O sindicato realmente precisa da clt?

AutorBruno Ferraz Hazan e Luciana Costa Poli
Páginas450-459

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1. Introdução

Muitas pessoas ainda esperam uma hora depois das refeições para nadar ou tomar banho. Há quem ainda considere ovo um alimento prejudicial à saúde, mesmo se consumido com moderação, ou quem, por motivo de saúde - e não por gosto - escolha margarina ao invés de manteiga.

Provavelmente, muitos ainda acham que os homens usam apenas 10% do seu cérebro, que possuem apenas cinco sentidos e que os sabores azedo, doce, amargo e salgado são identificados em áreas distintas da língua. Afinal, Napoleão Bonaparte realmente tinha baixa estatura? Albert Einstein foi reprovado em matemática? A muralha da China pode mesmo ser vista do espaço?

Vive-se uma época em que as verdades são flexíveis, os fatos são desmentidos, a ciência vira ficção, e a ficção científica vira ciência. Ora, há alguns anos acreditava-se que eram nove os planetas no sistema solar!

A cada momento, e em todas as áreas da ciência, novas intepretações são desenvolvidas, novas verdades e mentiras são descobertas e novos caminhos são trilhados. Não é diferente com o Direito. Esse, a cada paradigma posto, tem o potencial de se reconstruir e se redescobrir sem, necessariamente, precisar de novas leis.

E, partindo de novos paradigmas, a Constituição da República de 1988 inaugurou formalmente um novo: o Estado Democrático de Direito. Nele, a forma de se perceber o Direito, por meio da própria Constituição, faz com que a estrutura normativa até então concebida seja revista e reinterpretada, especialmente por meio dos princípios constitucionalmente assegurados.

Em relação do Direito Coletivo do Trabalho, a Constituição inaugurou dois princípios basilares: a liberdade sindical e a autonomia sindical. A partir deles, o arcabouço legislativo sindical deve ser revisitado - ou, até mesmo, descaracterizado -, em especial, os pontos de contato entre a nova liber-dade e autonomia propostas e a estrutura sindical corporativa ainda presente na legislação infraconstitucional.

Para tanto, deve-se, inicialmente, perceber o papel do sindicato na construção do Direito do Trabalho - autonomamente concebido por meio do poder normativo das negociações coletivas - e sua importância na manutenção das conquistas trabalhistas e no desenvolvimento do próprio ramo justrabalhista.

Tal perspectiva deve ser confrontada com as premissas limitadoras do sistema de agregação corporativista baseado exclusivamente em categorias, estruturalmente contraditório com a perspectiva principiológica constitucional. A falta de plasticidade do enquadramento sindical oficial retira a possibilidade de reestruturação interna dos sindicatos, o que dificulta - e muito - a superação da crise pela qual passam.

A fim de se adequarem às novas necessidades da classe trabalhadora - além da necessidade do enfrentamento da crise - e a fim de a representarem adequadamente, propõe-se um novo caminho para a crise de identidade que acomete o sindicalismo brasileiro. Ao se reconfigurar a base do sistema sindical, espera-se que os sindicatos - readaptados e inter-namente remodelados - reassumam seu papel histórico na reconstrução do próprio Direito do Trabalho.

2. O papel do sindicato na construção autônoma do direito do trabalho

Não se pode negar a importância dos sindicatos para o Direito do Trabalho, já que suas fontes materiais são atreladas, essencialmente, à questão social e ao agrupamento organizado dos trabalhadores, na luta por melhores condições de trabalho.

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Assim, não é absurda a afirmativa de que o Direito do Trabalho tem, em seu nascedouro, a área coletiva que, por sua vez, criou as condições do surgimento da área individual e isto por mais que algumas legislações, como a brasileira, privilegiem o Direito Individual sobre o Coletivo do Trabalho: "sob este aspecto pode afirmar-se que surgiu, primeiro, um Direito Coletivo impulsionado pela consciência de classe e, em seguida um Direito Individual do Trabalho."1

Portanto, quase que intrinsecamente ao Direito do Trabalho, nasceu o poder das partes de construírem suas próprias condições de trabalho, por meio das negociações e lutas organizadas. Isso porque, quando de seu surgimento, o Estado, liberal, não exercia qualquer tipo de intervenção nas relações entre particulares, incluídas aí as relações trabalhistas entre patrão e empregado.

Assim, no sistema liberal, o trabalho se concretizou por meio das locações de trabalho, forma jurídica primeva de relação trabalhista. Tal forma de contratação se formatava pela autonomia da vontade entre os contratantes, consistindo no respeito total à liberdade volitiva do trabalhador e do empregador que se obrigavam um a prestar serviços e o outro a pagar salários, porém, sem quaisquer outras implicações2.

No entanto, como a igualdade entre trabalhador e patrão era, por óbvio, meramente formal (não havia liber-dade ou bilateralidade na estipulação das condições de labor) e como o patrão detinha, além dos meios de produção, todo o controle sobre a vida do trabalhador que dele dependia para sobreviver - destacando-se que sobreviver naquele período era, simplesmente, não morrer de fome -, por certo que esta relação "livre" não resistiria muito tempo.

As primeiras formas de produção capitalista eram disseminadas, descentralizadas. O empregador, assim, distribuía a matéria-prima e as máquinas aos trabalhadores que laboravam em suas próprias residências. O mercado, porém, exigia uma produção controlada, barata e regular. Com isso, o empregador reuniu seus funcionários em um mesmo local de trabalho.

Esta reunião fez com que os trabalhadores desenvolvessem consciência coletiva e a solidariedade do grupo passou a se colocar contra a exploração demasiada nas fábricas, com a conscientização de que apenas coletivamente poderiam lutar por melhores salários e condições de trabalho, e isto não obstante fosse juridicamente proibida a união dos trabalhadores, já que desequilibraria a balança do liberalismo, onde empregados e empregadores eram considerados iguais perante a lei. Isso, claro, não passava de mais uma falácia do sistema liberal:

Todo esse processo desvelava a falácia da proposição jurídica individualista liberal enquanto modelo explicativo da relação empregatícia, eis que se referia a ambos os sujeitos da relação de emprego como serem individuais singelos. Na verdade, perceberam os trabalhadores que um dos sujeitos da relação de emprego (o empregador), sempre foi um ser coletivo, isto é, um ser cuja vontade era hábil a detonar ações e repercussões de impacto social.

[...] Em comparação a ela, a vontade obreira, como manifestação meramente individual, não tem a natural aptidão para produzir efeitos além do âmbito restrito da própria relação bilateral pactuada entre empregador e empregado. O Direito Civil tratava os dois sujeitos da relação de emprego como seres individuais, ocultando, em sua equação formalística, a essencial qualificação de ser coletivo detida naturalmente pelo empregador.

O movimento sindical, desse modo, desvelou como equivocada a equação do liberalismo individualista, que conferia validade social à ação do ser coletivo empresarial, mas negava impacto maior a ação do trabalhador individualmente considerado. Nessa linha, contrapôs ao ser coletivo empresarial também a ação do ser coletivo obreiro.3

A partir desta consciência coletiva4, os trabalhadores é que conquistaram, pela força da união e autonomamente, sem ingerência estatal5, melhorias, mesmo que tímidas, nas condições de vida e labor.

Assim, as conquistas trabalhistas, coletivas e individuais, passaram a se efetivar por meio das uniões sindicais dos trabalhadores em tratativas diretas com as empresas, de forma autônoma, especialmente porque estas não conseguiam seguir com seu desenvolvimento produtivo sem o trabalho.

Somente depois das grandes lutas operárias é que o Estado capitalista passou a regulamentar as condições de trabalho6 trazendo, para o seu controle, por meio do ordenamento jurídico, as conquistas trabalhistas já realizadas pela classe operária, em uma legislação social afastada do ramo civilista.

Note-se, portanto, que grande parte do movimento de construção normativa, culminado com a intervenção do Estado nas relações de trabalho, veio de "baixo para cima" e não de "cima para baixo".

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Sendo assim, desde o surgimento do Direito do Trabalho, os atores sociais tiveram participação essencial na regulamentação de suas condições de vida:

A origem das negociações coletivas é atribuída à fase na qual o Estado era omissivo diante da questão social, diante de sua política liberalista, com o que surgiu a espontânea necessidade de organização dos trabalhadores em torno das organizações sindicais. Com a força da greve, os trabalhadores conseguiram levar seus empregadores a concessões periódicas, especial-mente de natureza salarial, estendendo-se para outros tipos de pretensões, hoje as mais generalizadas.

Formou-se assim um direito do trabalho autônomo.7

Desta forma é que se tem, como a mais específica deste ramo do Direito que, inclusive, o destaca dos demais outros, a função normativa que dá possibilidade de construção de normas (fonte formal de Direito) pelos próprios sujeitos da relação coletiva para o alcance da melhoria das condições dos trabalhadores que, certamente, leva à paz social e à redução das desigualdades entre o capital e o trabalho:

A geração de normas jurídicas é o marco distintivo do Direito Coletivo do Trabalho em todo o universo jurídico. Trata-se de um dos poucos segmentos do Direito que possui, em seu interior, essa aptidão, esse poder, que desde a Idade Moderna tende a se concentrar no Estado. A geração de regras jurídicas, que...

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