Saúde do trabalhador: direito fundamental e sua eficácia horizontal em face das empresas. Consequências práticas

AutorIleana Neiva Mousinho
CargoProcuradora-Chefe da Procuradoria Regional do Trabalho da 21ª Região, Mestre em Direito Constitucional
Páginas13-37

Page 14

1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 tem como centro axiológico a proteção aos direitos fundamentais, sendo pródiga nessa enunciação ao longo do seu texto.

Assim, não somente os direitos elencados no art. 5º da Constituição Federal apresentam a nota da fundamentalidade, mas todos aqueles que dimanam do princípio da dignidade humana, valor-fonte de todo o ordenamento jurídico do Estado Democrático de Direito.

Não há dúvida, pois, que há direitos fundamentais previstos em outros artigos da Constituição, além daqueles explicitamente previstos no art. 5º, pois, de forma expressa, o § 2º, do mesmo artigo, estatui que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Nessa ordem de ideias, o direito à saúde do trabalhador, conquanto inserido fora do catálogo do art. 5º, tem previsão nos arts. 7º, inciso XXII, e 200, inciso VIII, tratando-se de um direito fundamental que deflui diretamente do princípio da dignidade humana. E, sendo direito fundamental, impõe-se a sua aplicabilidade imediata, nos termos do § 1º, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988.

Com efeito, a norma do art. 5º, § 1º, da Constituição Federal impõe aos órgãos estatais a tarefa de aumentar a eficácia dos direitos fundamentais1, e ao Poder Judiciário, como poder estatal, compete a responsabilidade pela

Page 15

concretização daqueles direitos e a tarefa de afastar qualquer interpretação restritiva, que, em vez de aumentar a eficácia dos direitos fundamentais, restrinja-lhes a eficácia.

2. A eficácia dos direitos fundamentais

Os direitos fundamentais, porque positivados em normas jurídicas, têm, naturalmente, eficácia jurídica, que “é o atributo associado às normas e consiste naquilo que se pode exigir, judicialmente se necessário, com fundamento em cada uma delas”.2

Essa qualidade da norma, de produzir efeitos, realiza-se no plano vertical (quando impõe tarefas ao Estado) e no plano horizontal (quando determina comportamentos comissivos ou omissivos aos particulares).

Assim, a doutrina refere-se à existência de eficácia jurídica vertical e eficácia jurídica horizontal dos direitos fundamentais.3

A chamada “eficácia horizontal” é uma das consequências de um fenômeno muito mais amplo, fruto do reconhecimento de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais e da evolução do modelo de Estado.

Com efeito, no Estado Liberal, os direitos fundamentais eram vistos na sua dimensão subjetiva, cuja perspectiva identificava quais pretensões o cidadão poderia exigir do Estado, em face de uma norma jurídica. No Estado Liberal, essa era a única dimensão vislumbrada.

Todavia, com a evolução do modelo de Estado Constitucional, surgindo o Estado Social de Direito e, posteriormente, evoluindo-se para o Estado Demo-crático de Direito, emergiu uma nova dimensão dos direitos fundamentais — a dimensão objetiva, que passou a ver naqueles direitos não apenas a possibilidade de exigência de prestações diante dos poderes estatais, mas a entendê-los como direitos que consagram os valores mais importantes de uma comunidade jurídica e, por isso:

A dimensão objetiva catapulta os direitos fundamentais para o âmbito privado, permitindo que estes transcendam o domínio das relações entre

Page 16

cidadão e Estado, às quais estavam confinadas pela teoria liberal clássica. Reconhece-se então que tais direitos limitam a autonomia dos atores privados e protegem a pessoa humana da opressão exercida pelos poderes sociais não estatais, difusamente presentes na sociedade contemporânea.4

A consagração explícita da dimensão objetiva dos direitos fundamentais5 ocorreu sob a égide da Lei Fundamental de Bonn, no julgamento do caso Lüth, pela Corte Constitucional Alemã, em 1958. Nesse julgamento, evidenciou-se o aspecto da dimensão objetiva dos direitos fundamentais a produzir uma eficácia jurídica interpretativa, ou seja, uma eficácia jurídica originada a partir da interpretação constitucional.

Tratava-se de um julgamento sobre a legitimidade de um boicote, proposto pelo Clube de Imprensa de Hamburgo, cujo presidente era Erich Lüth, a um filme dirigido pelo cineasta Veit Harlan, de passado nazista. Antes de chegar à Corte Constitucional, a lide havia sido dilucidada à luz do Código Civil Alemão, pela Justiça Estadual de Hamburgo, que determinou a cessação do boicote e a indenização à produtora e à distribuidora do filme.

Irresignado com o julgamento, Lüth interpôs queixa constitucional para o Tribunal Constitucional, que acolheu o recurso sob o fundamento de que as normas de direito privado devem ser interpretadas ao lume da ordem de valores sobre a qual se assenta a Constituição, levando em conta os direitos fundamentais, o que não fora feito pelo Tribunal Estadual de Hamburgo.

Colhe-se, do paradigmático acórdão, o seguinte trecho:

(...) a Lei Fundamental não é um documento axiologicamente neutro. Sua seção de direitos fundamentais estabelece uma ordem de valores, e esta ordem reforça o poder efetivo desses direitos fundamentais. Este sistema de valores, que se centra na dignidade da pessoa humana, em livre desenvolvimento dentro da comunidade social, deve ser considerado como uma decisão constitucional fundamental, que afeta a todas as esferas do direito público ou privado. Ele serve de metro para aferição e controle de todas as ações estatais nas áreas de legislação, administração e jurisdição. Assim, é evidente que os é evidente que osé evidente que os é evidente que osé evidente que os direitos fundamentais também influenciam o desenvolvimento do direitos fundamentais também influenciam o desenvolvimento dodireitos fundamentais também influenciam o desenvolvimento do direitos fundamentais também influenciam o desenvolvimento dodireitos fundamentais também influenciam o desenvolvimento do direito privado. Cada preceito do direito privado deve ser compatível direito privado. Cada preceito do direito privado deve ser compatíveldireito privado. Cada preceito do direito privado deve ser compatível direito privado. Cada preceito do direito privado deve ser compatíveldireito privado. Cada preceito do direito privado deve ser compatível com esse sistema de valores e deve ser interpretado à luz desse com esse sistema de valores e deve ser interpretado à luz dessecom esse sistema de valores e deve ser interpretado à luz desse com esse sistema de valores e deve ser interpretado à luz dessecom esse sistema de valores e deve ser interpretado à luz desse espírito
espíritoespírito
espírito
espírito.6 (Sem destaques no original).

Page 17

Nesse passo, esclarece Daniel Sarmento que o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais “significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, para o administrador e para o Judiciário”. Aduz que a eficácia irradiante tem na interpretação conforme a Constituição um dos seus mais férteis instrumentos e impõe uma nova leitura de todo o direito positivo, pois, por intermédio dela, “os direitos fundamentais deixam de ser concebidos como meros limites para o ordenamento e se convertem no norte do direito positivo, no seu verdadeiro eixo gravitacional”.7

Autores de nomeada, como Luís Roberto Barroso e Clèmerson Merlin Clève, discorrem sobre os efeitos dessa eficácia irradiante dos direitos fundamentais, referindo-se, o primeiro, à necessidade de reinterpretação dos institutos de outros “ramos” do Direito, sob uma ótica constitucional; e o segundo, à incidência sobre o direito infraconstitucional dos valores substanciais da Constituição.8

3. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais e a sua eficácia entre particulares (eficácia horizontal)

Além da eficácia irradiante, um outro efeito da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é a chamada eficácia horizontal, que consiste na repercussão deste direitos diretamente sobre as relações jurídico-privadas. Em outras palavras, afirma-se que os direitos fundamentais podem ser diretamente invocados nas relações privadas.

Nesse diapasão, a Constituição Portuguesa, no art. 18.1, dispõe que as normas jusfundamentais relativas aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis, vinculando as entidades públicas e privadas. Reconhece, a doutrina lusitana, a eficácia direta e imediata dos direitos de personalidade, naquelas relações entre particulares em que uma parte (um indivíduo ou uma organização) dispõe de um poder especial sobre a outra parte, como sucede nas relações laborais.9

Se em outros países, em face da forma de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT