As servidoes revisitadas (um panorama das servidoes no código de 2002)

AutorRoberto Wagner Marquesi
CargoMestre em Direito Civil. Professor dos Cursos de Graduacáo e Pós-Graduacáo em Direito da Universidade Estadual de Londrina. Membro do Instituto de Direito Civil (RJ). Autor da obra Direitos Reais Agrarios & Funcao Social. Curitiba: Juruá, 2001
Páginas88-108

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1 Introduçáo

O novo Diploma Civil, vigente a partir de Janeiro de 2003, trouxe alteracoes substanciáis no tocante ao Direito das Coisas, das quais se destacam a extincáo da enfiteuse, a introducáo da superficie e a previsáo dos direitos reais de aquisicáo. Em relacáo ao instituto das servidoes, nao se operaram modificacóes de vulto, exceto urna alteracáo pontual que nao interfere na visáo global do instituto.

Sem embargo, as servidoes devem ser vistas segundo os principios informadores da nova ordem civil, especialmente o da funcáo económica dos direitos reais e o da socialidade, nao se as excluindo da idéia da repersonalizacáo do Direito Civil. Revisitadas e vistas a partir dessa angulacáo, as servidoes desbordam de sua finalidade particular e individual para galgarem a condicáo de instrumento para a consecucáo dos fins da sociedade.

2 Conceito Funçáo social das servidoes civis

A raiz etimológica do substantivo servidáo é indicativa de sua compreensáo atual. No passado, o vocábulo servus designava a pessoa sujeita a discricionariedade e dominacáo física de outrem. Na Idade Media, viu-se a figura do servo da gleba, que tornava urna pessoa acessória do feudo onde empreendia seu esforco físico. Quer se trate de sujeicáo a determinada pessoa ou de sujeicáo a térra, num e noutro caso o vocábulo expressa a idéia de submissáo ou subserviéncia. E é nesse sentido, o de sujeicáo, que o instituto das servidoes deve ser visto e compreendido no sistema jurídico. Evidentemente, na idade contemporánea nao há mais falar em submissáo de pessoas, senáo de coisas, dada a elevacáo da liberdade individual á condicáo de direito fundamental. As servidoes, no ámbito das coisas, estabelecem-se entre predios. Predio, segundo a nomenclatura adotada pelo legislador, designa os imóveis em geral, pouco importando sua estrutura ou localizacáo. Qualquer imóvel é um predio. Predio edificado, predio nao edificado, predio urbano e predio rústico sao denominacóes encontradizas ñas leis em geral e outra coisa nao significam além de um bem imóvel.Page 89

Cuidando-se de direitos constituidos sobre coisa alheia, necessariamente um predio alheio, as servidóes restringem o uso desse imóvel. Em outras eras falava-se de servidóes prediais e de servidóes pessoais. As primeiras eram as que se estabeleciam para o incremento de um imóvel determinado; as segundas as que se firmavam em favor de urna pessoa determinada. Nestas se enquadravam o usufruto, o uso e a habitacáo; naquelas, as servidóes propriamente ditas. Hoje, usufruto, uso e habitacáo nao mais sao vistos como servidóes, sem embargo de seguirem como direitos reais limitados. As servidóes de hoje só se perfazem entre predios, estabelecendo restricoes em um para serventía de outro. Logo, tornou-se pleonástica a fórmula "servidóes prediais", no que andou bem o Código de 2002 ao estabelecer a expressáo "servidóes" apenas, tal como se vé dos arts. 1378 e ss.

Instituto dos mais antigos, as servidóes partem da constatacáo de que o uso e a fruicáo dos imóveis nem sempre podem propiciar ao titular as vantagens que este almeja. Determinado fundo rural, que explora laranjais, nao dispóe de agua bastante para suas necessidades; outro, que faz colheita periódica de graos, apresenta problemas para escoá-los; um imóvel urbano edificado, localizado na orla marítima, permite bela paisagem do océano, mas a construcáo de um muro, pelo vizinho, pode eliminar essa comodidade. Nestes exemplos, os proprietários poderáo suprir as carencias ou manter a comodidade de seus respectivos predios valendo-se dos imóveis vizinhos. Destarte, no primeiro exemplo, o dono dos laranjais obtém autorizacáo para captar agua do imóvel vizinho; no segundo, o proprietário consegue o direito de passagem no fundo contiguo para melhorar o escoamento da safra e, no último, o dono do predio urbano obtém a obrigacáo do vizinho de nao erguer muro ácima de determinada altura. Tais utilidades, obtidas em favor de um predio a custa do sacrificio de outro, sao servidóes.

As servidóes podem ser conceituadas como restricoes suportadas por um predio para utilidade de outro, pertencente a dono diverso. O imóvel que as suporta é o "predio serviente", assim chamado por achar-se sujeito ao uso e gozo exercidos pelo dono do imóvel alheio. O imóvel em cujo proveito elas se fazem é o "predio dominante", que recebe essa denominacáo por sujeitar o outro as restricoes. Tal conceituacáo transparece da primeira parte do art. 1378 do Código:Page 90 "a servidáo proporciona utilidade para o predio dominante, e grava o predio serviente, que pertence a diverso dono [...]".

Uma vez constituidas, as servidoes geram direitos reais, oponíveis contra todos e acompanhando o imóvel gravado. A alienacáo do predio serviente nao as extingue, portante Quem quer que o adquira, deverá suportar o grávame.

Nao há divergencia doutrinária em torno do conceito de servidáo. A manualística a vislumbra com um direito real sobre coisa alheia, exercido por proprietário ou possuidor de um imóvel, porém sempre vinculando dois ou mais predios. Cabal a conceituacáo apresentada Spencer Vampré (1920, página), para quem as servidoes sao: um direito real, voluntariamente imposto a um predio em favor de outro, e em virtude do qual perde o proprietário do primeiro o exercício de algum direito dominial, ou é obrigado a tolerar que dele se utilize o proprietário do segundo, tornando este último mais útil ou, pelo menos, mais agradável.

Da conceituacáo extrai-se a finalidade das servidoes. Seu objetivo é o de tornar mais útil, cómodo ou agradável o predio dominante. A finalidade lucrativa nao é requisito basilar, embora seja a causa mais freqüente de sua constituicáo. Basta o grávame propiciar uma vantagem ao predio dominante, qualquer que seja ela, para justificar sua instituicáo. Nos exemplos ácima citados, nao se vislumbra nenhum propósito lucrativo na nao construcáo do muro divisorio. Ali interessa apenas o deleite do proprietário e dos possuidores do predio dominante.

Assentado que as servidoes destinam-se a suprir as carencias de determinado imóvel, ainda que com restricóes a outro, nelas se pode entrever uma vocacáo social. Para San Tiago Dantas (1984, p. 316), cuida-se de "um meio de que se serve o direito para corrigir a desigualdade natural entre os predios". Se a natureza os fez desiguais, de forma que um seja mais aquinhoado do que o outro, estabelece-se um desequilibrio natural e a necessidade de atenuá-lo, para que cada um dos predios possa, na medida do possível, atingir sua potencialidade. A busca desse equilibrio e o equacionamento dos interesses entre os proprietários permitem qualificar as servidoes como portadoras de uma funcáo social. Que elas se facam quase sempre por contrato, gratuito ou oneroso, é de somenos importancia e nao infirma essa conclusáo.Page 91

Nessa linha de raciocinio, Ricardo Aronne (2001, p. 330) assevera que as servidóes sao "um instituto que traz urna órbita de funcionalizacáo ao predio serviente, ao possibilitar que o predio dominante melhor atenda a funcáo social, ampliando seu dominio com parcela dominial do predio serviente". Disso se extraem duas conclusóes importantes: primeiro, a afirmacáo, amplamente divulgada e aceita pela doutrina e pelos tribunais, de que as servidóes sao urna relacáo entre predios, deve ser vista com cautela, na medida em que sao feitas por pessoas e para acudir a interesses délas (lembre-se aqui da obrigacionalizacáo dos direitos reais); segundo, a existencia das servidóes atende ao principio cardeal da socialidade, um dos pilares da codificacáo de 2002 e que prevé um ideal de cooperacáo entre os atores sociais, vale dizer entre os proprietários.

Tais assercóes, dotadas de alta carga valorativa, servem de guia na análise do instituto, que, porquanto jungido a órbita das titularidades privadas, deve ser estudado sob a ótica da funcionalizacáo.

3 Escorço histórico

As servidóes existem desde priscas eras, apresentando-se como um dos mais antigás formas de constituicáo de poder sobre coisas e um dos fenómenos jurídicos que menos alteracóes sofreram na historia. A Lei das XII Tábuas1 (450 a.C.) já as contemplava, embora limitándose aos predios rústicos. Dentre outras disposicóes, a Tábua VII continha regras sobre as servidóes de passagem e de aqueduto, além de garantir indenizacáo pelos danos causados pelo dono do predio dominante. As servidóes urbanas só apareceriam por volta de 490 a.C, quando da destruicáo de Roma pelos gauleses. Destacam-se as servidóes de vista, de esgoto e de passagem. Urna das características da servidáo romana dos primeiros tempos é a tipicidade, o que vale dizer nao ser lícita a constituicáo de servidóes nao previstas em lei.

A codificacáo justinianéia (528-534 d.C.) nao altera substancialmente o panorama geral, protegendo as servidóes rústicas e prediais. Mas já admite a constituicáo de servidóes atípicas, segundo a conveniencia das partes. A essa época já se conheciam, além dasPage 92 modalidades mencionadas, as servidoes de tapagem, de deitar goteiras no predio vizinho, de extrair areia, de nao edificar, de travejar etc. Todas essas formas perduram até os dias de hoje, embora algumas délas tenham sido deslocadas para o regime de vizinhanca, formando o que alguns impropriamente denominam "servidoes legáis".

A Idade Media assiste ao atrofiamento das servidoes, na esteira da politizacáo do direito de propriedade, que perde sua significacáo económica para tornar-se expressáo de poder político. Na verdade, as servidoes sempre estiverem umbilicadas a propriedade e variaram segundo se alterava a concepcáo político-económica do dominio. Natural, portante, que seu regime tenha acompanhado a idiossincrasia...

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