Para que serve ser uma pessoa no Direito? Dialogos no campo critico/For what does it serve to be a person on Law? Dialogues on the critical Field.

Autorda Silva, Simone Schuck

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Se entendemos o sujeito de direitos como uma ficcao construida pela gramatica juridica, precisamos considerar a possibilidade de sua destruicao. E nesse caso e relevante questionar: para que serve ser uma pessoa no direito? A partir de um debate com a obra de Evguieni Pachukanis, referencia para os trabalhos de critica do direito no Brasil, construiremos outra visao da ideia de pessoa no direito para demonstrar seu potencial critico. Para realizar esta tarefa, o trabalho promovera um dialogo entre as perspectivas criticas sobre direito, autonomia e processos de subjetivacao de Franz Neumann, Michel Foucault e Judith Butler.

Os conceitos pessoa, personalidade juridica e sujeito de direitos se confundem em diversas formulacoes juridicas. Como o direito liberal moderno e construido nas bases do direito romano classico, uma perspectiva civilista tende a compreender a ideia de pessoa como sujeito das relacoes juridicas, ou seja, ente com capacidade juridica de reivindicar direitos e ser responsabilizado por deveres. Essa concepcao possibilita, por exemplo, a inclusao de entes patrimoniais como a pessoa juridica no processo de responsabilizacao viabilizado pelo direito. Mas vieses constitucionalistas concebem a pessoa tambem como cidada, pela sua possibilidade de participar ativamente nos processos de construcao das normas e instituicoes do direito. Em termos de uma teoria critica do direito, consideramos ambas as perspectivas, ou seja, a pessoa como centro de imputacao de responsabilidade e de reivindicacao de direitos e a pessoa como centro de producao das normas e das instituicoes que organizam a vida em sociedade. Em outras palavras, a pessoa e compreendida como centro do direito em razao das caracteristicas da gramatica juridica ocidental.

O uso de apenas um dos termos por juristas, portanto, tende a significar tanto uma compreensao nao explicitada de que se tratam de sinonimos ou mesmo pode marcar uma visao teorica, uma perspectiva sobre o papel da pessoa no direito, como apresenta o civilista Hans Hattenhauer (1987). O autor demonstra como a ausencia do termo "pessoa" nas producoes legislativas no regime nazista alemao marcou a conviccao de que o individuo era apenas uma "funcao de condicionante social". O Reich nao desejava prescindir da forca de trabalho de pessoas comunistas e judias, mas pretendia extirpar seus direitos politicos para impossibilitar suas reivindicacoes e sua participacao na construcao das normas juridicas. Esse ambito de "nao-pessoas", como afirma Hattenhauer, aumentou com o passar da Segunda Guerra Mundial para incluir todos a quem Hitler queria matar. Pessoas que eram consideradas pessoas no direito apenas quanto a utilizacao de sua forca de trabalho.

Um dos objetivos deste trabalho e demonstrar como a teoria de direito desenvolvida por Evguieni Pachukanis restringe o papel da pessoa no direito por ignorar sua participacao na construcao das normas juridicas, funcao propria da gramatica do direito. Os termos utilizados neste trabalho, portanto, poderao ser pessoa, personalidade juridica ou sujeito de direitos, mas sempre com o objetivo de designar o ser humano, compreendido por uma teoria critica do direito como este nucleo individual e autonomo ao qual se pode imputar responsabilidades, direitos, reivindicacoes e que esta legitimado a tomar parte na producao de normas sociais.

O trabalho tambem pretende analisar como a visao do direito de Pachukanis nao considerou a ambiguidade dos efeitos juridicos resultantes dos processos de racionalizacao e descentralizacao do poder politico no ocidente moderno capitalista. Esses processos tornaram nossas sociedades contemporaneas mais complexas e plurais, sociedades nas quais ser pessoa no direito adquire um potencial critico fundamental. Em sociedades marcadas pela presenca de diversas formas de vida, religiosidade, sexualidade e cultura, por exemplo, ser uma pessoa de acordo com a gramatica juridica viabiliza, como veremos, uma forma importante de lidar com as diferencas na sociedade.

As criticas realizadas neste trabalho as formulacoes de Pachukanis foram elaboradas a partir de um dialogo com Neumann, Foucault e Butler tendo em vista a construcao de uma visao critica do direito. Nao se trata aqui de exaurir as extensas criticas ja realizadas aos trabalhos do autor em diversas obras, como as de Marcio Bilharino Naves, Vitor Bartoletti Sartori, Sonja Buckel, Oskar Negt, Michael Herinrich e Ingo Elbe. A pretensao do trabalho e analisar as possibilidades construidas pela ideia de pessoa no direito a partir da identificacao de uma diferenca entre sua concepcao pela tradicao critica aberta por Evguieni Pachukanis e a teoria critica do direito apresentada neste texto.

Na primeira parte deste trabalho, analisamos as ideias de Evguieni Pachukanis sobre a vinculacao da ideia de sujeito de direitos como proprietario e sua proposta de uma economia planificada e de uma esfera de poder unificada. Para o autor, as diferencas sociais estao fundamentadas na economia capitalista de trocas e na propriedade privada. As disputas entre os sujeitos de direito, portanto, estao sempre relacionadas a uma relacao economica no contexto da sociedade burguesa. A forma juridica e sua ideia de sujeito de direitos, para Pachukanis, seriam dispensaveis em uma sociedade de economia planificada.

Ja na segunda parte do artigo, partimos das contribuicoes da obra de Franz Neumann para apresentar brevemente o processo de racionalizacao social do periodo moderno e indicar o processo de centralizacao do direito como criterio normativo para a organizacao da sociedade. Tambem faremos um breve esboco sobre a relacao entre as demandas burguesas e a formacao do Estado de Direito, a qual abriu espaco para as reivindicacoes de pessoas proletarias em razao da promessa de igualdade perante a lei. Seguindo por esta via, analisaremos a formacao de um aspecto emancipatorio do direito a partir da ideia de pessoa, cuja principal caracteristica e a possibilidade de responsabilizacao pela dominacao nas relacoes sociais. Por fim, examinamos os problemas para a autonomia das pessoas em uma gramatica juridica constituida a partir das caracteristicas do institucionalismo ou do comunitarismo.

Na terceira parte, com base nas elaboracoes de Michel Foucault e Judith Butler, investigamos os sentidos e a importancia da relacao do sujeito de direitos com as normas juridicas enquanto uma operacao critica, de resistencia e de realizacao da autonomia em uma sociedade cujo poder circula entre as pessoas. O argumento e formulado na pratica de uso da gramatica juridica com a pretensao de modifica-la. Em certo sentido, a pessoa e interpelada pelo direito a produzir-se nos termos de sua gramatica. E apesar desta gramatica disponibilizar os termos para os processos de subjetivacao dos sujeitos, as pessoas nao necessariamente constroem sua subjetividade restrita a eles, o que materializa uma pratica de critica com as normas juridicas.

Analisamos as implicacoes de o sujeito reivindicar-se no Estado de Direito em seu proprio processo de subjetivacao. Ao final, examinamos o processo de subjetivacao como uma atitude critica do sujeito em relacao ao dominio juridico a partir do dominio de liberdade subjetiva. Propomos entao analisar o direito a partir de suas duas gramaticas, a gramatica de regras e a gramatica da regulacao social, cuja ampla possibilidade de critica viabiliza uma forma de reivindicacao dos sujeitos em que a ideia juridica de pessoa e fundamental para impulsionar processos de formulacao autonoma e constante de criterios normativos fundamentado democraticamente na igualdade dos sujeitos.

1 Evguieni Pachukanis e o sujeito de direitos como proprietario

A proposta juridica de Evguieni Pachukanis se refere a uma sociedade de economia planificada unitaria, diferente da sociedade capitalista de sua epoca e das sociedades atuais. Nessa sociedade de economia planificada, nao ha espaco para o sujeito de direitos. A pessoa nao exerce nenhuma funcao juridica na condicao de individuo autonomo, mas apenas como parte de uma comunidade, o proletariado. O sujeito de direitos so exerce uma funcao em sociedades capitalistas, como Pachukanis expoe em sua principal obra, Teoria geral do direito e marxismo. Nesse trabalho, Pachukanis constroi uma critica ao direito liberal da sociedade burguesa a partir de sua leitura da obra de Karl Marx.

O sujeito de direito na obra de Pachukanis (2017, p. 60) "possui uma relacao extremamente proxima com os proprietarios de mercadoria", ou seja, ha uma identificacao entre ser sujeito de direitos e ser proprietario de mercadorias. Ser uma pessoa de direito e ser proprietario (CASALINO, 2018). Esse mesmo "profundo vinculo interno entre a forma do direito e a forma da mercadoria" (PACHUKANIS, 2017, p. 80) nao seria encontrado em uma sociedade de economia planificada, pois nao haveria propriedade privada. Sem propriedade privada, nao faria sentido qualificar as pessoas como proprietarias, e entao o sentido de ser um sujeito de direito para Pachukanis se perde. Em outras palavras, nao haveria a necessidade de ser sujeito de direito em uma sociedade sem propriedade privada como uma sociedade de economia planificada (PACHUKANIS, 2018). Conforme Bruno Cava (2013, p. 37), Pachukanis entendia que era necessario substituir a forma direito por outros aspectos capazes de levar a sociedade a um patamar moral e produtivo mais elevado, como "uma sociedade baseada na distribuicao racional de recursos e produtos, numa racionalidade cientifica e numa pedagogia humanizante".

Essa perspectiva de sujeito de direito de Evguieni Pachukanis esta intimamente relacionada com sua visao juridica. Para o autor, o direito existe apenas em razao da relacao de troca mercantil estabelecida pela economia capitalista, e o sujeito de direitos esgota seu sentido como meio para a circulacao de mercadorias. Sua expectativa e que a forma juridica perdure apenas ate a realizacao da "tarefa de construcao de uma...

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