A subjetividade como 'Efeito de Discurso' e a questão da adoção das crianças no quadro das novas parentalidades

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas79-88

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Nós demonstramos nestas pesquisas que é preciso leis para sermos humanos e que há níveis mais inconscientes da instância da Lei de Linguagem - designada Lei do Nome-do-Pai, pela Psicanálise - que são constrangimentos de estrutura para todos e todas. Estes constrangimentos que emergem de uma negação primordial ao gozo ilimitado, estabelecem o limite sempre representado pela Interdição do incesto e dos crimes fundamentais, o parricídio, o matricídio, e o infanticídio. Há, também, níveis conscientes da instância das leis que, apesar de seguirem as contingências dos períodos históricos de cada sociedade concreta, são herdeiros dos constrangimentos arcaicos estruturantes.

Nós demonstramos, também, que a consideração do saber da Psicanálise pelo campo do Direito produz uma modiicação da própria noção de lei. Nós tendemos assim a considerar a Lei, mesmo as leis jurídicas, como uma instância psíquica. Compreendemos que para ser humano e sociável, é preciso a interiorização dos constrangimentos nos níveis da estrutura psíquica, durante os processos primários e secundários da infância. Sem um desenvolvimento, em condições sanas para a subjetividade, o indivíduo não vai reconhecer as leis sociojurídicas das sociedades concretas. E, para explicar as inluências destes processos na e pela cultura, nós destacamos, com base em legados ilosóicos os quais introduziram na Filosoia geral e no Direito a teoria freudiana das pulsões de vida e de morte, que o princípio do prazer deve ser substituído pelo princípio de realidade, como condição de humanização.

Lembramos então que a relação dos pais com seus ilhos é estabelecida tanto pelo biológico quanto pelo psíquico. É o simbólico de toda uma sociedade que, exigindo dos pais a tarefa de criar e educar sua descendência, fala através suas vozes no curso de gerações. O humano é, portanto, humano em se submetendo a esta estrutura, a este grande Outro que é a cultura, a língua, a família, numa enunciação antropológica.

Nós dissemos que o indivíduo social reconhece sua existência em reconhecendo a existência de uma estrutura de determinações, tal a gramática, a fatalidade, os deuses, a morte, a lei etc. Isto num enunciado antropológico em que o sujeito, para além do pensamento estruturalista de Lévi-Strauss, resta numa posição ao mesmo tempo externa e interna à cultura, sendo suporte e ator das relações que se veriicam na estrutura institucional.

Lembramos ainda que para a Psicanálise o sujeito é o sujeito do inconsciente, em sua singularidade. Ele é exterior, mas também interior à cultura, portanto diferente do sujeito da antropologia clássica. Ele é o sujeito da enunciação e não do enunciado. Ele surge causado pelas relações intrapsíquicas de identiicações primeiras, com a mãe, com o pai e com a igura dos dois ao mesmo tempo, até que ele possa discernir e elaborar a diferença sexual anatômica.

Desde Lacan, podemos dizer que as relações dos indivíduos com as leis sociojurídicas dependem desta interiorização designada metáfora do Nome-do-Pai. Por meio do processo de metaforizarão o pai

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se torna portador da Lei simbólica e suporte da entrada da criança na linguagem. Mas nenhum pai é suiciente ? sua função, seja ele pai real ou pai imaginário. O pai enquanto simbólico não pode exercer plenamente sua função visto que se trata de Lei simbólica, isto é, da Lei do significante. Do significante paterno restam somente traços inconscientes no texto dos discursos.

Com relação a esta concepção da função do pai no Complexo de Édipo e de sua inalidade - tal como descrito por Freud como complexo de castração, questão que ele tentou regular pelo mito do assassinato do pai da horda primitiva -, Lacan foi mais além, em propondo de levar em conta a função paternal na subjetividade como instauradora da Lei simbólica, por meio de uma escritura significante fundada sobre a escritura da metáfora. Nestes seus estudos sobre a psicose, Lacan estabeleceu a dualidade significante/signiicado e ele demonstrou como a metáfora paternal é ligada ao estabelecimento do significante fálico como significante central de toda a economia subjetiva149.

Para compreender um pouco mais como esta Lei simbólica, ligada à função paternal, constitutiva de toda a economia subjetiva, se transmite nos laços e nos discursos sociais, assim como sua relação à psicopatologia, nós recorremos ao texto "Impasses de la construction subjective chez l’enfant et l’adolescent", onde Lesourd150 explica que cada sociedade organiza, na sua cultura e nos seus laços sociais:

Os limites colocados aos prazeres individuais e às relações interindividuais de gozo, de propriedade, e, portanto as relações aos outros. Toda cultura é assim portadora de interditos sempre expressados, de valores morais às vezes implícitos e de ideais na maioria das vezes tácitos. Freud salientou já em 1923 que uma vez afastadas (pela cura) as particularidades individuais do supereu do neurótico, nós encontramos então prescrições do supereu coletivo. Mas toda cultura é também portadora de prescrições de gozo, que restam na maior parte do tempo inconscientes, sob a forma de gosto ou desgosto alimentar, de modos de uniões sexuais preconizadas ou interditas, e até mesmo para a seleção primeira dos fenômenos admissíveis na linguagem e dos modos de expressão dos afetos. Isto implica que toda a educação é uma aprendizagem que limita os modos de satisfação pulsional pela interiorização dos códigos do "bem gozar" que prevalecem na sociedade de origem da criança151.

A cultura é então um horizonte institucional. Ela produz no psiquismo humano um determinismo inconsciente de subjetividade disciplinada. Isto implica que a infância é um tempo de aprendizagem das limitações de gozo e de frustração individual, diante dos gozos possíveis para o sujeito e, entretanto impossíveis do fato da cultura. As patologias infantis são, portanto, segundo Lesourd, o modo que a criança testemunha de sua recusa, de sua incapacidade, e de sua inadaptação aos interditos culturais, a compreender e integrar como frustrações necessárias à vida em sociedade.

Toda psicopatologia não pode, portanto, ser concebida senão como a expressão do sofrimento individual de um sujeito a integrar, por razões que podem ser múltiplas, este necessário renunciamento à satisfação total de suas pulsões e de seus desejos pessoais. As psicopatologias estão, portanto, sempre em ligação com a sociedade naquela onde elas se desenvolvem. As patologias do inal da infância, da adolescência, testemunham, não poderia ser melhor, desta cone-xão profunda entre psicopatologia individual e laço social. De fato, a adolescência é o momento em que o sujeito deve encontrar seu lugar no laço social adulto, e então encontrar os significantes, oriundos do laço social, que permitem gozar da vida como sendo responsável por si mesmo, por seus atos e sua relação com os outros. As psicopatologias adolescentes são diretamente o testemunho da organização do mundo no qual elas se produzem e de cada época, cada cultura produz formas de psicopatologias adolescentes em adequação com os interditos de gozo culturais152.

Os especialistas concordam em dizer que as formas de expressão da psicopatologia mudaram nas duas últimas décadas. De fato, eles dizem que há um forte aumento dos distúrbios narcisistas, das depressões, da agitação psicomotora e, ainda, agitações relacionadas ao consumo. Paralelamente eles constatam uma diminuição:

[...] das fobias infantis que foram consideradas como uma psicopatologia "normal" das crianças em período pré-edi-piano, e uma aparição de fobias adolescentes graves que não são relacionadas com a aparição clássica dos distúrbios esquizofrênicos deste período da vida. Da mesma forma, as recentes classiicações semiológicas demonstraram que as formas clássicas de histeria com sintomas de conversão, praticamente, desapareceram das consultas. Finalmente, como um substituto para o desaparecimento de conversão histérica, apareceram, primeiro nos adolescentes, mas ago-ra cada vez mais em crianças em período de latência, numerosos distúrbios de imagem do corpo: escariicações não ritualizadas adolescentes, recurso massivos à cirurgia plástica para os adultos etc.

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Diante desta constatação das transformações da expressão psicopatológica do sofrimento psíquico, numerosos são os clínicos que se questionam sobre o que mudou na construção subjetiva e numerosos textos, tomando posições diferentes, tentando responder a esta questão: "O que mudou: a construção subjetiva ou a organização do mundo, isto é, a cultura?"153

Para responder a esta pergunta Lesourd154 retoma as deinições de cultura, a qual pode ser deinida "como a organização dos mitos, estas icções simbólicas que presidem a uma organização social". As práticas sociais são explicadas e ao mesmo tempo fundadas pelos mitos. Os mitos155 cosmogônicos têm uma importância considerável como modelo exemplar de toda espécie de criação e de construção. Estes contos antropológicos tratam sempre das questões que se colocam nas sociedades que os veiculam. Eles têm uma relação direta com a estrutura religiosa e social do povo, e com sua cosmogonia. Os mitos, que eles sejam religiosos ou cientíicos, vêm dar senso ao real que insiste, mas resta incompreensível e mes-mo indizível em relação à vida, à origem, à morte e à diferença dos sexos.

Os mitos permitem ao neoteno humano suportar sua fraqueza individual de ser dependente dos outros, e suportar a fraqueza coletiva diante das forças da natureza. Eles têm uma função também de organização que permite ao homem, tomado coletivamente, de dominar o mundo. Esta dominação passa pela regulação das trocas entre os homens, ponto de intersecção entre o individual e o coletivo, e pela criação de regras de vida em coletividade nas sociedades humanas e concretas: o interdito de matar e do incesto, de troca de mulheres, do direito de propriedade, e todas as suas nuances...

Esta organização do coletivo, segundo Lesourd, foi o que...

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