Justiça restaurativa: Um novo conceito

AutorRafael Gonçalves de Pinho
CargoBacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF, pesquisador na área de Resoluções Alternativas de Conflitos e Sócio do Escritório Gonçalves, Terras e Veras Advogados.
Páginas242-268

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Introdução

Um dos temas mais debatidos no país é a reforma do Poder Judiciário, o improvement do acesso à justiça e a implementação de sistemas alternativos de administração de conflitos, destarte a criação da Secretaria de Reforma do Judiciário ligada ao Ministério de Justiça e os programas e congressos realizados em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento -PNUD. Temática esta permeada com escopo de tornar as instituições mais acessíveis e eficazes no oferecimento de soluções alternativas aos conflitos, problemas vivenciados por todos nós brasileiros, até então não superadas pelo sistema formal de Justiça e pelos governos nas três esferas de atuação.

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Diversas críticas, tais como; à morosidade judicial, aos elevados custos processuais, gestão, à grave deficiência na resolução de conflitos, o seleto acesso à justiça, dentre outras, ganham força e espaço no cenário brasileiro. Cumpre salientar que não são críticas exclusivas ao país, já que em outras regiões do orbe ocorrem os mesmos desafios e necessidades, e, em alguns casos mais críticos, o total desrespeito as garantias elencadas na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de SAN JOSÉ da COSTA RICA), ratificada pelo Brasil em 25/09/1992.

A lenta resposta das instituições às demandas sociais, no intuito de oferecer respostas satisfatórias aos entraves ao acesso à justiça, gerou o desenvolvimento paralelo de projetos de diversas entidades não-governamentais, nas quais são utilizadas técnicas de mediação, arbitragem, bem como uso do direito informal na solução de conflitos.

A adoção de meios alternativos1 de resolução de conflitos consubstancia um notável caminho para a oferta de novas soluções aos conflitos e um acesso à justiça mais democrático, gerando assim, um considerável fortalecimento do tecido social.

Na mesma esteira, o professor Leonardo Greco, em seu texto ―Acesso ao direito e à Justiça‖, ressalta que ―o acesso à Justiça sofre para a sua efetividade três tipos de obstáculos ou barreiras: as barreiras econômicas, as barreiras geográficas e as barreiras burocráticas‖.2 No mesmo entendimento, Hugo Nigro Mazzilli ressalta, ―a possibilidade de acesso à Justiça não é efetivamente igual para todos: são gritantes as desigualdades econômicas, sociais, culturais, regionais, etárias, mentais‖.3

O presente artigo analisa o conceito e objetivos da Justiça Restaurativa e sua compatibilidade ao sistema brasileiro, na qual apresenta-nos um novo manancial de práticas e idéias que nos ajudam a mudar o enfoque penal estritamente punitivo, bem como uma melhor prestação Jurisdicional. Missão esta, sob responsabilidade nossa, operadores e estudiosos do direto, ao lidarmos com as questões mais tempestuosas, e algumas até obscuras, do sistema tradicional de justiça.

1. Breve histórico

De acordo com a história humana, das civilizações antigas às sociedade contemporânea, povos indígenas, grupos familiares, e comunidades fechadas, criaram soluções peculiares aos conflitos, disputas e danos.

A percepção dos povos indígenas, na qual o diálogo é baseado na afetuosidade e no sentimento, e a visão ampla para vislumbrar as situações de como a comunidade percebe de maneira diferente o mesmo fato e como elas se comportam diante de tal problema é mais importante do que o fato tratado isoladamente. Baseado na leitura de outros pontos de vista, seus sofrimentos e suasPage 244idéias para encontrar uma solução, com entendimento e empatia, mostra-nos um aspecto interessante de solução de litígios.

A partir dessa observação, verificou-se na década de 80, a sociedade Navajo4 no Arizona, México e Utah em seu modelo, a análise e o conceito da a lei é diferente das normas que são aplicadas pelas instituições tradicionais. A norma apresenta um outro aspecto, além do valor coercitivo, um conceito mais ampliado de estilo da vida, e instituições como partícipes na resolução de conflitos e não necessariamente como elementos que exercem apenas a autoridade. Dentre seus ensinamentos, aplicam a solidariedade, interdependência5 e mutualidade como ponto de partida na resolução de seus conflitos.

Dentro da sociedade Maori6 na Nova Zelândia, devido à preocupação crescente sobre a forma pela qual as instituições tratavam seus os jovens e as crianças, na medida em quem eram retirados de seus lares, do contato com suas famílias e a da própria comunidade, através das decisões dos sistemas de Justiça Juvenil, surgiu à época, após muitas exigências, um processo diferenciado, culturalmente adaptado, para os Maoris, e soluções às famílias sem recursos a possibilidade de cuidar de suas próprias crianças.

Após a aprovação do Estatuto das Crianças em 1989, na Nova Zelândia, a famílias se inseriram no processo e garantiu conjuntamente a responsabilidade primária pelas decisões, aliado a outras formas de assistência. Tornou-se um processo aglutinador, pois visava incluir todos os envolvidos e os representantes dos órgãos estatais. Nesse ínterim, o papel da vítima ressurge participando das decisões, e juntos, como num grupo familiar, traçando objetivos da própria reparação da vítima e da reintegração à sociedade.

A teoria da justiça restaurativa surgiu à mesma época em que essa legislação foi aprovada, porém logo tornou-se evidente que os valores de participação, reparação e reintegração à sociedade refletiam o novo sistema de justiça juvenil da Nova Zelândia. Em especial, observou-se no processo no grupo familiar um mecanismo eficaz que poderia ser aplicado dentro do sistema de justiça tradicional para prover novas alternativas e o melhor acesso à Justiça.

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Desde 1999, o uso de práticas de justiça restaurativa na Nova Zelândia alcançou outros níveis, com o desenvolvimento, pela polícia, de processos de encaminhamento alternativo para responder a infrações relativamente sem gravidade cometidas por jovens, assim como a aplicação da justiça restaurativa no sistema Tradicional.

Em consonância no Canadá, o processo restaurativo originou-se nos métodos tradicionais aborígenes7 de resolução de conflitos. A superpopulação carcerária de origem aborígene, a notória desvantagem econômica e a marginalização em relação à sociedade dominante canadense, demandou uma abordagem mais adequada e aplicação das práticas restaurativas, posto que a população aborígene não reconhecia os valores e métodos do sistema tradicional de justiça.

Todas as referências históricas, aparentemente desconectadas, convergem para a visão crítica de Zaffaroni e Nilo Bastista:

Quando o conflito deixou de ser lesão contra a vítima e passou a significar delito contra o soberano, isto é, quando sua essência de lesão a um ser humano converteu-se em ofensa ao senhor, desvinculou-se da própria lesão e foi-se subjetivando como inimizade para com o soberano. A investigação da lesão ao próximo foi perdendo sentido, porque não procurava sua reparação, mas sim a neutralização do inimigo do monarca.8

Verifica-se no modelo atual do sistema penal, a prevalência do modelo de decisão vertical e punitivo sobre o modelo de solução entre as partes, sob o pretexto de limitar a vingança pessoal da vítima ou de suprir a debilidade desta. Por fim, na mesma esteira, Zaffaroni9 e Nilo Bastista, ressaltam que na realidade, serviu para ―descartar a sua condição como pessoa‖, rebaixando sua condição humana, resultando em um ―talião limitativo‖ direcionado à ampliação das oportunidades para o exercício de um poder.

1.2 Debate no Brasil

O Debate acerca da Justiça restaurativa foi introduzido no Brasil com Carta de Araçatuba, redigida no I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, realizado na cidade de Araçatuba, estado de São Paulo - Brasil, nos dias 28, 29 e 30 de abril de 2005, na qual delineava sobre os princípios da justiça restaurativa e atitudes iniciais para implementação em solo nacional. Logo após, foi ratificada pela Carta de Brasília, na conferência Internacional ―Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de Conflitos‖, realizada na cidade de Brasília, Distrito Federal, nos dias 14, 15, 16 e 17 de junho de 2005, já apresentando valores e princípios a serem aplicados no sistema brasileiro. Na mesma esteira, a Carta do Recife, elaborada no II Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, realizado na Cidade do Recife, Estado de Pernambuco - Brasil, nos dias 10, 11 e 12 de abril de 2006, ratificando as estratégias adotadas pelas iniciativas de Justiça Restaurativa em curso, bem como sua consolidação.

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Todos esse movimentos inspiraram-se na Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, Resolução 2002/12, na qual ficaram definidos os princípios básicos para a utilização de programas de Justiça Restaurativa em matéria criminal, reportando a Resolução 1999/26, de 28 de julho de 1999, e a Resolução da Resolução da Assembléia-Geral n. 56/261, de 31 de janeiro de 2002, particularmente as ações referentes à justiça restaurativa, de modo a se cumprir os compromissos assumidos no parágrafo 28, da Declaração de Viena.

Por conseqüência natural, os conceitos da justiça restaurativa chegaram ao Brasil, principalmente a partir da observação e o estudo do direito comparado, trazendo a...

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