privado, de modo a colocar o liberalismo e os direitos civis do mercado acima de qualquer democracia (Hayek [p. 157185]). Apesar de suas particularidades, todos esses pensadores trazem em comum o impeto de generalizacao dos principios da concorrencia e do livre mercado para todos os ambitos da existencia humana.

Na segunda parte ("A nova racionalidade"), por sua vez, os autores procuram analisar como se deu a aplicacao concreta de todos esses principios e reflexoes teoricas nas sociedades do chamado Primeiro Mundo. Passam, primeiro, pelo estudo dos governos Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido, que surgem como resposta a crise do Welfare State e introduzem uma nova politica monetarista e de sociedade, que culmina na construcao da comunidade financeira internacional. A partir dessas politicas, desmonta-se o poder sindical, aumenta-se a taxa de juros, desregulam-se mercados, privatizam-se os fundos publicos e, a partir de uma retorica de eficacia oriunda do setor privado, erige-se "a concorrencia em regra suprema e universal do governo" (p. 196197). Depois, pelo estudo do blairismo e da terceira via inglesa, pode-se perceber que essa retorica finca profundas marcas na Gra-Bretanha, cuja esquerda socialdemocrata continua a reproduzir os discursos neoliberais de racionalizacao e de eficiencia do mercado, a partir de uma nocao ortodoxa de gestao, o que nos indica que o neoliberalismo e mais que uma logica partidaria, mas sim uma tecnica de governo que se vende como neutra, mantendo sua relevancia tanto em...

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