Revista do Ministério Público do Trabalho n. 10 (setembro/ 1995) - Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos

AutorTeori Albino Zavascki
CargoJuiz do TRF - 4ª Região, Professor de Processo Civil na UFRGS
Páginas98-122

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I Introdução

1. Os últimos anos marcaram no Brasil um período de importantes inovações legislativas a respeito dos chamados “direitos e interesses difusos e coletivos” e dos mecanismos de tutela coletiva de direitos, destacando-se: a Lei n. 7.347, de 24.7.1985 (disciplinando a chamada “ação civil pública”), a Constituição de 1988 (alargando o âmbito da ação popular, criando o mandado de segurança coletivo e a legitimação do Ministério Público para promover ação civil pública e privilegiando a defesa do consumidor) e, inalmente, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11.9.1990; que, entre outras novidades, introduziu mecanismo de defesa coletiva para “direitos individuais homogêneos”). A entusiástica utilização, que se seguiu, dos novos mecanismos processuais, nem sempre se deu de modo apropriado, às vezes por inexperiência de seus operadores — o que é compreensível — outras vezes por se imaginar, equivocadamente, que enim se tinha em mãos o remédio para todos os males: para destravar a máquina judiciária e para salvar a sociedade de todas as agressões, do Governo e dos poderosos em geral. É muito salutar, por isso, o processo de revisão crítica que se vem sentindo nos últimos tempos no sentido de coibir exageros e assim não só preservar do descrédito, mas valorizar e aperfeiçoar esses importantes avanços no campo processual. É com esse mesmo propósito que se buscará aqui relexão sobre tema que a experiência diária evidencia ser foco de boa parcela dos equívocos: a distinção entre os mecanismos processuais para defesa de direitos coletivos e os mecanismos para defesa coletiva de direitos.

2. Com efeito, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor introduziu mecanismo especial para defesa coletiva dos chamados “direitos individuais homogéneos”, categoria de direitos não raro confundida com os direitos coletivos e difusos e por isso mesmo lançada com eles em vala comum, como se lhes fossem comuns e idênticos os instrumentos processuais de defesa em juízo. Porém, é preciso que não se confunda defesa de direitos coletivos (e difusos) com defesa coletiva de direitos (individuais). Direito coletivo é direito transindividual (= sem titular determinado) e indivisível. Pode ser difuso ou coletivo stricto sensu. Já os direitos individuais homogéneos são, na verdade,

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simplesmente direitos subjetivos individuais. A qualificação de homogêneos não desvirtua essa sua natureza, mas simplesmente os relaciona a outros direitos individuais assemelhados, permitindo a defesa coletiva de todos eles. “Coletivo”, na expressão “direito coletivo” é qualificativo de “direito” e por certo nada tem a ver com os meios de tutela. Já quando se fala em “defesa coletiva” o que se está qualificando é o modo de tutelar o direito, o instrumento de sua defesa. Identificar os instrumentos próprios para defesa de cada uma dessas categorias de direitos e estabelecer os limites que o legislador impôs à sua utilização, eis portanto o objeto primordial deste estudo.

II Direitos difusos e coletivos e direitos individuais homogêneos: distinções

3. O legislador brasileiro criou mecanismos próprios para defesa dos chamados “direitos individuais homogéneos”, distintos e essencialmente inconfundíveis, como se verá, dos que se prestam à defesa dos direitos difusos e coletivos. É que se tratam de categorias de direitos ontologicamente diferenciadas, como se pode constatar da deinição que lhes deu o art. 81, parágrafo único, da Lei n. 8.078, de 1990, deinição essa que constitui substanciação de conceitos doutrinários geralmente aceitos e por essa razão aplicáveis universalmente no direito brasileiro. Indispensável, por conseguinte, que antes de mais nada se ponha a lume essa distinção. Em termos bem pragmáticos, e seguindo a deinição dada pelo legislador, pode-se esboçar o seguinte quadro comparativo:

DIREITOS

1) Sob o aspecto subjetivo são:

DIFUSOS

Transindividuais, com indeterminação absoluta dos titulares (= não têm titular individual e a ligação entre vários titulares difusos decorre de mera circunstância de fato. No exemplo: morar na mesma região).

COLETIVOS

Transindividuais, com determinação relativa dos titulares (= não têm titular individual e a ligação entre os vários titulares coletivos decorre de uma relação jurídica base. No exemplo: O Estatuto da OAB.)

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INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

Individuais: (há perfeita identificação do sujeito, assim da relação dele com o objeto do seu direito). A ligação que existe com outros sujeitos decorre da circunstância de serem titulares (individuais) de direitos com “origem comum”. Ex.: passagem de ônibus.

DIREITOS

2) Sob o aspecto objetivo são:

DIFUSOS

Indivisíveis (= não podem ser satisfeitos nem lesados senão em forma que afete a todos os possíveis titulares)15.

COLETIVOS

Indivisíveis (não podem ser satisfeitos nem lesados senão em forma que afete a todos os possíveis titulares).

INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

Divisíveis: (= podem ser satisfeitos ou lesados em forma diferenciada e individualizada, satisfazendo ou lesando um ou alguns titulares sem afetar os demais).

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3) Exemplo: Direito ao meio ambiente sadio (CF, art. 225):

Direito de classe dos advogados de ter representante na composição dos Tribunais (CF, art. 107, I).

Direito dos adquirentes a abatimento proporcional do preço pago na aquisição de mercadoria viciada (Código do Consumidor, art. 18 § 1º, III).

4) Em decorrência de sua natureza:

  1. são insuscetíveis de apropriação individual; b) são insuscetíveis de transmissão, seja por ato inter vivos, seja mortis causa; c) são insuscetíveis de renúncia ou de transação; d) sua defesa em juízo se dá sempre em forma de substituição processual (o sujeito ativo da relação processual não é o sujeito ativo da relação de direito material), razão pela qual o objeto:

  2. individuais e divisíveis, fazem parte do patrimônio individual do seu titular; b) são transmissíveis por ato inter vivos (cessão) ou “morais causa”, salvo exceções (direitos extrapatrimoniais); c) são suscetíveis de renúncia e transação, salvo exceções (v. g. direitos personalíssimos); d) são defendidos em juízo, geralmente, por seu próprio titular.

A defesa por:

DIREITOS DIFUSOS

Do litígio é indisponível para o autor da demanda que não poderá celebrar acordos, nem renunciar, nem confessar (CPC, art. 351) nem assumir ônus probatório não ixado na Lei (CPC, art. 333, parágrafo único; e) a mutação dos titulares ativos difusos da relação de direito se dá com absoluta informalidade jurídica (basta alteração nas circunstâncias de fato).

COLETIVOS

Do litígio é indisponível para o autor da demanda, que não poderá celebrar acordos, nem renunciar, nem confessar (CPC, art. 351) nem assumir ônus probatório não ixado na Lei (CPC, art. 333, parágrafo único,
l) e) a mutação dos titulares coletivos da relação jurídica de direito material

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se dá com relativa informalidade (basta a adesão ou a exclusão do sujeito à relação jurídica-base).

INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

Terceiro o será em forma de representação (com aquiescência do titular). O regime de substituição processual dependerá de expressa autorização em Lei (CPC, art. 6º). e) a mutação do polo ativo na relação de direito material, quando admitida, ocorre mediante ato ou fato jurídico típico e especíico (contrato, sucessão “mortis causa”, usucapião, etc.).

4. Embora, como se viu, apresentem entre si algumas diferenças que na prática nem sempre são visíveis com clareza — os direitos difusos e os direitos coletivos, ambos transindividuais, e indivisíveis, são espécies do gênero direitos coletivos, denominação também adotada para identificá- -los em conjunto. No entanto, direitos individuais, conquanto homogêneos, são direitos individuais e não transindividuais. Peca por substancial e insuperável antinomia airmar-se possível a existência de direitos individuais transindividuais.

III Instrumentos de defesa de direitos coletivos

Ação Civil Pública — Características Gerais

5. Dentre os instrumentos processuais típicos de defesa de direitos transindividuais e indivisíveis merece destaque a conhecida “ação civil pública”. Criada pela Lei n. 7.347, de 1985, e composta de um conjunto de mecanismos destinados a instrumentar demandas preventivas, cominatórias, reparatórias e cautelares de quaisquer direitos e interesses difusos e coletivos, foi seguida pela Lei n. 7.853, de 24.10.1989, que nos arts. 32 a 70 disciplina especificamente a tutela dos direitos e interesses coletivos e difusos das pessoas portadoras de deiciência, pela Lei n. 8.069, de
13.7.1990, que em seus arts. 208 a 224 disciplina especificamente a tutela dos direitos e interesses coletivos e difusos das crianças e adolescentes, e pela Lei n. 8.078, de 11.9.1990, cujos artigos 81 a 104 (salvo a parte especificamente relacionada com direitos individuais homogêneos, arts. 91 a 100) disciplinam a tutela dos direitos e interesses difusos e coletivos dos consumidores. Mesmo com essa complementação, manteve-se, na essência, a linha procedimental adotada pela Lei n. 7.347, de 1985 — cuja invocação subsidiária é feita pelas demais Leis citadas — e sob esse aspecto cabe-lhe a denominação comum de ação civil pública, aqui adotada para

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diferenciá-la da ação civil coletiva, adiante referida. Trata-se de mecanismo moldado à natureza dos direitos e interesses a que se destina tutelar — difusos e coletivos. É o que se pode verificar ao simples exame de suas características gerais, semelhantes nas várias Leis mencionadas.

Assim, legitimam-se ativamente o Ministério Público, pessoas jurídicas...

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