O caso Simone André Diniz e a luta contra o racismo estrutural no Brasil

AutorPaulo de Tarso Lugon Arantes
CargoPesquisador e Doutorando da Universidade Católica de Leuven; Mestre em Proteção Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Utrecht
Páginas127 a 149

Page 127

1. Introdução

Em 3 de março de 2007, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publica, em seu relatório anual1, decisão de mérito do caso Simone André Diniz contra o Estado do Brasil2, após quatro anos da aprovação do respectivo relatório de admissibilidade e de uma tentativa de solução amistosa. No conteúdo da decisão de mérito, a Comissão Interamericana faz importantes reflexões jurídicas e factuais sobre o rac-ismo estrutural no Brasil, muito embora ainda se acredite que o País seja uma democracia racial. Dentre as reflexões factuais, elabora-se um amplo panorama do racismo institucional no Brasil, elucidando as sutilezas da discriminação e a percepção dos negros e das negras pelas instituições ju-diciárias brasileiras. Quanto às reflexões jurídicas, discorre sobre a aplica-ção horizontal dos tratados de direitos humanos, a discriminação indireta e a discriminação estrutural, as respectivas obrigações estatais, além de um aprofundado estudo sobre o direito à igualdade ante a lei. Ademais, o mesmo órgão, após tecer seus argumentos e decisões sobre o mérito do caso, recomenda uma série de medidas reparadoras ao Estado brasileiro, a fim de que se sanem as violações sofridas pela vítima e se garanta a não repetição dessas violações.

Page 128

O caso em estudo, se disseminado e debatido nos âmbitos jurídicos, acadêmicos e políticos do País, tem o potencial de ser utilizado por operadores do direito, pesquisadores, legisladores e estruturadores de políticas públicas, a fim de se erradicar as causas e conseqüências do racismo estrutural.

2. Relevância do caso

O caso Simone André Diniz é o primeiro caso contencioso internacional contra o Brasil, que analisa, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a discriminação racial. O Sistema Interamericano, apesar de apresentar uma jurisprudência crescente na questão da igualdade, julgou relativamente poucos casos relacionados à discriminação racial. O caso também é relevante por sua abrangência social, porquanto projeta a dis-criminação individual sofrida pela vítima a um padrão de discriminação racial, com especial atenção aos obstáculos legislativos e jurisprudenciais nacionais que impedem as vítimas de sanarem as violações sofridas.

3. Síntese dos fatos

Simone André Diniz, candidata à vaga de empregada doméstica na ci- dade de São Paulo, busca ofertas de emprego nos classificados do jornal “A Folha de São Paulo” e encontra o seguinte anúncio: “Doméstica. Lar. P/ morar no empr. C/ exp. Toda rotina, cuidar de crianças, c/docum. e ref.; Pref. Branca, s/filhos, solteira, maior de 21a. Gisele”3. Ligando para o número indicado no anúncio, a vítima confirmou o fato de que, por ser negra, não preenchia os requisitos para a vaga ofertada. Irresignada com a recusa, dirigiu-se à Subcomissão do Negro da OAB-SP para denunciar a discriminação sofrida, como também esteve na Delegacia de Crimes Raciais para apresentar notícia-crime, tendo-se instaurado Inquérito Policial para apurar possíveis violações ao artigo 20 da Lei 7715/894. O delegado de polícia responsável pelo procedimento tomou os depoimentos da autora do anúncio, do seu esposo e da senhora que atendeu o telefonema da vítima.

Page 129

Em seguida, o delegado de polícia elaborou o relatório sobre a notícia- crime e remeteu-o ao juiz de direito competente, o qual deu ciência ao representante do Ministério Público, que, por sua vez, opinou pelo arquivamento do processo, argüindo que: “(…) não se logrou apurar nos autos que Aparecida Gisele tenha praticado qualquer ato que pudesse constituir crime de racismo, previsto na Lei 7.716/89 (…)” e que não havia nos autos “(…) qualquer base para o oferecimento de denúncia”. De posse do parecer, o juiz de direito prolatou sentença de arquivamento dos autos, acolhendo os argumentos do Ministério Público, extinguindo o feito. Insatisfeita com a decisão judicial, a vítima procura auxílio de um grupo de organizações não governamentais dedicadas à causa negra e ao Sistema Interamericano, o qual apresentou uma denúncia perante a Comissão Interamericana.

4. Síntese do trâmite perante a Comissão Interamericana

Na denúncia5, encaminhada pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP), solicitou-se à Comissão Interamericana que declarasse violações por parte do Estado brasileiro dos artigos 1 (obrigação geral de garantir os direitos), 8 (proteção judicial), 24 (igualdade perante a lei), 25 (garantias judiciais) da Conven-ção Americana sobre Direitos Humanos (‘CADH’). Igualmente, em função do artigo 29 (normas de interpretação) dessa Convenção, solicitaram os peticionários que declarassem violações dos artigos 1 (definição de dis-criminação), 2.1.a (proibição do apoio às práticas discriminatórias) e, em função do artigo 29 desse mesmo instrumento, os artigos 1, 2 (a), 5 (a)(I) e 6 da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (‘CERD’).

A denúncia foi recebida pela Comissão Interamericana em 7 de outubro de 1997. Em 10 de abril de 1998, o Estado brasileiro foi notificado para, num prazo de 90 dias, responder aos fatos e argumentos contidos na denúncia. Em 12 de maio de 1998, o Estado brasileiro enviou nota à Comissão Interamericana, trazendo suas primeiras considerações sobre oPage 130caso, comprometendo-se a enviar informações adicionais sobre o caso. Em 2 de outubro de 1998, os peticionários requereram a inclusão do Instituto do Negro Padre Batista como co-peticionário da denúncia. Em 3 de novembro do mesmo ano, a Comissão Interamericana reiterou ao Estado brasileiro o pedido anterior de informações concedendo-lhes um prazo de 30 dias. Em 9 de dezembro o Estado brasileiro apresentou sua resposta sobre a denúncia.

O relatório de admissibilidade do caso foi publicado pela Comissão Interamericana somente em 2002, através do Relatório No. 37/02, a qual decidiu que era competente para analisar o mérito do caso6. Em 20 de dezembro do mesmo ano, os peticionários solicitaram prorrogação do caso para enviar suas observações sobre o mérito do caso. Em 6 de janeiro de 2003, a Comissão Interamericana concede prazo adicional de dois meses aos peticionários. Em 20 de fevereiro de 2003, solicita os peticionários uma nova prorrogação de um mês para o envio de seus argumentos.

Em 8 de maio de 2003, a Comissão Interamericana se colocou à dis-posição das partes para iniciar um processo de solução amistosa, fixando um prazo de 30 dias para seu início. Em 14 de julho de 2003, o Estado brasileiro enviou seus comentários, manifestando seu interesse em iniciar um processo de solução amistosa, no que a Comissão Interamericana fixou um prazo de 15 dias aos peticionários para se manifestarem sobre a pro-posta, os quais acordaram em iniciar o processo amistoso em 15 de agosto daquele ano. Em 12 de dezembro, os peticionários comunicam à Comissão Interamericana sua desistência do procedimento amistoso, devido à ausência de proposta por parte do Estado brasileiro. O governo, em 15 de janeiro de 2004, solicita uma audiência para o 119º período de ses-sões perante a Comissão Interamericana, solicitando em seguida, em 11 de fevereiro, adiamento da audiência para o 120º período. Após a audiência e demais trâmites, a Comissão Interamericana publica o relatório 66/06, contendo a sua decisão sobre o mérito do caso.

5. Aspectos jurídicos

A seguir serão analisados os aspectos processuais e materiais do caso em estudo. Este artigo concentra-se nos aspectos materiais pertinentes ao caso, com foco nos aspectos processuais mais relevantes.

Page 131

5.1. Esgotamento dos recursos internos

Este artigo, por sua objetividade, não tem a pretensão de se aprofun-dar nas questões processuais de admissibilidade do caso. Contudo, resulta importante ressaltar a decisão da Comissão Interamericana sobre o esgotamento dos recursos internos7. Embora o processo interno não tenha sido levado aos altos tribunais brasileiros, a Comissão Interamericana acolheu o argumento dos peticionários de que, no direito brasileiro, a rigor, não cabe recurso judicial contra uma sentença que extingue o processo sem a apre-ciação do mérito, necessitando-se trazer novos fatos e provas para se iniciar outro processo penal. O Estado brasileiro não contestou tal argumento, o que levou a Comissão Interamericana a reputá-los como verdadeiros. Mesmo respeitando as considerações específicas sobre o processo penal brasileiro, o que o Sistema Interamericano leva em conta é a possibilidade real de as vítimas esgotarem os recursos internos. Com freqüência, ambas, Comissão e Corte, admitem casos com base em exceções à regra geral de esgotamento, a saber: inexistência de recursos na legislação nacional para sanar a violação em questão; a impossibilidade de a vítima de ter acesso aos recursos da jurisdição interna, ou tiver ela sido impedida de esgotá-los; e a demora injustificada na decisão dos recursos propostos pela vítima8.

5.2. Efeito horizontal dos tratados de direitos humanos e as obrigações positivas estatais

No caso, a Comissão Interamericana analisa a violação da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT