Resultado

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas155-172

Page 155

5.1. Resultado jurídico e resultado naturalístico crimes sem resultado

Há ações que, em razão de sua índole e por contingência ou ordem natural das coisas, uma vez praticadas, devem assinalar a sua presença ou passagem no mundo exterior. São ações que não podem ser dissociadas da produção de um evento. Tais condutas, uma vez realizadas, forçosamente geram, como efeito necessário de sua exteriorização, uma transformação ou modificação no plano fenomênico, uma consequência que se agrega naturalmente ao próprio conceito da conduta. Essas ações, quando perpetradas, fazem persistir no plano físico um fator objetivamente constatável, perceptível pelos sentidos. Condutas desta espécie deixam, como traço marcante de sua passagem, laivos ou vestígios sensíveis, que representam seu necessário efeito ou sua consequência natural.

Nesses casos, conduta e efeito exterior não podem ser desunidos.

Verbi gratia, imagine-se a ação de riscar, da qual seja instrumento um pedaço de giz e objeto material a lousa ou quadro negro. Resulta patente que, realizada a conduta referida, ela não pode ser concebida sem deixar, como efeito exterior, nitidamente constatável pelos sentidos, o risco traçado sobre a superfície do quadro negro.

Assim ocorre nas ações de matar ou de destruir, inutilizar ou deteriorar, elementos nucleares dos crimes de homicídio e dano (arts. 121 e 163, CP). É incontroverso que, em função de sua natureza e pela ordem lógica e natural das coisas, estas condutas não podem ser compreendidas sem que, no mundo exterior, como complemento necessário, acarretem a morte de alguém e o estrago (dano) sobre a coisa alheia (respectivamente).

Da mesma forma, não se concebe a ação de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem (art. 129, CP) sem ela produzir a lesão corporal, evento perceptível pelos sentidos. Na ação de subtrair, no furto (art. 155, CP), a diminuição patrimonial causada pelo assenhoreamento subsiste como fenômeno sensível consequente à conduta, pois é inconcussa a percepção do vazio que o bem do qual o agente se apossou deixa em face de sua ausência no espaço físico que antes ocupava (dinheiro na carteira, automóvel na garagem, televisor na sala íntima etc.), de sorte que também o furto constitui crime ao qual deve unir-se um efeito externo para o aperfeiçoamento da conduta e do próprio tipo.

Page 156

Os crimes comissivos por omissão sempre estão associados à produção de um efeito exterior, que constitui a consequência do descumprimento de um dever jurídico

(v. n. 3.5).

Há ações, destarte, que, consagradas em determinados tipos legais delitivos, só conferem plena, completa e cabal tipicidade ao comportamento incriminado se produzirem, no plano externo e fático, aquela consequência que lhes é peculiar. À verificação desse efeito necessário da ação fica então condicionado o encarte típico do delito.

Se alguém desfecha tiros de revólver contra outra pessoa, buscando sua morte, é inarredável que exterioriza no plano fenomênico a conduta de matar. Mas se a vítima, alvejada e gravemente ferida, é socorrida tempestivamente, levada ao hospital e, mediante pronta e bem sucedida intervenção cirúrgica, logra sobreviver, é indubitável que, no caso, à ação de matar praticada pelo autor não se agregou seu corolário lógico e natural, qual seja, a morte da vítima. Por via de consequência, e não houvesse a norma de extensão do art. 14, n. II, do CP, que possibilita a tipicidade da tentativa (v. n. 9.1), seria inelutável a conclusão pertinente à carência de tipicidade neste episódio, pela falta de resultado.

Nessa conjuntura, existem condutas às quais é essencial a produção externa de um efeito como complemento necessário. Esse efeito recebe, na dogmática penal, a denominação de resultado tipológico ou naturalístico, ou, simplesmente, evento.

Em contraposição, existem ações que não necessitam, obrigatoriamente, da produção de qualquer consequência no mundo realístico. São condutas que podem ser perfeitamente compreendidas sem a verificação de qualquer efeito exterior e que se exaurem e esgotam em si mesmas, no próprio comportamento. São ações dotadas de autonomia, independência e autossuficiência. Diante de uma ação desta natureza, sua mera realização confere plena subsunção típica ao fato incriminado, que, assim, alcança sua completa configuração jurídica.

No entanto, no plano da eventualidade, tais ações até podem acarretar uma modificação no mundo físico. Porém, este efeito não representa condição ou requisito necessário ao aperfeiçoamento da conduta. Terá, nesses casos, conotação simplesmente casual e circunstancial. Por esse motivo, desse efeito, de natureza eventual e acidental, o comportamento incriminado não dependerá para o seu descortino típico, que se realizará, em sua inteireza, quer se verifique ou não qualquer consequência.

Calha ilustrar de forma conjetural.

Suponha-se a ação de assoprar. É inegável que, para sua existência, ela independe da concreção de qualquer modificação física, que não é, portanto, necessária. Bastará realizar a conduta para ela obter plenitude. Contudo, a ação mencionada, na dependência de fatores externos a que se enderece, poderá, inclusive, sob o prisma da casualidade, produzir determinado efeito, que, não sendo indispensável, terá aspecto meramente circunstancial. Desse modo, se alguém assopra pequena quantidade de pó ou substância análoga, decerto que o conjunto (a massa, o contexto) se desvanecerá, espalhando-se.

Page 157

Essa transformação produzida pela ação, porém, será apenas casual, uma vez que a conduta de assoprar, para sua existência, não se condiciona à necessidade de dirigir-se a um amontoado de pó e esparramá-lo. A ação existirá, da mesma maneira, perfeitamente delineada, ainda que não se volte ao pó reunido ou, dirigindo-se a ele, ainda que não o espalhe. Em conclusão: se essa conduta constituísse entidade criminosa, poderia existir desvinculada de qualquer resultado.

Cumpre, agora, projetar esse foco para o âmbito penal da incriminação.

No art. 342 do CP incrimina-se a ação de o sujeito ativo, na qualidade de testemunha, fazer afirmação falsa, perante o juiz, em processo judicial. É iniludível a finalidade do agente de induzir o julgador em erro, para este prolatar, em benefício ou detrimento alheio, sentença diversa daquela que daria se soubesse a verdade. Entretanto, eventual erro judiciário em decorrência de equívoco do juiz, como efeito da conduta, ressurte meramente casual, pois o crime não depende dele para se integralizar. Consequentemente, se a testemunha fizer afirmação falsa e mentirosa perante o juízo, a sua conduta já consumará o delito273. Eventual erro do magistrado, produzido pela ação, constituirá, no caso, o exaurimento do crime, circunstância que é estranha ao seu momento consumativo e se coloca desgarrada da estrutura típica do delito (v. n. 24.4).

Outrossim, bastam no mínimo três pessoas se associarem com o intuito evidente de cometer crimes para a figura criminosa erigida no art. 288 do diploma penal tonalizar-se por inteiro, perfeitamente cumprida e acabada. O cometimento de crimes super-venientes, objetivo da associação criminosa, não é necessário para a configuração do delito e exsurge, se ocorrer, como seu exaurimento, a ensejar o concurso material de crimes (v. n. 22.3)274.

Igualmente, o mero ingresso em casa alheia, com o dissenso - expresso ou tácito - de quem de direito, já consuma o ilícito penal de violação de domicílio (art.

Page 158

150, CP), independentemente da produção de qualquer prejuízo como efeito exterior (arrombamento de portas, fraturas em vidros ou janelas...), que, se acontecer, será simplesmente casual.

Cometer adultério (o extinto art. 240 do CP), ao tempo em que era incriminado (abolitio criminis operada pela Lei n. 11.106/2005), representava exemplo clássico de crime dessa categoria, eis que a conduta que o compunha também se exauria em si própria e não requeria, como condição para o aperfeiçoamento do delito, a ocorrência necessária de qualquer transformação externa. Assim também a prática de ato obsceno, crime incrustado no art. 233 do CP. Eventualmente, é possível que quem presenciar o ato obsceno possa experimentar uma reação de desagrado, indignação, revolta ou vergonha, ou que o adultério - ao seu tempo de entidade criminosa - levasse a uma concepção extramatrimonial, à desagregação da família ou, até, a um desfecho de sangue efetivado pelo que fora traído. No entanto, tais consequências a respeito dos delitos mencionados não são ou eram necessárias à respectiva configuração jurídica e só podiam ou podem suceder no plano circunstancial.

Diversa seria a situação se os arts. 342, 288 e 150 do CP dispusessem, respectivamente: "Fazer afirmação falsa... induzindo o juiz a uma situação de erro"; "associarem-se três pessoas ou mais pessoas ..., cometendo crimes" e "entrar ou permanecer..., em casa alheia ou em suas dependências, causando prejuízo". Nestas hipóteses, a completa tipicidade dos crimes estaria condicionada à consequência da ação que o tipo inscrevera, de modo a constituir esse consectário o resultado do crime, id est, a transformação necessária da conduta que haveria de ser produzida no plano concreto.

De tal arte, há crimes de resultado e crimes que não o têm.

Resultado naturalístico ou tipológico (ou simplesmente evento) é a consequência necessária da ação que o tipo prevê, ou seja, a transformação ou modificação (como efeito) que a conduta produz no mundo exterior, no plano naturalístico, físico e fenomênico.

Todavia, fala-se ainda em resultado jurídico, conceituado, à unanimidade, como a ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado ou a consequência produzida pela ação no plano do ordenamento jurídico.

Esse resultado constitui...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT