Serviços públicos essenciais (água) fornecidos por empresa concessionária - direito ao corte por falta de pagamento

AutorHaroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Páginas177-201

Page 177

REsp 337.956-MG - 2S Turma do STJ Rela.: Ministra Eliana Calmon j. 2.9.2003 DJU 20.10.2003

Serviço público. Fornecimento de água. Corte por falta de pagamento. Admissibilidade. Prestação do serviço por concessionária. Natureza de direito privado. Pagamento feito sob a modalidade de tarifa que não se classifica como taxa. Circunstância em que o valor pago é considerado contraprestação, podendo haver a interrupção em caso de inadimplemento.

Ementa da vedação: A relação jurídica, na hipótese de serviço público prestado por concessionária, tem natureza de direito privado, pois o pagamento é feito sob a modalidade de tarifa, que não se classifica como taxa. Nas condições indicadas, o pagamento ê contraprestação, e o serviço pode ser interrompido em caso de inadimplemento.

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos os autos, acordam os Ministros da 2- T. do STJ, por maioria, vencido O Sr. Min. Paulo Me-dina, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra-Re-latora. Os Srs. Ministros Franciulli Neto e Francisco Peçanha Martins votaram com a Sra. Ministra Eliana Calmon.

Não participaram do julgamento os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Castro Meira.

Brasflia-DF, 2 de setembro de 2003.

Eliana Calmon, Relatora.

Relatório

A Exma. Sra. Ministra Eliana Calmon (Relatora): Trata-se de recurso especial interposto contra acórdão do TJMG que entendeu haver permissão legal para a suspensão dos serviços de água por falta de pagamento, vez que a concessionária advertiu a usuária da suspensão do fornecimento caso não quitasse a dívida.

Alega a recorrente, com fulcro nas alíneas a c c do permissivo constitucional, violação aos arts. 22 e 42 da Lei 8.078/1990, bem como a ocorrência de dissídio jurisprudência!.

Sustenta que os mencionados dispositivos legais asseguram aos cidadãos servi-

Page 178

ços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos, bem como, na cobrança de débitos, a não-exposição do consumidor a ridículo e a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Com as contra-razões, subiram os autos.

É o relatório.

Voto

A Exma. Sra. Ministra Eliana Cal-mon (Relatora): No suporte fático da ação mandamental que deu origem a esse processo, temos consumidora de água que, embora sem queixas quanto à qualidade do serviço, está sem pagar as contas de consumo, desde maio/1999, em razão de dificuldades financeiras, visto ser viúva e estar desempregada. A empresa concessionária cobrou-a por diversas vezes, até que, em junho/1999, interrompeu o fornecimento.

A consumidora impetrou mandado de segurança alegando agressão a direito líquido e certo, garantido pelos arts. 22 e 42 do CDC, os quais asseguram a continuidade do serviço.

Com base em precedentes do STJ, a segurança foi concedida em primeiro grau por entender o magistrado ilegal o corte no fornecimento de água, porque, em se tratando de relação de consumo de serviços essenciais, está obrigado o Poder Público a manter o fornecimento de água compul-soriamente, até mesmo a título gratuito, a quem não pode pagar.

Houve recurso e o TJMG reformou o julgamento, ao entendimento de que ine-xiste regra no Código de Defesa do Consumidor que Autorize o fornecimento gratuito do serviço de água, invocando o art. 6-, § 3e, H, da mesma Lei 8.987/1995, o qual permite a suspensão do fornecimento de serviços em caso de inadimplência,

A jurisprudência desta Corte, pela 1° T., vem entendendo ser indevida a cessação dos serviços essenciais, tais como fornecimento de água, luz e telefone, devendo as empresas concessionárias procurar cobrar as contas em atraso pelos meios adequados, sem solução de continuidade do serviço essencial. Nesse entendimento foi decidido o REsp 353.796-MA, cuja ementa bem retrata a posição da ls T:

Direito do consumidor. Energia eié-trica. Interrupção do fornecimento. Arts. 22 e 42 da Lei 8.078/1990 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor).

  1. Recurso especial interposto contra acórdão que entendeu ser ilegal o corte de fornecimento de energia elétrica, em face do não pagamento de fatura vencida.

  2. O art, 22 do CDC, assevera que "os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais contínuos". O seu parágrafo único expõe que "nos casos de des-cumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados na forma prevista neste Código",

  3. Já o art. 42 do mesmo diploma legal, não permite, na cobrança de débitos, que o devedor seja exposto ao ridículo, nem que seja submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

  4. Caracterização do periculum in mora e áofmnus boni iuris para sustentar deferimento de ação com fim de impedir suspensão de fornecimento de energia a uma empresa.

  5. Juízo emitido no âmbito das circunstâncias supra-reveladas que se prestigia.

  6. Recurso especial improvido (1- T, REsp 353.796-MA, Rei, Min. José Delgado, unânime, 07 4,3.2002).

    No mesmo sentido são os julgados que vão transcritos nas ementas;

    Corte do fornecimento de água. Ina-dimpiência do consumidor. Ilegalidade.

  7. É ilegal a interrupção no fornecimento de energia elétrica, mesmo que

    Page 179

    inadimplente o consumidor, à vista das disposições do Código de Defesa do Consumidor que impedem seja o usuário exposto ao ridículo.

  8. Deve a concessionária de serviço público utilizar-se dos meios próprios para receber os pagamentos em atrasos.

  9. Recurso não conhecido (l3 T.T REsp 122.812-ES, Rei. Min. Milton Luiz Pereira, unânime, DJ 26.3.2001),

    Serviço público. Energia eléirica. Corte no fornecimento. Ilicitude.

    I - É viável, no processo de ação indenizaíória, afirmar-se, incidentemente, a ineficácia de confissão de dívida, à míngua de justa causa.

    II - É defeso à concessionária de energia elétrica interromper o suprimento de força, no escopo de compelir o consumidor ao pagamento de tarifa em atraso, O exercício arbitrário das próprias razões não pode substituir a ação de cobrança (\- T, REsp 223.778-RJ, Rei. Min. Humberto Gomes de Barros, unânime,DJ I3.3.2O0O).

    Administrativo. Agravo regimental. Recurso especial. Energia elétrica. Serviço público essencial. Corte de fornecimento. Consumidor inadimplente. Impossibilidade.

    - Esta Corte vem reconhecendo ao consumidor o direito da utilização dos serviços públicos essenciais ao seu coti-diano, como o fornecimento de energia elétrica, em razão do princípio da continuidade (CDC, art. 22).

    - O corte de energia, utilizado pela companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa em atraso, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adim pie mento do débito,

    - Precedentes.

    - Agravo regimental improvido(l8 T, AgREsp 298.017-MG, Rei. Min. Francisco Falcão, unânime, DJ 27.8.2001).

    Agravo regimental contra liminar que determinou à empresa concessionária a continuação da prestação de serviços de fornecimento de energia elétrica. Consumidor, "in casu", o Município, que repas-sa a energia recebida aos usuários de serviços essenciais.

    Consoante jurisprudência iterativa do E. STJ, a energia é um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.

    O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade, uma vez que o direito de o cidadão se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vi da em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.

    O corte de energia autorizado pelo Código de Defesa do Consumidor e legislação pertinenteé previstou/isinguli, vale dizer: da concessionária versus o consumidor isolado e inadimplente; previsão inextensível à Administração Pública por força do princípio da continuidade, derivado do cânone maior da supremacia do interesse público.

    A mesma razão inspira a interpretação das normas administrativas em prol da Administração, mercê de impedir, no contrato administrativo a alegação da ex-ceptio inadimpleti contractus para paralisar serviços essenciais, aliás inalcançáveis até mesmo pelo consagrado direito constitucional de greve.

    A sustação do fornecimento previsto nas regras invocadas pressupõe inadim-plemento absoluto, fato que não se verifica quando as partes reconhecem relações de débito e crédito, recíprocas e controversas, submetidas à apreciação jurisdicional em ação ordinária travada entre agravante e agravado.

    O corte de energia em face do Município e de suas repartições atinge serviços públicos essenciais, gerando expressiva situação de periclitaçâo para o direito dos munícipes. Liminar obstativa da interrupção de serviços essenciais que por si só denota da sua justeza.

    Decisão interlocutória gravosa cuja retenção do recurso pode gerar situações

    Page 180

    drásticas de periculum in mora para a co-letividade local.

    Agravo desprovido (1 - T., AgRgMC 3.982-AC, Rei. Min. Luiz Fux, unânime, 07 25.3.2002).

    Embora sejam os precedentes relativos a energia elétrica, entendo que se prestam para reiratar o entendimento jurisprudência! que se estende à questão do fornecimento de água, também considerado serviço essencial.

    Como se vê, o embasamento legal das decisões está nos arts. 22 e 42 do CDC, Lei 8.078, de 11.9.1990.

    Para melhor interpretação da matéria, no momento cm que a 2S Turrcia a examina pela primeira vez, vale a pena transcrever o art. 22:

    Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, per-missionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros c, quanto aos essenciais, contínuos.

    Parágrafo único. Nos casos de des-cumprimento, total ou parcial, das obrigações...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT