Sociedade de advogados com forma de sociedade de capitais: uma discussão a ser enfrentada

AutorRenato Ventura Ribeiro
Páginas126-142

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I - Introdução

Em solenidade realizada no Palácio do Planalto, no dia 4 de julho de 1994, foi promulgado o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil - EAOAB (Lei 8.904/1994). Oriundo de anteprojeto elaborado no âmbito do Conselho Federal da OAB e transformado no Projeto de Lei 2.938/1992, do Deputado Ulysses Guimarães e outros, é grande conquista da classe dos advogados, fruto de dois anos de intensa atuação junto aos membros do Legislativo federal.

O Estatuto da OAB enfatiza o vínculo intuitus personae entre advogado e cliente. No tocante às sociedades de advogados, não só estipula a exclusividade da forma de sociedade civil (art. 15), como veda expressamente o registro e o funcionamento de sociedade de advogados com forma ou características mercantis (art. 16).

Enquanto no Brasil era feita a adaptação à nova lei, na Alemanha uma Corte Estadual proferia decisão permitindo a constituição de sociedades de advogados sob a forma de sociedades limitadas,1 causando

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tamanha influência, a ponto de, mais tarde, determinar a mudança da legislação.

Passados dez anos da promulgação da lei brasileira e após profundas alterações na matéria em direito comparado, o escopo deste artigo, como consta no título, é discutir a pertinência da adoção, no Brasil, da forma de sociedades limitadas e até de anônimas, para sociedades de advogados, permitindo a responsabilidade limitada dos sócios, desde que conjuntamente com a adoção de seguro de responsabilidade civil compulsório.

Não se trata de desvirtuar a atividade da advocacia, como atividade personalíssima, com predominância de grau máximo de confiança entre cliente e advogado. Mas sim do reconhecimento de situação fática, já vivida por grandes escritórios, notoriamente organizados de forma empresarial.

E o modelo proposto (limitação da responsabilidade dos sócios com seguro obrigatório) objetiva dupla proteção. Primeiro, dos clientes, que passarão a contar com mais segurança no caso de prejuízos por culpa (no sentido amplo) de seus contratados. Segundo, dos profissionais que atuam em sociedades de advogados, pela limitação da responsabilidade, com a proteção de seu patrimônio pessoal.

II - Da utilização da forma de sociedade mercantil para exercício de atividades civis
1. A disciplina atual das sociedades de advogados e o problema da responsabilidade ilimitada

Pelo critério legal brasileiro, a sociedade de advogados deve revestir-se da forma de sociedade civil, com responsabilidade ilimitada dos sócios.

Aponta-se a finalidade exclusiva, com a impossibilidade de inclusão de outra atividade, para justificar a proibição da forma mercantil.2

Uma das questões mais delicadas é a responsabilidade ilimitada da sociedade e de todos os sócios pelos prejuízos causados por danos aos clientes. Com isto, um profissional, sócio de sociedade de advogados, pode ver seu patrimônio comprometido para ressarcimento de danos causados a clientes por outro sócio du profissional da sociedade.

O problema envolve alguns aspectos. Sob a ótica da proteção do destinatário dos serviços, aparentemente a responsabilidade ilimitada dos sócios parece resguardar o cliente, o que é verdade apenas em parte, pois o patrimônio da sociedade e dos sócios pode ser insuficiente para cobrir os prejuízos,3 além da demora do Judiciário e de inúmeras possibilidades de proteção patrimonial.

Sendo o dano causado por advogado associado, estagiário ou funcionário da sociedade de advogados, cabível a responsabilidade da pessoa jurídica por atos de seus prepostos, por força de legislação específica (Lei 8.906/1994, art. 17) e pela responsabilidade objetiva pelos atos dos prepostos (Código Civil, art. 932, III). Porém, mesmo com a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, se for o caso (Lei 8.078/1990,4 art. 28; Código Civil, art. 50), não fica afastada a possibilidade de não reparação do dano em razão da insuficiência de patrimônio da sociedade e dos sócios.

No caso da responsabilização por dano causado por outro sócio, pode-se invocar a

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máxima do direito romano de que quem escolhe um mal sócio só de si deve se queixar.5 Se houve má escolha do sócio, a culpa é de quem escolheu-o ter como parceiro. Neste caso, tem-se argumento favorável à responsabilidade ilimitada dos sócios não só nas sociedades de advogados, como nas demais. E como nas demais atividades é possível a adoção de forma societária com responsabilidade limitada, não se justifica a exceção no caso de sociedade de advogados.

Nem o caráter intuitus personae da advocacia serve para explicar a responsabilidade ilimitada. Diversas outras atividades personalíssimas podem ser exercidas através de sociedades com responsabilidade limitada. Ademais, deve-se lembrar que atualmente, na prática, em muitos escritórios a advocacia é exercida de forma empresarial, com diminuto grau de vínculo pessoal entre cliente e advogado.

Em nenhum dos casos, a responsabilidade ilimitada dos sócios afasta o risco de não ressarcimento dos danos. Mantido o atual modelo normativo e com a tendência de aumento de ações por responsabilidade profissional, o cliente pode passar a escolher o profissional em função de seu patrimônio e não da habilidade profissional ou, entre dois ou mais profissionais com capacidade técnica em níveis parecidos, optar por aquele com maior quantidade de bens.6 Isto como forma de resguardo para o caso de eventual demanda futura contra o profissional.

Por isto, é melhor a possibilidade de adoção de forma societária com responsabilidade limitada. Até porque, mesmo com a permissão para sociedades de advogados com responsabilidade limitada, há a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica nos casos de abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação do estatuto ou contrato social e insolvencia por má administração (Lei 8.078/1990, art. 28) e abuso de personalidade jurídica ou confusão patrimonial (Código Civil, art. 50). E ainda assim, com o risco de não reparação dos danos por falta de patrimônio da sociedade e dos sócios.

Apesar dos institutos de responsabilidade civil terem sido criados com o escopo de prover a reparação de danos, hoje tal função reparatória é melhor exercida, com mais amplitude e eficiência, pelo sistema segurador,7 pois nem sempre o causador do dano possui patrimônio suficiente para tal ressarcimento.

Por isto, para assegurar o cliente, urge a instituição de seguro obrigatório de responsabilidade civil. A mantença da ilimita-ção da responsabilidade nas sociedades de advogados deve ser revista, por não ser garantia de reparação de danos e nem incompatível com o exercício da advocacia, como exposto a seguir.

2. Da possibilidade de exercício de atividades civis por sociedades mercantis

A advocacia constitui atividade civil, por ser profissão liberal e não estar incluída entre os chamados atos de comércio.8 Mesmo se exercida por meio de sociedades comerciais, continua sendo atividade civil e não perde o seu caráter intuitus personae.

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As atividades civis podem ser exercidas por sociedades simples (correspondentes às antigas sociedades civis) ou por sociedades comerciais. Mesmo as atividades civis possuem escopo lucrativo. Neste caso, o lucro não advém da atividade comercial ou industrial, mas da prestação de serviços.

A lei das sociedades anônimas admite expressamente a adoção daquelas sociedades para exercício de atividades civis (não comerciais), ao tratar do objeto social: "Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio" (Lei 6.404/1976, art. 2º, § Assim, por exemplo, uma mineradora, embora exerça atividade civil, pode revestir-se da forma de sociedade anônima, como há vários casos no direito brasileiro (dos quais a Companhia Vale do Rio Doce é o mais conhecido). E o exercício de atividade civil não desnatura o fim lucrativo da " sociedade anônima, pois é característica de toda companhia a finalidade lucrativa (Lei 6.404/1976, art. 2º).

Como proposto por Waldemar Ferreira no VI Congresso Jurídico Nacional, em 1955, em lição que permanece atual, "quando as sociedades civis revestirem as fôrmas estabelecidas nas leis comerciais, elas se reputarão sociedades mercantis, obedecerão aos respectivos preceitos e se regerão pelas leis e usos do comércio".9

No caso de sociedades comerciais que tem por objeto atividades civis, a atividade exercida não perde o caráter de civil. Mas a sociedade é considerada comercial pela forma, estando sujeita às leis e normas comerciais, como...

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