Right to prior consultation to indigenous peoples in Brazil/Direito a consulta previa aos povos indigenas no Brasil.

AutorPeruzzo, Pedro Pulzatto

1--Introducao (1)

Este artigo e resultado da consolidacao de reflexoes que orientaram uma tese de doutorado desenvolvida na Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo e de uma experiencia pessoal que vivenciamos como advogado junto a movimentos indigenas, situacao que nos permitiu atuar em consultas juridicas formuladas por grupos que buscavam alcancar no Direito estatal um espaco legitimo para as suas diferencas.

Durante o tempo em que estivemos pesquisando e atuando junto aos movimentos sociais, percebemos que o metodo tradicionalmente empregado para criar, interpretar e aplicar o Direito nao se preocupava, ou se preocupava muito pouco, com a necessidade de assegurar a participacao desses povos nas tomadas de decisao a respeito de suas vidas, repetindo, assim, uma logica de opressao iniciada com a estruturacao do Estado colonial. A restricao participativa nos processos de elaboracao e aplicacao do Direito oficial se apresentou como o principal fator responsavel pela pouca correspondencia entre a perspectiva garantidora de direitos fundamentais estampada no texto constitucional e as expectativas dos povos indigenas enquanto grupos minoritarios.

No inicio da nossa pesquisa ouvimos liderancas populares sustentando categoricamente que o Direito oficial jamais deixaria de ser um instrumento de opressao e que, por isso, nao valeria a pena fazer nenhum tipo de luta atraves do Direito. Por outro lado, tambem nos deparamos com liderancas e grupos indigenas buscando fortalecer suas lutas por direitos a partir do proprio Direito, das categoriais e das instituicoes oficiais (2). Nesse sentido, o problema que nos foi colocado foi o seguinte: "E possivel considerar os interesses das minorias nos processos de elaboracao, interpretacao e aplicacao do Direito oficial, superando o metodo tradicional (3) que se reproduz ainda hoje pela ideia do assimilacionismo e da homogeneidade no sentido da consolidacao de outra nocao de Direito que afirme e promova as diferencas como direitos humanos fundamentais"?

Diante desse problema, considerando nossa experiencia no campo e a Constituicao de 1988 como um documento politico que afirma as diferencas, assumimos como hipotese de pesquisa a possibilidade de um dialogo nao violento que, ao inves de engessar, pudesse assegurar e promover as diferencas na construcao, na interpretacao e na aplicacao do Direito oficial. Nessa linha, nosso trabalho foi desenvolvido no sentido de 1--demonstrar que a Constituicao de 1988 afirma e exige a promocao das diferencas de grupos culturalmente diferenciados como direito fundamental e tambem no sentido de 2--demonstrar que o dialogo intercultural nao violento e um processo possivel, o que fizemos tomando como referencia o procedimento da consulta previa.

A respeito da validacao constitucional das diferencas, vale registrar que logo no primeiro artigo da Constituicao de 1988 o legislador constituinte afirmou que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituicao. Alem disso, o constituinte originario tambem fixou como objetivo da Republica Federativa do Brasil a construcao de uma sociedade livre, justa e solidaria (artigo 3[degrees], inciso I) e a promocao do bem de todos, sem preconceito de origem, raca, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminacao (artigo 3[degrees], inciso IV).

De mais a mais, fundamental considerar que o artigo 216 da Constituicao diz que constituem patrimonio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referencia a identidade, a acao, a memoria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressao e os modos de criar, fazer e viver. Alem disso, o artigo 231 tambem reconhece aos povos indigenas sua organizacao social, costumes, linguas, crencas e tradicoes.

Esses dispositivos constitucionais nao apenas reconhecem a pluralidade do povo brasileiro, mas tambem avancam em relacao a ideia reducionista e equivocada que entende a democracia como simples vontade da maioria e consagra uma concepcao democratica que se preocupa com o bem de todos, sem exclusao de ninguem, instituindo, assim, uma base importante para a leitura mais participativa e aberta do ordenamento juridico.

A respeito da consulta previa como uma forma de promover dialogos interculturais nao violentos, a tese que sustentamos aqui considera a consulta como instrumento de fortalecimento da democracia participativa e de inclusao de grupos culturalmente diferenciados, exprimindo a ideia de cidadania ativa, inclusao nas deliberacoes publicas e protagonismo da soberania popular. Em outros termos, a ideia central busca declarar a crise e a insuficiencia da nocao tradicional de democracia representativa partindo da experiencia e do legado modernos ao manter o lugar da politica representativa, por um lado, e, por outro lado, propor medidas para enraizar a participacao popular organizada e voltada aos interesses de realizacao de direitos e promocao de justica.

Para isso, nos valemos da nocao habermasiana do agir comunicativo que, mais do que exigir consenso, trabalha com a proposta do entendimento nos processos de dialogo e negociacao das regras que orientarao a convivencia em um mesmo espaco geografico e politico. A esse respeito, esclarece Eduardo Carlos Bianca Bittar:

O cerne da teoria do agir comunicativo nao e a producao necessaria do consenso. Haja ou nao consenso, a busca do entendimento corresponde a caracteristica propria do pensamento habermasiano. Existe agir comunicativo mesmo que o acordo nao seja produzido, mas que a comunicacao tenha se dado sob condicoes de busca de entendimento (acao comunicativa em sentido fraco), que e uma forma de expressao do carater interativo da acao social. (BITTAR, 2013. p. 244).

A consulta previa tem previsao constitucional para os casos de aproveitamento dos recursos hidricos, incluidos os potenciais energeticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indigenas (artigo 231 da Constituicao), bem como para os casos de acesso a conhecimento tradicional (Lei 13.123, de 20 de maio de 2015). No entanto, o que nos move a refletir sobre esse tema e a situacao de interlocutores culturalmente diferenciados que se deparam com a necessidade de solucionar o problema sobre como vao ser regulamentadas tantas outras relacoes entre todos aqueles que compartilham um mesmo espaco de convivencia, razao pela qual trabalharemos com a consulta de forma ampliada, considerando o artigo 6[degrees] da convencao 169 da Organizacao Internacional do Trabalho, promulgada pelo Decreto n. 5.051/04, que diz:

Artigo 6--1. Ao aplicar as disposicoes da presente Convencao, os governos deverao: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, atraves de suas instituicoes representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetiveis de afeta-los diretamente; b) estabelecer os meios atraves dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da populacao e em todos os niveis, na adocao de decisoes em instituicoes efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsaveis pelas politicas e programas que lhes sejam concernentes; c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituicoes e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessarios para esse fim. 2. As consultas realizadas na aplicacao desta Convencao deverao ser efetuadas com boa fe e de maneira apropriada as circunstancias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

2--A insuficiencia historica da democracia representativa para os povos indigenas.

2.1--Uma historia de opressao

A relacao entre o invasor colonial europeu e os povos originarios esteve marcada por uma forma especifica de aproximacao, permeada de processos por vezes romanceados ou, na maior parte das vezes, violentos (escravizacao, assimilacao, integracao). Entender o significado das ideias do bom e do mau selvagem e fundamental para a compreensao da forma pela qual o indio deixou de ser sujeito para assumir a condicao de objeto da politica, da economia, da pedagogia e ate mesmo dos desejos sexuais do invasor colonial.

O encantamento com a ingenuidade e provavel facilidade de conversao/dominacao dos povos originarios foi responsavel pela invasao violenta do territorio e tambem dos corpos das mulheres indigenas que foram sistematicamente estupradas pelos colonizadores. Nao sao poucas as passagens em que Pero Vaz de Caminha analisa os orgaos genitais das mulheres com relatos pitorescos e detalhados que seriam apresentados ao rei.

Ali andavam entre eles tres ou quatro mocas, bem mocas e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espaduas, e suas vergonhas tao altas, tao cerradinhas e tao limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, nao tinhamos nenhuma vergonha. (...) E uma daquelas mocas era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tao bem-feita e tao redonda, e sua vergonha (que ela nao tinha) tao graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feicoes, fizera vergonha, por nao terem a sua como ela. (...) Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com mocas e mulheres. (CAMINHA, 1500).

As trocas de objetos foram apenas uma das formas pelas quais os portugueses se aproximaram e contaminaram os povos originarios com suas doencas. Existiram, contudo, esses contatos dos "outros muitos que estavam com mocas e mulheres", que iniciaram o processo de miscigenacao do povo brasileiro que, antes de poder ser afirmado apenas como um processo bonito, colorido e rico, merece ser...

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