Rethinking the ideological Dimension of Primitive Accumulation with Stuart Hall/Repensando a Dimensao Ideologica da Acumulacao Primitiva a partir de Stuart Hall.

AutorBackhouse, Maria

"No entanto, a acumulacao primitiva continua a ser um conceitochave para a compreensao do capitalismo--e nao apenas a fase especifica do capitalismo associada a transicao do feudalismo, mas ao proprio capitalismo" (Perelman 2000: 37).

  1. Introducao (1)

    A valoracao economica dos recursos naturais, incluindo os patrimonios geneticos e gases de efeito estufa, especulacao financeira sobre terras e produtos agricolas, a precarizacao do trabalho ou a privatizacao dos bens comuns como agua, conhecimento e espacos publicos, levou, em sintese, ao retorno da assim chamada acumulacao primitiva aos debates academicos (ibid).

    No presente artigo introduzo uma interpretacao sobre a acumulacao primitiva (continua) enquanto um conceito analitico flexivel aplicavel a diversas formas e processos de acumulacao primitiva no contexto da crise multipla do capitalismo (Demirovic et al. 2011). A tese principal dessa interpretacao e, que as formas de acumulacao primitiva existentes, por mais diversas que sejam, podem ser consideradas como uma estrategia para lidar com a crise multipla do capital (Kalmring, 2013). Isso porque geram novos campos de acumulacao, seja ocupando relacoes sociais nao capitalistas, seja reestruturando extensivamente relacoes capitalistas ja existentes para uma melhor absorcao da mais-valia (ibid). Meu foco principal neste artigo reside na dimensao critico-ideologica da acumulacao primitiva, que amplio com referencia as reflexoes de Stuart Hall sobre teoria da ideologia. A meu ver, um desenvolvimento adicional da dimensao ideologica da acumulacao primitiva e necessario, primeiramente, para que seja possivel analisar, tanto no nivel semantico quanto no interpretativo, a obtencao do consentimento social em processos de acumulacao primitiva. E importante, em segundo lugar, para entender os processos da acumulacao primitiva tambem no nivel simbolico e cultural. Isso e chave para a possibilidade de intervencao politica tambem na esfera de discursos e narrativas. Assim, pode ser demonstrado, por exemplo, como os processos de acumulacao primitiva no contexto de reformas neoliberais em areas tao diversas como educacao, protecao ambiental e agricultura podem ser retratados com sucesso como nao comportando qualquer alternativa. Em terceiro lugar, permite conectar a analise com as perspectivas des- ou pos-coloniais sobre as desigualdades e os envolvimentos globais.

    Conforme demonstrado abaixo, um aspecto critico-ideologico ja se encontra presente no capitulo de Marx referente a 'assim chamada acumulacao primitiva' no primeiro volume de O Capital. Dito isso, nem Marx naquele momento, nem os participantes nos debates atuais acerca da atualidade e da aplicabilidade analitica do conceito de acumulacao primitiva aprofundaram e desenvolveram mais esse aspecto. Eu argumentaria que essa falha requer retificacao para que possa aumentar a usabilidade do conceito para analises concretas.

    Na minha opiniao, existem duas maneiras atraves das quais o teorico cultural Stuart Hall proporciona impulsos importantes ao avanco da teoria da acumulacao primitiva. De um lado, ele cultiva genericamente uma relacao inspiradora com teorias e conceitos, com os quais se familiarizou, sempre em conjunto com problemas atuais e os quais ele combina entre si para formar 'conceitos analiticos flexiveis'. O autor replicou acusacoes de ecletismo e imprecisao teorica atraves de sua compreensao ativista de formacao da teoria. Em sua visao, a ultima nao e um fim em si mesmo, mas fornece os instrumentos para a intervencao politica. Por outro lado, ele oferece dicas importantes, notadamente na forma de suas reflexoes sobre ideologia e teoria, para um maior refinamento do conceito analitico da acumulacao primitiva (continua)--ainda que ele mesmo nunca tenha estudado de fato o conceito da acumulacao primitiva de maneira profunda.

    A fim de demonstrar o exposto, procedo da seguinte maneira: primeiramente, resumo brevemente a recepcao preferida da 'assim chamada acumulacao primitiva'. Subsequentemente, tomando por pressuposto a interpretacao politica de Massimo De Angelis acerca da assim chamada acumulacao primitiva, esculpo o principal impulso critico-ideologico em Karl Marx. Em seguida, traco um panorama das reflexoes ideologico-criticas de Stuart Hall, operando uma fusao entre elas e algumas consideracoes preliminares a respeito de um conceito analitico flexivel para o estudo de formas atuais e distintas de acumulacao primitiva. Na conclusao, delineio potenciais pontos de partida para perspectivas des- e pos-colonais, bem como a notavel pesquisa correspondente.

  2. Repensando a Acumulacao Primitiva

    2.1 Acumulacao Primitiva Continua

    Em minhas deliberacoes, parto de interpretacoes que nao consideram o capitulo "O Segredo da Acumulacao Primitiva", no primeiro volume de O Capital (Marx 2015 [1887]) como sendo a descricao Marxista de uma fase de transicao historica do feudalismo para o capitalismo que tenha sido concluida no passado, mas, ao inves, como um momento formador do proprio capital, o qual e 'inerente a emergencia e a reproducao do capitalismo' (Alnasseri 2003: 133).

    Interpretacoes influentes da acumulacao primitiva como a afirmacao ou reestruturacao das relacoes capitalistas de producao e propriedade incluem, por exemplo, o conceito de acumulacao por desapropriacao, de David Harvey, o cercamento dos commons, de Massimo De Angelis (De Angelis 2001), a valoracao economica dos recursos naturais (Gorg 2004), a precarizacao do trabalho (Landnahme) by Klaus Dorre (Dorre 2015), acumulacao primitiva continua como a exploracao do setor de cuidados, dominado pelas mulheres (Federici 2017; Mies et al. 1988; Dowling 2016), bem como a transferencia de valor da periferia do Sul global para o centro no Norte global (Frank 1982; Wallerstein 1986).

    Essa tradicao de leitura da assim chamada acumulacao primitiva como fenomeno continuo, em vez de um momento passado na trajetoria do capitalismo, remonta a Rosa Luxemburgo (Luxemburg 1951). A ideia basica e a de que o capitalismo pode recorrer a um "outro" nao-capitalista para que possa se reproduzir. Este Outro nao capitalista sugere nao apenas espaco geograficos inexplorados pelo capitalismo, mas tambem espacos e relacoes sociais nao-capitalistas dentro dos centros capitalistas, os quais devem ser entao restruturados como novos campos de acumulacao, notadamente atraves do processo referido como Landnahme (Alnasseri 2003; Dorre 2015; Lutz 1984). A categoria do "outro nao-capitalista" permite, primeiramente, uma investigacao sobre como as relacoes de producao capitalistas se expandem para meios e relacoes sociais nao-capitalistas (como no caso do trabalho de cuidado baseado em estruturas familiares) atraves do processo de acumulacao primitiva para tratar as crises do capitalismo. Isso elucida, por exemplo, como os programas de financiamento governamentais para biodiesel (para tratar a crise social-ecologica como a mudanca climatica) de fato reestruturam--ao expandir o modo de producao agroindustrial--as relacoes de trabalho e propriedade agricolas com o intuito de tornar sua agricultura domestica competitiva no mercado mundial. Por outro lado, isso tambem torna possivel a combinacao de novos arranjos envolvendo setores capitalistas e nao-capitalistas. Este ultimo aspecto foi publicado por abordagens neo-Marxistas e teorico-dependentes (ver.: Frank 1978; Meillassoux 1981; Wallerstein 2011 [1974]) e facilita um melhor entendimento acerca de formas de acumulacao primitiva complexas e distintas dentro de um contexto global. O pensamento central comum a todas essas abordagens heterogeneas e o de que o capitalismo repousa nao apenas no trabalho proletarizado, mas tambem sobre o nao-proletarizado e o semi-proletarizado (Glassman 2006: 613 f.). Trabalho explorado em canaviais, em pequenos setores de subsistencia agricola e o trabalho domestico nao remunerado (feminino) nao sao, portanto, o residuo de uma era pre-capitalista, mas de fato sao tao modernos quanto o trabalho proletarizado assalariado. Isso porque tem uma funcao importante na reproducao expandida, ou na producao de mais-valia do capital. Trabalhadores migrantes, por exemplo, podem ser remunerados a uma taxa que esta abaixo de seus custos de reproducao se seus custos de vida ou com cuidados infantis puderem ser repassados para seus respectivos setores de subsistencia (Meillassoux 1981; Mies et al. 1988). A partir da perspectiva do capital, isso e racional, pois essa combinacao de setores capitalistas e nao capitalistas permite uma transferencia de valor da producao de subsistencia para o mercado (Kossler 2013: 165).

    Sob meu ponto de vista, a analise de processos de acumulacao primitiva continua requer a consideracao dos dois aspectos do outro nao-capitalista. Assim, o conceito analitico nao e limitado nem temporalmente nem geograficamente e pode ser aplicado flexivelmente a todos os campos sociais--independentemente se foram ou nao permeados (ou em que medida) por relacoes de producao e apropriacao capitalista ate entao. Ou seja, o conceito nao se limita ao Sul ou Norte global, respectivamente, e alem disso permite analises diferentes das inter-relacoes globais Norte-Sul (e.g. Mintz 1986).

    De acordo com as supramencionadas interpretacoes mais recentes, a acumulacao primitiva continua pode ser lida como uma critica as interpretacoes ortodoxas, incluindo aquelas que a) analisam a acumulacao primitiva exclusivamente como uma fase historica ja concluida, b) postulam o modelo ingles como unico caminho de desenvolvimento de sociedades capitalistas modernas, c) concentram-se exclusivamente no processo de proletarizacao de acordo com o padrao ocidental e d) procuram o sujeito revolucionario apenas entre o proletariado branco e masculino dos paises industrializados ocidentais (Glassman 2006). A compatibilidade do conceito analitico para acumulacao primitiva com abordagens anti-Eurocentricas (2) e antiessencialistas (3) (ibid.), como foram fortemente influenciadas, a...

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